A grande falha de Darwin?
Há certos enunciados que atingem o patamar de verdade científica
apenas pela repetição constante e maciça. A biologia — esse ramo das
ciências tão marcado pelas subjetividades — e em particular a biologia
evolutiva está repleta desses enunciados e conceitos que são verdadeiros
apenas pela repetição. Temos, portanto, uma legião de professores, de
alunos e principalmente de leigos aceitando argumentos
ad populum, verdades que só são verdades porque todo mundo diz que são, ora bolas!
A maioria dessas alegações é facilmente falseada se nós apenas
dispusermos de tempo e de capacidade mental para as analisarmos. Outras
requerem observações e experimentações científicas, mas são da mesma
forma derrubáveis e derrubadas. Um exemplo de que gosto particularmente é
o ubíquo e famigerado “mapa da língua”. Desde que me entendo por gente,
desde a quarta série (atual quinto ano) do primeiro grau (atual ensino
fundamental), vejo em livros de ciências e de biologia o mapa da língua:
a língua possui regiões de maior sensibilidade ao doce, ao salgado, ao
azedo e ao amargo. Acontece que os cinco receptores epiteliais para os
sabores — doce, salgado (sódio), azedo (ácidos), amargo e umami
(glutamato) — não apresentam nenhuma assimetria mensurável em sua
distribuição pela língua. Numa palavra, não existe nenhuma distribuição
desigual dos receptores, não há nenhum “mapa da língua”. Mas aqui entra o
argumento
ad populum: o número de livros com o mapa da língua
(praticamente todos!) é tão grande, desde o ensino fundamental até o
próprio ensino superior, que alguém que se disponha a falar que não há
tal distribuição vai se ver enterrado em provas do contrário, e se
sentirá investindo com lanças de madeira frágil contra moinhos de
tijolos sólidos.
O famigerado mapa da língua (fonte: Scientific American, março de 2001).
Um grande amigo meu, que eu reputo como uma mente sóbria e lúcida,
costuma falar sempre que, numa discussão sobre a veracidade ou não de um
conceito ou enunciado, devem-se citar artigos, e não livros. Acontece
que a maioria dos alunos do ensino médio não tem sequer noção do que
seja um artigo científico, nem de sua importância. Assim, se um artigo
da
Journal of Cell Biology diz uma coisa e seu livro didático
diz outra, ele costuma aceitar esse último. Mas isso não se dá por má fé
ou birra do aluno: ele simplesmente, na maioria das vezes, desconhece o
que seja um
paper. Na prática, até mesmo professores
desconhecem: vejamos o exemplo dos mesossomos. Muita gente acha que
existem dobras da membrana plasmática de certas bactérias, onde há maior
concentração de enzimas associadas à fosforilação oxidativa. Bem,
acontece que mesossomos não existem como estruturas da bactéria: essas
invaginações ocorrem quando a bactéria é preparada para observação no
microscópio eletrônico. Disse isso a um colega meu, e ele, contrariado,
me mostrou que a maioria dos livros de biologia fala de mesossomos como
uma estrutura bacteriana, servindo para tal e tal função. Muito bem, na
semana seguinte levei para ele um paper da “Archives of mycrobiology”
mostrando que mesossomos não existem. Esse colega meu, aliás, é um bom
professor e pessoa da qual gosto muito; mas, pra ele, o artigo não
significou nada: simplesmente boa parte dos professores não tem idéia do
que seja uma publicação revista por pares (
peer review), nem
da sua importância como referência fidedigna. Apenas como observação
adicional, acabei agorinha mesmo de pesquisar na Wikipédia (sim, eu
também leio a Wikipédia!), e até mesmo lá o artigo sobre
mesosome afirma que, desde a década de 70, sabe-se que não existem tais estruturas.
E por que todo esse prolegômeno? Para falar de outra dessas “verdades
cristalizadas”, estabelecidas pela tradição e pela repetição. Diz
respeito ao nosso pobre Darwin, tão vilipendiado…
Os principais livros didáticos do ensino médio nos dizem que Darwin
foi um homem à frente de seu tempo, um pensador genial e enaltece a
coerência de sua estrutura teórica. Nada mais justo. Contudo, segue-se
normalmente uma ressalva: o grande problema de Darwin, uma de suas
(senão a maior) falhas foi não saber explicar as causas da variedade nas
populações. Cita-se que Darwin não conheceu os trabalhos de Mendel (o
que é fato), e que morreu sem ter resolvido esse problema em particular.
Professores reiteram ano após ano essa “falha” de Darwin, e seguidas
gerações de estudantes secundaristas já ouviram isso. Mas até que ponto
isso procede?
Antes de tudo, seria conveniente discutir se essa era realmente a
explicação que faltava ao corpo teórico de Darwin em sua época, ou seja,
se essa era a peça restante, capaz de tornar as idéias de Darwin claras
e amplamente aceitas. Um conhecimento básico da história da biologia
evolutiva mostra que esse não era o caso: as maiores críticas que Darwin
recebeu, e aqui estou logicamente me referindo à comunidade científica —
pois as críticas de caráter religioso e místico não nos interessam —,
diziam respeito à mecânica do processo seletivo e evolutivo, e não à
questão da origem das variações. Mas, mesmo assim, apenas para chegar ao
meu objetivo, admitamos que fosse esse o problema: o desconhecimento
dos princípios da genética mendeliana clássica teria sido a grande falha
de Darwin. Portanto, cabe agora perguntar: caso Darwin conhecesse tais
princípios, de que forma isso lhe teria sido útil?
A genética mendeliana clássica, em seus primórdios, trabalhava
basicamente com características qualitativas: a flor poderia ser
terminal ou axilar, a semente poderia ser amarela ou verde, a planta
poderia ser normal ou anã… Veja que, com muito esforço e boa vontade,
poderíamos falar aqui de variáveis quantitativas discretas, mas com um
reduzidíssimo número de valores possíveis. Contudo, falar de variáveis
quantitativas contínuas, jamais! Para quem não tem familiaridade com
esses termos, o que quero aqui dizer é que Darwin concebia a seleção
como um processo que mudaria de forma lenta, gradual, uma variável
inerentemente quantitativa: o tamanho do bico vai mudando milímetro a
milímetro ao longo das gerações, a largura da folha vai mudando
milímetro após milímetro ao longo das gerações, e assim por diante. As
modificações evolutivas para Darwin eram quantitativas contínuas.
Ora, imagine associar a isso uma genética que trabalhasse com
características qualitativas. O resultado é fácil de perceber: não há
como explicar a evolução gradual por seleção tendo como pano de fundo
tal genética! Na verdade, e poucos professores percebem isso, o
ressurgimento da genética mendeliana clássica na primeira década do
século XX foi um enorme empecilho para a biologia evolutiva clássica! Ou
seja, ao contrário de ser uma ajuda, a genética clássica constituiu um
problema, quando se considerava a base genética do processo seletivo. A
situação só começou a mudar em meados da década de 10, quando
pesquisadores como William Castle mostraram que variações quantitativas
contínuas (ou mesmo discretas, com grande número de valores possíveis)
são explicadas geneticamente. Assim, quando a genética quantitativa já
era relativamente bem conhecida, a partir da década de 20, foi possível
dar uma base genética à evolução por seleção.
O que eu gostaria de defender aqui é que nós analisássemos com mais
cuidado certos conceitos cristalizados, que de tanto serem repetidos
acabam ganhando vida própria. E que, assim como a Hidra de Lerna, quando
se lhe corta uma cabeça, outra surge no lugar.
http://biologiaevolutiva.wordpress.com/2010/04/03/a-grande-falha-de-darwin/
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