Por que ensinar a partir da Teoria dos Gêneros Textuais?
GODENY, Juliana (G)
PEREIRA, Liliane (G)
SAITO, Cláudia L. N. (Orient.)
Introdução
Do início da década de 80, pudemos observar uma crescente tendência de questionamento ao ensino tradicional de produção e recepção textuais, presenciamos também inúmeras discussões sobre o papel da escola no desenvolvimento de competências e habilidades de linguagem dos alunos.
Pesquisas desenvolvidas recentemente, no campo da Lingüística e Lingüística Aplicada, revelaram um ensino comprometido por problemas de ordem conceitual, conteudística, pedagógica, o que resultou conclusões alarmantes sobre as condições de produção e recepção de textos na escola (Pécora, 1983; Brito, 1985; Geraldi, 1993 e 1998).
A partir daí, os documentos oficiais passaram a fazer indicação explícita do ensino de leitura e produção de textos orientados por gêneros textuais. Nesta comunicação, pretendemos apresentar o resultado das discussões sobre a utilização de uma abordagem lingüística- enunciativa nas práticas pedagógicas, realizadas durante os encontros do projeto de pesquisa “Gêneros Textuais no Ensino Médio: uma abordagem para o ensino de língua materna”, desenvolvido na Universidade Estadual de Londrina.
1- A tipologia clássica e as práticas pedagógicas
À luz do conceito bakhtiniano de gêneros discursivos, pesquisadores europeus do chamado “Grupo de Genebra” propuseram a utilização dos gêneros textuais como instrumento , como ponto de partida para o ensino. Dentre eles, Dolz e Scheneuwly (1996) e Pasquier e Dolz (1996) se posicionaram contrários à utilização da tipologia clássica (narração, descrição e dissertação) para o desenvolvimento de habilidades de escrita e leitura, considerando-a inadequada para uma ação pedagógica voltada ao desenvolvimento de competências comunicativas amplas, uma vez que não contempla o escopo social dos textos, baseia-se apenas na sua organização textual. A tipologia clássica não dá conta das inúmeras práticas sócio-discursivas de nossa sociedade. Afinal, na vida cotidiana não é solicitado a alguém que faça uma dissertação , ou uma descrição ou narração. O que se exige é um certo domínio dessas “modalidades retóricas” (cf. Swales, 1994/1999 ) para se defender uma idéia , um ponto de vista no caso da dissertação; ou para se fazer um boletim de ocorrência no caso da narração; ou para se escrever um anúncio de classificados no caso da descrição.
Logo, restringir os textos, nas práticas pedagógicas, apenas pelo modo como se organizam é um risco de limitá-los a fórmulas ou esquemas que os descaracterizem de seus propósitos comunicativos. Devemos, então, pensar o quanto uma mudança de concepção de ensino e aprendizagem se faz necessária. Ainda mais, em um momento histórico como o que vivemos agora, em que mudanças econômicas e políticas trazidas a reboque do fenômeno da “globalização” trazem a todo instante profundas conseqüências culturais e diretamente, novas práticas sociais.
2- Novas formas de interação: nova concepção de letramento
De acordo com Dionísio (2005, p.159), o desenvolvimento tecnológico fez surgir novas formas de interação, a comunicação passa a ser muito mais mediada. Em conseqüência disso, diferentes habilidades de linguagem são exigidas: há necessidade de leitores não apenas do texto verbal , mas de uma gama de textos multimodais., ou seja, de textos que têm vários sistemas de linguagem ( verbal+ visual; verbal+ audiovisual; verbal+ gestual, etc ) em sua constituição. Pudemos constatar que a relação palavra/ imagem mantêm uma relação cada vez mais estreita, assim não havendo mais lugar para a velha concepção de letramento, que se detinha apenas à habilidade de ler e escrever.
Segundo a autora, é necessário “uma ampliação, uma revisão em conceitos basilares no âmbito dos estudos do processamento textual”, uma vez que a noção de letramento não abrange todos os tipos de representação do conhecimento existentes em nossa sociedade. Para ela:
“na atualidade, uma pessoa letrada deve ser capaz de atribuir sentidos a mensagens oriundas de múltiplas fontes de linguagem, bem como ser capaz de produzir mensagens, incorporando múltiplas fontes de linguagem.”
Esta revisitação do conceito de letramento, proposta por Dionísio, está atrelada às novas tecnologias, mais propriamente à expansão da mídia eletrônica. Hoje o termo letramento está sendo empregado em sentido amplo, abrangendo “as variedades terminológicas como letramento científico, letramento visual, novo letramento, letramento midiático e etc”.
Para Dionísio e Bezerra (2002), “necessitamos falar em letramentos, no plural mesmo, pois a multimodalidade é um traço constitutivo do discurso oral e escrito”. Ainda para as autoras, “a diversidade de arranjos não-padrões que a escrita vem apresentando na mídia em função do desenvolvimento tecnológico”, conseqüentemente, leva a novos hábitos de ler um texto. Portanto, para elas, na sociedade contemporânea, “à prática de letramento da escrita, do signo verbal, deve ser incorporada à prática de letramento da imagem, do signo visual”. Dessa forma, somente um enfoque teórico dirigido ao ensino da língua (agem) para seu uso e funcionamentos discursivos, contextualizado e determinado sócio-historicamente instrumentalizará os alunos para essa nova realidade que nos cerca.
2.1- O ensino tradicional
Partindo dos resultados obtidos nas observações realizadas em turmas do ensino médio, uma das atividades do projeto de pesquisa "Gêneros Textuais no Ensino Médio: uma abordagem para o ensino da língua materna", desenvolvido na UEL, constatamos que, em relação às atividades propostas em sala de aula em torno das três tipologias narração, descrição e dissertação:
ü Há falta de autenticidade nos textos produzidos em sala de aula
ü O aluno fica descaracterizado como sujeito, visto que apenas reproduz o que o professor transmite em sala de aula, tornando - se desmotivado no momento de elaborar suas produções textuais.
ü As produções de textos não são veiculados para fora da sala de aula (falta de um real leitor).
ü O professor apenas executa o papel de corretor.
Além de todos esses fatores citados, é de suma importância destacar a dependência do professor em relação ao livro didático, seja por deficiência de formação, seja pela falta de infra-estrutura no ensino do país, fato que depõe contra, uma vez que grande parte dos livros didáticos mantém a tipologia textual clássica da narração, descrição e dissertação como eixo organizador do ensino.
Entretanto, essa realidade pode ser transformada, basta o professor querer. Atividades em sala de aula, em que o aluno é inserido a contextos e práticas de linguagem significativas, podem colaborar para que uma grande transformação ocorra. Transformação essa que ultrapassará os muros das escolas, influenciando também as práticas sociais.
O ensino sob essa orientação se inspira “no sócio-interacionismo, na teoria enunciativa e na lingüística textual, cujos enfoques teóricos dirigem o ensino da língua (gem) para seu uso e funcionamento discursivos, enquanto sistema semiótico e simbólico, contextualizado e determinado sócio- historicamente", como cita Lopes- Rossi ( 2002, p. 65-68).
Através dos gêneros que circulam na sociedade (fábula, artigo de opinião, resenha de filmes, etc.) os alunos poderão distinguir um texto formal de um informal, isto é, saberão qual gênero é mais adequado à determinada interação verbal e, assim, suas interações sociais poderão, cada vez mais, ocorrer de forma mais eficientes.
2.2- Gêneros textuais: um mega- instrumento de ensino
Tomando como base o que foi visto até aqui, podemos constatar que cabe ao professor a tarefa de gerar possibilidades para que os alunos se apropriem de características discursivas e lingüísticas de gêneros diversos, em situações reais, inseridas num determinado contexto. Para isso, o professor deve promover, por meio de projetos pedagógicos que visem ao conhecimento e à leitura, a discussão sobre o uso, as funções sociais dos gêneros escolhidos, sua composição, seu estilo, seu tema, assim como também a maneira como o “texto diz o que diz” (Groupe d’Entrevernes, 1998), ou seja, a sua discursivização.
Dolz e Schneuwly (1998) acreditam que somente:
“uma proposta de ensino/ aprendizagem organizada a partir de gêneros textuais permite ao professor a observação e a avaliação das capacidades de linguagem dos alunos; antes e durante sua realização, fornecendo-lhe orientações mais precisas para sua intervenção didática. Para os alunos, o trabalho com gêneros constitui, por um lado, uma forma de se confrontar com situações sociais efetivas de produção e leitura de textos e, por outro, uma maneira de dominá-los progressivamente".
3- As práticas pedagógicas e os gêneros textuais: a leitura e a produção de textos de acordo com os documentos oficiais e as pesquisas mais atuais de linguagem.
A partir do conceito de gênero textual como unidade de ensino, tanto em relação à leitura quanto à produção, quando pretendemos trabalhar com os textos, torna-se fundamental abordar os gêneros em que eles se concretizam, tomando como base seu aspecto temático, composicional e estilístico.
Os PCN e os PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental e Médio, respectivamente, partem da proposta que um trabalho pedagógico desta ordem explicita as vantagens de se abandonar o tradicional esquema das estruturas textuais (narração, descrição e dissertação) para adotar a perspectiva de que a escola deve incorporar em sua prática os gêneros ficcionais ou não-ficcionais que circulam socialmente.De acordo com Bakhtin (1992, p. 274):
“os gêneros constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos”.
Para Bronckart, os gêneros são compreendidos como toda unidade de produção verbal, oral ou escrita, contextualizada, que transmite uma mensagem lingüisticamente organizada e que produz um efeito de coerência no seu destinatário. Já segundo Schneuwly e Scheneuwly (1996, p.152 ), o gênero textual é caracterizado por formas lingüísticas estáveis e convencionais que correspondem a situações de comunicação precisas. Nesse sentido, pode ser comparado a um “mega-instrumento” utilizado pelos interlocutores nas diferentes situações de linguagem, sendo diferenciado por três dimensões: conteúdos veiculados, estrutura comunicativa comum ao gênero e configurações específicas das unidades lingüísticas que compõem o texto.
Os gêneros textuais que são práticas textuais vinculados à vida social, entidades sócio-discursivas e formas de ação social fazem parte da situação comunicativa. Surgem lado a lado às necessidades interacionais. Nesse sentido, há , constantemente, uma explosão de gêneros.
Assim, o trabalho pedagógico com os gêneros presentes na sociedade podem tornar as aulas muito mais interessantes e significativas, desenvolver nos alunos sua competência textual e contribuir para que o aluno, de certa forma, sejam preparados para fazer o uso da comunicação nas muitas esferas de comunicação humana que se constituem na interação social.
.4- A escolha dos gêneros mais adequados
De repente, perguntamo-nos: quais serão os gêneros textuais que devemos escolher quando vamos planejar nossas atividades pedagógicas? Será que posso trabalhar um mesmo gênero no ensino fundamental (séries iniciais e 5ª a 8ª) e no ensino médio? Dúvidas como estas são constantes entre os professores, fazendo parte de seu cotidiano. Portanto, é importante que saibamos bem como respondê-las.
Primeiro, em relação à escolha dos gêneros, podemos dizer que todos os gêneros são bons para trabalharmos em sala de aula, mas de preferência aqueles de maior circulação social ou aqueles que detém maior complexidade, os gêneros secundários. Bakhtin (1992, p. 281) divide os gêneros em primários – aqueles que ocorrem em situações cotidianas - e secundários – que ocorrem em contextos comunicativos mais complexos.
Entretanto, se pensarmos em como a vida do homem contemporâneo cercada pelos meios de comunicação de massa e suas mensagens e de como é de extrema importância o letramento midiático, deveremos sempre dar um lugar especial aos gêneros textuais da esfera da mídia (gêneros jornalísticos, publicitários, etc), mas sem esquecer daqueles gêneros da esfera da criação artística que são veiculados nas rádios, nos canais de televisão, nos jornais , nas revistas, na Internet.
Quanto ao trabalho pedagógico com alguns gêneros em detrimento a outros de acordo com a série a ser aplicada encontramos a resposta na proposta de Bronckart, Dolz e Schneuwly. Para estes autores, devemos organizar as transposições dos gêneros textuais para o ensino tendo em vista um ensino em espiral. O ensino espiral, ao contrário do linear em que se trabalha com um “tipo de texto” e depois vai passando a outro e outro “subindo degraus” em dificuldades, é aquele em que um mesmo gênero pode ser trabalhado em qualquer série, variando apenas a forma de abordagem, isto é, o aprofundamento e enfoque dado. A diferença de um nível escolar para outro está nas dimensões ensináveis desse gênero, que vão progredindo em complexificação, sendo aprofundadas de acordo com o avanço do aluno.
Conclusão:
A partir do que é preconizado pelos documentos oficiais (PCN e PCNEM), "nas funções sociodiscursivas da escrita e nas condições de produção das diferentes interações verbais" , constatamos que o trabalho com gêneros textuais de circulação na sociedade pode tornar as aulas muito mais produtivas e interessantes para os alunos.
Assim, o trabalho pedagógico com gêneros textuais pode ser o caminho para um ensino e aprendizagem efetuados de forma eficaz, contribuindo de maneira significativa para que os estudantes sejam mais competentes não só em suas atividades escolares mas, principalmente, em suas práticas sociais.
Bibliografia:
BAKHTIN, Michael. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa, área de linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/ SEF. 1998.
BRONCKART, Jean Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio discursivo. EDUC- São Paulo: PUC, 2003.
DOLZ, J. et SCHNEUWLY, B. (1996). Genres et progression em expression orale et écrite: elements de réflexions à propôs d’une expérience romande, Emjeux, 1996. (Tradução provisória de Roxane Rojo).
GROUPE D’ ENTREVERNES. Análise narrativa de textos. Paris, 1998.
LOPES-ROSSI, Maria Ap. G. (org). Gêneros Discursivos no Ensino de Leitura e Produção de Textos. Taubaté- SP: Cabral, 2002.
SWALES, J. & C. FEAK. A course for Nonnative Speakers of English. Michigan, 1994/1999.
fonte; http://www.faccar.com.br/eventos/desletras/hist/2005_g/2005/textos/019.html
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