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domingo, 31 de março de 2019
sábado, 30 de março de 2019
sexta-feira, 29 de março de 2019
Muito cuidado com a "virtude ostentação"
Por Alexandre Borges
Em tempos de grandes tragédias, é comum que as demonstrações de solidariedade, tristeza e afeto se multipliquem, o que é ótimo e merece todos os aplausos. Sem amor fraternal e altruísta, não se constrói nada que preste.
Em tempos de grandes tragédias, é comum que as demonstrações de solidariedade, tristeza e afeto se multipliquem, o que é ótimo e merece todos os aplausos. Sem amor fraternal e altruísta, não se constrói nada que preste.
As homenagens realizadas pelo povo colombiano às vítimas do acidente aéreo do vôo da LaMia ficarão para sempre em nossas memórias como prova de que nem tudo está perdido, que no peito da humanidade ainda bate um coração solidário e bom. Nunca conseguiremos ser gratos o suficiente a eles por isso.
É nestes momentos também que aparece a turma da “virtude ostentação” (“virtue signalling”, numa tradução livre do termo criado por James Bartholomew num artigo da The Spectator), uma cafonice típica da era das redes sociais e suas hashtags.
O “virtuoso ostentação” é aquele tipo de exibicionista que tenta fazer com que o assunto deixe de ser as vítimas e passe a ser ele próprio, seus sentimentos e como ele é bom por se sentir triste. A “virtude ostentação” de virtude não tem nada, é apenas soberba, um dos sete pecados capitais.
Não por acaso, o “virtuoso ostentação” não costuma ser muito solidário com quem mora ao lado, incluindo amigos e família, não demonstra gentileza fora do mundo virtual e, pior dos males modernos, não se importa com as consequências práticas das idéias que defende. Basta que ele se sinta bem com o que diz e que todos cliquem e vejam como ele é bom.
Se você perceber que um conhecido está, propositadamente ou não, caindo na armadilha de praticar “virtude ostentação”, faça um convite para que ele doe tempo ou dinheiro de verdade para a causa, que ele dê mais que um textão para as vítimas da tragédia que ele tenta sinalizar ao mundo que se preocupa.
Ajude o “virtuoso ostentação” a que ele descubra que a verdadeira virtude está em atitudes opostas, despidas de vaidade e exibicionismo, mas repletas de bondade e solidariedade que fazem a diferença, mesmo que ninguém esteja olhando ou clicando.
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terça-feira, 26 de março de 2019
segunda-feira, 25 de março de 2019
Agustina Bessa-Luís, a escritora que reinventou a literatura portuguesa
Agustina Bessa-Luís, a escritora que reinventou a literatura portuguesa
EM LIVROS
A autora de vários romances extraordinários, como “A Sibila”, “Os Incuráveis” e “Vale Abraão”, ganha, finalmente, uma obra que tenta explicá-la e à sua obra: “O Poço e a Estrada — Biografia de Agustina Bessa-Luís” (Contraponto, 503 páginas), de Isabel Rio Novo, doutora em literatura comparada. Trata-se de uma biografia não-autorizada.
Escrito em 1953, “A Sibila” é o romance que consagrou Agustina Bessa-Luís. Trata-se da história de Quina, uma personagem fascinante. A história não deixa de parecer um “romance de formação”. A mulher, espécie de adivinha — na verdade, é mais do que isto; embora seja uma mulher simples, é dotada de uma inteligência e uma perspicácia raras —, é, digamos, uma filósofa popular e uma self made woman. Basta-se a si? Não se casou, mas mantinha homens próximos, não para atendê-la sexualmente. O homem de sua vida, uma referência, como indivíduo mas não exemplo “empresarial”, era seu pai, Francisco Teixeira (homem de muitas mulheres). A mãe era uma “adversária cordial”, até se entenderem, sobretudo com a hegemonia de Quina na casa da Vessada. A linguagem da obra, com seus aforismos singulares, é uma das “personagens” deste livro tão bem escrito e formulado. “Vale Abraão” é uma releitura, das mais finas e sutis, de “Madame Bovary”, do francês Gustave Flaubert. A protagonista é Ema Paiva e seu marido é o médico Carlos Paiva. Isabel Rio Novo diz que a francesa Claudine inspirou a criação de Ema Paiva, uma mulher tão bela quanto forte, afirmativa, ainda que não teórica, não feminista. Mas não subordinava sua ação, mais do que seu pensamento, a ninguém, muito menos aos homens. Ela escolhia seus homens, ainda que mantivesse o casamento, e até sentisse ciúme do seu marido insosso.
Pai de Agustina Bessa-Luís morou no Brasil
A biografia relata que Artur Teixeira Bessa, pai de Agustina Bessa-Luís, morou no Brasil. No Rio de Janeiro, militou no submundo, “passando a viver no limiar, senão da delinquência, pelo menos da marginalidade”. Quando a escritora era jovem, não havia Tinder, então ela colocou um anúncio num jornal: “Jovem instruída desej. Corresp. c/pessoa intelig. e culta. Resp. Admin. Nº 61”. Surge Alberto de Oliveira Luís, que estudava Direito em Coimbra, e, sim, os dois se casaram e foram felizes (Alberto Luís morreu, aos 95 anos, em 2017). Quando menina, leu “O Guarani”, do brasileiro José de Alencar. “Pôs-se a lê-lo, ficando a cismar ‘naquelas terras onde bramiam os rios e aconteciam inundações pavorosas; e os coqueiros do rei eram tão altos como catedrais’”. Há outras referências ao Brasil. A autora amava o cinema, principalmente o ator-diretor Orson Welles.
A seguir, concentro-me no capítulo “Revelações da Sibila”, no qual se comenta “A Sibila” e a recepção crítica ao romance. Isabel Rio Novo, que às vezes mimetiza o estilo verbal da biografada — e escreve como prosadora, não meramente como pesquisadora rigorosa —, assinala: “Todo o indivíduo existe desde que nasce, mas há um momento na sua vida, um ato, um gesto, uma faísca, que, quando acontece, lhe credita a existência. (…) Esse momento na vida de Agustina: a premiação e a publicação de ‘A Sibila’”.
“‘A Sibila’ abriu-me as portas das letras”, disse Agustina Bessa-Luís. O romance foi concluído em 16 de janeiro de 1953 e a escritora inscreveu-o no Prêmio Delfim Guimarães, sob o pseudônimo de Stavroguine, o personagem do romance “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski (um de seus ídolos literários). “Agustina escrevera o livro por uma espécie de desafio, para tentar ganhar o prêmio, cujo valor era significativo. Nestas questões de concursos literários, aliás, Agustina ‘queria o dinheiro’, e nunca se coibiu de o admitir”, relata Isabel Rio Novo. O crítico literário brasileiro Álvaro Lins, professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Lisboa, participou do júri que concedeu o prêmio à escritora de 32 anos. O livro saiu, em 1954, pela Guimarães Editores. Depois, ganhou o Prêmio Eça de Queirós.
Mulher vencedora num mundo dos homens, a personagem “Quina” (Joaquina Augusta) é baseada em Amélia Teixeira Bessa, tia de Agustina Bessa-Luís. A escritora deu à mulher forte, inteligente e sutil o nome da avó paterna de Amélia e sua bisavó. Apesar do modelo, com características similares, Quina era Quina e Amélia era Amélia, ou, dito de outro modo, Quina era Amélia mas não só, porque também era Quina. Tão parecidas quando singulares. Instada a se explicar, Agustina Bessa-Luís praticamente expôs um credo literário que não desagradaria Erich Auerbach: “Para começar, [Quina] é uma figura de ficção porque permite que se imagine e se crie o tempo em que ela se move. E, por outro lado, é uma pessoa real. Viveu e morreu nos lugares que ainda hoje podem ser visitados, cerca de Vila Meã, onde a autora, ela própria nasceu. (…) ‘A Sibila’ é de todos; o que se ama merece repartir-se em mil versões que são uma verdade só: a da memória que se fez comum”.
A recepção crítica ao romance A Sibila
Vale transcrever um longo trecho do livro de Isabel Rio Novo, aguda leitora de Agustina Bessa-Luís, sobre “A Sibila”: “O romance não” possui “verdadeiramente uma história com princípio e fim, tão pouco uma cronologia sequencial, antes uma temporalidade da memória. (…) A estrutura narrativa” é “cortada por digressões que” tornam “sinuosa a história central de Quina. A intromissão constante da instância narradora na vivência das personagens” atribuía “a si própria uma outra condição inédita no romance português: não só a de ser uma voz narrativa, mas a de disputar um lugar de personagem entre as que ela própria recriava. Não” há “uma distinção de tempo entre quem” fala, “quem” recorda “e quem se intromete (…). A ideologia da voz narrativa e da personagem central não tendia para nenhuma solução social ou existencial, mas apontava para um vago amoralismo, que se limitava a expor a crueldade das relações humanas. E tudo isso era novo”.
A crítica contemporânea agradou-se do romance. Óscar Lopes assinalou que “A Sibila” era “um dos nossos romances simultaneamente mais regionalista, nacionalista e universalista”.
João Gaspar Simões ressaltou, na síntese de Isabel Rio Novo, “a estrutura aracnídea da narrativas, as histórias e as vozes entreçaladas, a aparente desordem e imperfeição que, com argúcia, o crítico filiava na prosa longínqua de Bernardim Ribeiro ou no caso mais próximo de Raul Brandão”.
José Régio anotou: “Felizmente, desta vez, a crítica foi quase unânime em louvar como excepcional esta obra que na verdade o é. E eis o que nos deve contentar, pois assim se congregaram, desta vez dois fenômenos igualmente raros: um, a aparição de uma obra de tal qualidade. Outro, o reconhecimento dessa mesma qualidade pela opinião mais ou menos consciente”.
Certos críticos apontaram alguns “defeitos”, como uma eventual “improvisação”, mas, no geral, a recepção foi positiva. Aceitou-se, como consenso, que “A Sibila” era uma obra-prima, que, aos 65 anos, guarda uma “jovialidade” — uma permanência — que impressiona. O romance nasceu canônico, tais o vigor romanesco e sua linguagem poderosa. A força que retira de personagens não intelectualizados e relativamente toscos lembra, quem sabe não vagamente, a prosa do americano William Faulkner.
Três anos depois da publicação do romance, António José Saraiva e Óscar Lopes, no livro “História da Literatura Portuguesa”, registram Agustina Bessa-Luís como “a personalidade mais notável dos últimos anos, pela exuberância, ainda incontrolada, do seu poder de evocação dramática e poética”.
António José Saraiva chegou a postular que Agustina Bessa-Luís, depois de Fernando Pessoa, era “a grande revelação, o segundo milagre do século 20 português”.
Eduardo Lourenço, espécie de Antonio Candido de Portugal, dada a excelência de sua crítica, destacou, aponta Isabel Rio Novo, “a revolução operada pelo romance ‘A Sibila’ no panorama das Letras nacionais, assinalando o ano de 1953 como um marco histórico entre duas épocas literárias”. O ensaísta destaca, sumariza a biógrafa, que “o significado mais profundo da obra fora o de ter inaugurado uma ‘literatura desenvolta’, ao impor ‘um mundo romanesco, insólito, veemente, estritamente pessoal, desarmante e tão profuso e rico, verdadeira floresta da memória, tão povoada e imprevisível como a vida, onde nada é esquecido e tudo transfigurado’”. O romance teria aberto as portas para a literatura de Almeida Faria e José Cardoso Pires.
Reinado da literatura feminina em Portugal
Isabel Rio Novo indica que “A Sibila” resolveu impasses da literatura portuguesa, “conciliando regionalismo e universalismo; encontrando na evocação do mundo rural substância para a análise das relações humanas e da relação do ser com a memória; anulando a velha oposição entre objetividade e subjetividade do narrador, através da intromissão de uma voz, a um tempo, onipresente e constante, mas distanciada e alheia a toda a complacência sentimental; revestindo as personagens de um sentido simultaneamente social e mítico-trágico; ou ainda reformulando os modos de representação da realidade, ‘que sem ser posta em causa, é subvertida na sua linearidade pelo momento de evocação que impõe a descontinuidade e um permanente deslize do vivido para o não vivido, do real para o sobrenatural”. O comentário deixa evidente que Isabel Rio Novo não é uma biógrafa convencional; ao contrário, é uma intérprete atenta da literatura de Agustina Bessa-Luís.
Citado por Isabel Rio Novo, o crítico Eduardo Lourenço apontou que “A Sibila” instalou “uma espécie de longo reinado da literatura feminina em Portugal”. “A escritora”, sumariza a biógrafa, “impunha um mundo da mulher até então subalternizado”. Os homens de “A Sibila” são mais divertidos e farristas, como o pai de Quina, o bon vivant Francisco Teixeira, mas são as mulheres que fazem o mundo girar. Elas, sobretudo Quina, são dominantes e os homens são quase seus vassalos. O “longo reinado de Agustina talvez constitua um dos grandes acontecimentos revolucionários, críticos e literários portugueses”.
Agustina Bessa-Luís não é feminista militante, mas, na prática, não escapa às modernas relações. “Quando Inês Pedrosa teve uma filha, Agustina telefonou-lhe a cumprimentá-la, mas, além dos parabéns, deu-lhe um conselho importante: ‘Agora vão começar a falar-lhe no casalinho, não vá nisso. É uma prisão que fazem às mulheres. Tomar conta de crianças dá muito trabalho, e depois não tem tempo para escrever. Olhe que no meu tempo era muito mais difícil ter só uma filha, e foi o que eu fiz”. Patrícia Reis recebeu um conselho: “Não deixe de fazer aquilo que tem de fazer. A família não é tudo”. Quina, personagem central de “A Sibila”, nem sequer se casou. Edipiana? Talvez. O pai gastava tudo e vivia na farra — caso parecido com o do pai da escritora —, mas Quina acumulava imóveis, joias e dinheiro, não se deixava enganar pela conversa mole dos homens e se tornou uma mulher poderosa e rica, ainda que não ostentasse. Adquiriu identidade, firmou-a e não era apenas a Sibila, a adivinha e a senhora dos bons conselhos (curiosamente, em termos de conselhos sobre negócios, um homem, Adão, era seu orientador, talvez um parceiro de conselhos).
Maior do que Saramago e Lobo Antunes
Na reportagem “Estudiosos criticam desdém do Brasil por autora portuguesa Agustina Bessa-Luís”, Marco Rodrigo Almeida, da “Folha de S. Paulo”, comenta a bronca que João Pereira Coutinho, colunista do jornal, deu “no mundo editorial brasileiro”. O intelectual português escreveu: “Mas como é possível só ter ouvido falar do maior gênio vivo da literatura portuguesa? Não é possível. Nem desculpável”.
A professora Anamaria Filizola, que escreveu uma tese de doutorado sobre a autora de “As Fúrias”, “O Mosteiro”, “Um Cão que Sonha” e “O Concerto dos Flamengos”, disse à “Folha”: “Agustina é o grande prosador da língua portuguesa do século 20”. Repare que a mestre não escreve “prosadora”…
Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp e crítico literário notável, afirma que Agustina Bessa-Luís é “muito superior” a José Saramago e António Lobo Antunes (os dois simbolizam o Fla X Flu da literatura lusa). Anamaria Filizola diz que o “tom digressivo” — eu diria, até filosófico — da prosa da escritora pode afastar leitores. Penso que, se não afastar, os leitores só terão prazer, tanto pelas histórias bem urdidas, como pelo modo como as conta, como se enrolasse e desenrolasse novelos.
Por que José Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, e não Agustina Bessa-Luís? Talvez pelo fato de que era de esquerda e a autora de “A Bela Portuguesa” não o é (ressalvo que T. S. Eliot e Mario Vargas Llosa, que não são de esquerda, ganharam o Nobel). “Seu discurso não é maniqueísta, não há nele nada de panfletário no sentido político. A predominância de uma literatura engajada, com repercussões no estrangeiro, a isolava nos meios culturais”, pontua, com propriedade, Anamaria Filizola.
No momento, aos 96 anos, Agustina Bessa-Luís vive reclusa, sob a proteção da família. Isabel Rio Novo não contou com o apoio da família da escritora para escrever o livro, o que dificultou em parte a obra, ainda assim, de raro brilhantismo e de uma delicadeza ímpar (mencionei apenas um capítulo e colhi informações rápidas de outros capítulos). A família, sua filha Mónica Baldaque, autorizou o historiador Rui Ramos a escrever a biografia. Espera-se que não seja uma hagiografia.
Numa biografia tão criteriosa, que explica tão bem a vida e a literatura, ressente-se da falta de fotografias de Agustina Bessa-Luís, de sua família e de seus amigos.
Agustina escreve sobre o Brasil, mulheres e viagens
Agustina Bessa-Luís visitou o Brasil em 1988, em companhia de Eduardo Lourenço e Arnaldo Saraiva. “Agustina confessou ter imediatamente amado o Brasil, perigoso e impulsivo, cuja violência, aliás, não temia, atrevendo-se a sair sozinha para fazer compras em São Paulo. Amou o Brasil, vasto, quente, sensual, de uma beleza incomparável e difícil para os portugueses, ‘demasiado débeis para este sol, esta claridade tropical, este segredo que resiste às maiores contradições’.”
“Uma viagem não deve ser unicamente um recreio de amantes ou um preconceito de burgueses, mas deve conter uma proposta de embaixador e um pensamento que frutifique.”
“As viagens inventaram-se para quem está triste. Se não houvesse pessoas tristes não havia agências de viagens. Que julgam que o infante D. Henrique fez ao criar a Escola de Sagres? Um ponto de partida para se poupar à melancolia.”
“Não vale a pena andar de bloco na mão e lápis afiado se o coração não vê o que lhe pertence em qualquer lugar do mundo.”
“Não julguem que as mulheres vão às compras porque são frívolas. Não, senhor. É para se distraírem da tristeza.” (Agustina Bessa-Luís, por sinal, teve depressão.)
Livro com dedicatória de Agustina Bessa-Luís
Leio a prosa de Agustina Bessa-Luís há algum tempo, sempre encantado com o vigor de suas histórias (diria, com receio de preconceito, que contêm uma linguagem viril que impressiona), e comprei alguns de seus livros quando estive em Lisboa, em 2010, e outros pelo portal Estante Virtual.
Neste mês de março, de calor imbrincado com chuvas, pedi a peça “A Bela Portuguesa” e, quando o livro chegou, na segunda-feira, 11, uma surpresa: a autora autografou o livro para a professora Teresa Telles.
Eis o que Agustina Bessa-Luís escreveu: “Para a prof. Teresa Telles, este diálogo em que a Sibila intervém. Afetuosamente, Agustina Bessa-Luís. S. Paulo 1988”. Como ela esteve no Brasil em 1988, S. Paulo é, claro, São Paulo.
Fico a pensar: por que venderam o livro autografado pela autora? Tenho certeza que a professora Teresa Telles não o faria e, se estiver viva, gostaria de devolver-lhe o exemplar, pelo qual paguei 10 reais, mais frete de 7,05 reais. Uma ninharia. Daria à mestra como presente.
fonte; https://www.revistabula.com/22027-agustina-bessa-luis-a-escritora-que-reinventou-a-literatura-portuguesa/Obrigado pela visita, e volte sempre.
domingo, 24 de março de 2019
Como conseguir ideias e escrever suas histórias?
Meus alunos sempre querem saber como conseguir ideias e escrever suas histórias. São dois problemas diferentes, duas etapas de um mesmo processo — e explico ambas neste breve artigo.
Quando você é um escritor principiante, muitas vezes ainda preso ao mito da inspiração, o processo de criar um texto parece esconder algum tipo de segredo, a chave para uma conexão direta com os deuses.
A principal dificuldade, contudo, é anterior a essa angústia: trata-se de superar certa idealização da literatura, superar o senso comum de que os textos devem partir de uma ideia rara, única, ou até mesmo genial. Ou seja, o candidato a escritor deve perceber, antes de tudo, que a literatura pode nascer — e costuma nascer — de fatos, de eventos aparentemente banais. Ou seja, nada é banal.
Esse é o primeiro passo, pois mostra ao escritor que há uma história esperando por ele em todos os lugares, em todas as situações, incluindo as mais vulgares. Trata-se, apenas, de saber olhar.
Resolvida essa questão, poderíamos concentrar a a primeira parte da resposta em três pontos que se complementam:
1) Ser curioso. Estar atento ao que nos rodeia e ao nosso íntimo. Um gesto; um diálogo com lacunas sugestivas, ouvido sem querer no balcão da padaria; a cadência dos passos de uma mulher que vemos na rua, como no soneto de Baudelaire, “À une passante”; uma lembrança perturbadora, feliz ou humilhante, desencadeada por motivos inesperados ou obscuros; a compaixão, como Flaubert e sua forma de observar as mulheres: “Eu conheci suas dores, pobres almas obscuras, úmidas de melancolia guardada, como estes pátios fundos das casas de província, cujos muros estão cheios de musgo”; ou o ódio, como Djurna Barnes, que dizia escrever às vezes “de dentes cerrados”, com uma caligrafia “tão cruel quanto uma adaga” — tudo serve à literatura.
2) Ler é essencial. Não o romancinho de 40 páginas da escritora super-hiper-neo-moderna, mas os clássicos: Tolstói, Dostoiévski, Henry James, Joseph Conrad, Hemingway, Homero, Virgílio, Leopardi, Manzoni… E ler de forma atenta, não apenas para se entreter. É preciso abandonar a leitura infantil, de quem apenas escaneia a página e permanece refém da própria imaginação — e ler com malícia, argúcia, agudeza de espírito, procurando dissecar a forma como o escritor elabora seu texto, como ele conduz seus personagens através das diferentes cenas, como descreve, narra, constrói suas frases, arranja os parágrafos, intercala os capítulos.
E, talvez o mais difícil:
3) Assumir uma postura ativa em relação à escrita, colocar-se predisposto ao trabalho de escrever. Milhares de ideias morrem porque ficam na mente do candidato a escritor que se deixa vencer pela preguiça ou pela timidez.
Mas o fundamental, repito, é estar predisposto a uma nova forma de olhar a realidade: estar aberto à riqueza, à complexidade que a vida oferece.
Antes de escrever, planejar
Depois que o escritor encontra sua ideia, o que deve fazer?
Não se enganem: escrever requer coragem — e também persistência.
É preciso permitir, sem pressa, que o tema, a ideia central, o protagonista, os principais cenários, tudo ganhe vida dentro de você.
Não seria demais comparar esse processo ao que experimentam os lepidópteros: de ovo a lagarta, depois crisálida, e só então borboleta. Lentos meses. Assim o escritor toma notas, reflete, dialoga consigo mesmo. Longos meses ruminando sua ideia, burilando-a, observando-a sob diferentes perspectivas, acrescentando novos elementos, novos personagens — e sem, ainda, escrever.
A seguir, é preciso construir o argumento — a sucessão cronológica dos fatos que compõem a história. E quanto mais minuciosa for essa cronologia, mais fácil será, depois, dar vida à narrativa.
Não importa quanto tempo demorará e não importa o seu método de trabalho: escrever na parede do quarto, colar post-its na porta do banheiro, fixar anotações num quadro de cortiça, utilizar um software como Scrivener — o importante é detalhar a história com obstinação.
Sei que muitos discordam dessas orientações. Sei que muitos escritores vão produzindo ao sabor da própria intuição. Mas sei também que, para o autor principiante, essa disciplina, esse esforço de planejamento é uma ferramenta indispensável, que lhe dará segurança, e da qual ele poderá, no futuro, se libertar.
Passo a passo, enquanto elabora o argumento, o escritor deve adensar os fatos, as cenas, impregnando-as de conflitos — interiores ou exteriores. Percebam que não se trata de um acúmulo de acontecimentos ou de uma lista de ações, mas de uma saturação psicológica, na qual as características das personagens se tornam complexas — e surgem alianças, contradições, antagonismos.
O escritor precisa construir o quadro das emoções, dos comportamentos, dos incidentes e das fatalidades, dos espaços em que a narrativa transcorrerá, das lutas surdas, dos gestos de heroísmo ou covardia, dos períodos de tempo, das dissimulações e das fraquezas.
Sem essa visão ampla, que seja realmente palpável, a tarefa de escrever será facilmente corroída pela tentação de simplificar, de recorrer a soluções fáceis — e a concisão, o laconismo será apresentado como opção estética, quando, na verdade, é somente um subterfúgio, um pretexto para não aprimorar a trama, para não se esgotar nesse cansativo trabalho.
Quando tudo estiver pronto, é hora de começar a escrever.
fonte: https://rodrigogurgel.com.br/como-conseguir-ideias-e-escrever-suas-historias/
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RODRIGO GURGEL
Sou crítico literário — e professor de literatura e escrita criativa. Escrevi dois livros: Esquecidos & Superestimados e Muita retórica — Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha). Neles, faço uma revisão crítica dos principais prosadores da literatura brasileira. Minha Oficina de Escrita Criativa, com turmas semestrais, acontece em São Paulo (SP). Publico resenhas e ensaios no Jornal Rascunho e na Folha de S. Paulo.
Obrigado pela visita, e volte sempre.
sexta-feira, 22 de março de 2019
quinta-feira, 21 de março de 2019
quarta-feira, 20 de março de 2019
Gaura Purnima, O Advento do Avatar Dourado
Leia também em: www.voltaaosupremo.com
Vrindavana Dasa Thakura(Da obra Sri Chaitanya-bhagavata)
Sob um misterioso eclipse lunar e rodeado de exclamações do santo nome de Hari, nasce o revolucionário e amoroso Chaitanya Mahaprabhu.
A vinda do Senhor Krishnachandra a este mundo material é muito difícil de compreender. Sem primeiramente receber a misericórdia do Senhor, quem tem poder para entender tal nascimento? Seus passatempos supramundanos são inconcebíveis e inacessíveis. O senhor Brahma declara no Srimad-Bhagavatam (10.14.21): “Ó Senhor do Universo, ó Pessoa Suprema, ó Alma Suprema, ó Senhor dos místicos, como és maravilhoso! Quem dentro dos três mundos pode saber quando, onde, por qual motivo e como expandes Tua potência espiritual interna, yogamaya, e executas Teus passatempos transcendentais?”. Quem pode apontar a razão ontológica para o advento do Senhor neste mundo? Somente posso ter por fonte o Bhagavad-gita e o Srimad-Bhagavatam para encontrar a razão de Seu aparecimento. “Sempre e onde quer que haja declínio na prática religiosa, ó descendente de Bharata, e uma ascensão predominante de irreligião – aí, então, Eu próprio descendo. Para libertar os piedosos e aniquilar os malfeitores, bem como para restabelecer os princípios da religião, Eu mesmo venho, milênio após milênio”. (Bhagavad-gita 4.7-8) À proporção que as práticas religiosas enfraquecem, a irreligião ganha espaço. Quando isso ocorre, o senhor Brahma e os demais semideuses se aproximam do Senhor e oram pela proteção dos devotos e pela aniquilação dos demônios.
A fim de restabelecer o processo religioso da era (yuga-dharma), o Senhor Supremo, acompanhado de Suas expansões e associados, descendeu à Terra. A religião de Kali-yuga é o canto congregacional do santo nome do Senhor (hari-sankirtana) e para estabelecer de forma definitiva esse processo, o Senhor apareceu como o filho de mãe Shachi.
Confirma-se no Srimad-Bhagavatam (11.5.31-32) que a Suprema Verdade Absoluta, Sri Chaitanya Mahaprabhu, nasce unicamente com o propósito de propagar o canto congregacional do santo nome de Krishna. Ali se diz: “Os devotos sempre oferecem orações à Suprema Personalidade de Deus através de vários mantras e observam os princípios reguladores das obras védicas suplementares. Na era de Kali, contudo, aqueles que forem inteligentes executarão especificamente o canto congregacional do maha-mantra Hare Krishna, adorando a Suprema Personalidade de Deus, que aparece nesta era como um devoto sempre a cantar as glórias de Krishna”.
A célebre escritura Srimad-Bhagavatam anunciou com milênios de antecedência o advento do Senhor Chaitanya.
O Senhor Chaitanya-Narayana revelou que o hari-sankirtana, o canto congregacional do santo nome do Senhor Hari, é a essência de toda a religião em Kali-yuga. Para o estabelecimento desse Movimento de Sankirtana, acompanhado de Seus associados, Ele aparece em Kali-yuga.
Cumprindo o desejo do Senhor, Seus eternos associados aparecem antes dEle, aceitando nascimento no mundo dos seres humanos. Ananta, Shiva, Brahma e outros grandes sábios nasceram como associados pessoais do Senhor Supremo. Todos eles nasceram como grandes devotos bhagavatas do Senhor. O Senhor Chaitanya, sendo o próprio Krishna, era plenamente ciente de suas identidades. A maior parte deles nasceu em Navadvipa, mas alguns nasceram em Chati-grama, alguns em Radha-desha e ainda outros na Orissa.
As localidades à beira do Ganges são todas puras e sagradas. Por que, então, esses vaishnavas nasceram em terras ímpias? Se o próprio Senhor Chaitanya fez Seu advento a este mundo à beira do Ganges, por que, então, Seus associados nasceram em outros locais distantes? Em suas viagens, os Pandavas nunca iam a locais onde o Ganges ou os santos nomes do Senhor Hari não estivessem presentes.
Por que associados do Senhor Chaitanya nasceram em terras não banhadas pelo Ganges?
A resposta para isso é que, porque o Senhor Krishna Chaitanya ama todas as entidades vivas assim como um pai ama todos os seus filhos, Ele ordenou que tais grandes devotos aparecessem nesses locais diversificados. O aparecimento do Senhor teve o único propósito de remir o mundo material. A fim de cumprir esse propósito, o Senhor arranjou que Seus devotos puros nascessem em terras ímpias e em famílias igualmente impiedosas. Onde quer que os vaishnavasmanifestem suas glórias se torna um local puro e sagrado, um local de peregrinação. Assim, criando novos locais de peregrinação, o Senhor Chaitanya-Narayana providenciou que Seus devotos descessem ao mundo material nesses diferentes locais.
Embora tenham nascido em localidades variadas, os devotos se encontraram, como que por acaso, em Navadvipa. A terra natal do Senhor Chaitanya foi Navadvipa, daí ser Navadvipa o local de encontro de todos eles. As glórias de Navadvipa não podem ser comparadas às de nenhuma outra parte do mundo. Ciente de que o Senhor apareceria ali, o demiurgo Brahma dotou Navadvipa com tudo o que há de auspicioso.
Quem é capaz de descrever as opulências de Navadvipa? Em um único de seus balneários, centenas e milhares iam se banhar no Ganges. Pela graça da deusa Sarasvati, os residentes de Navadvipa, de todas as diferentes idades, eram eruditos expoentes das escrituras. Toda a população era muito orgulhosa de seu conhecimento material; mesmo jovens garotos debatiam apaixonadamente com os anciãos eruditos. Pessoas vinham de diferentes províncias para estudar em Navadvipa, porque ali poderiam desenvolver gosto pelo estudo sistemático. O número de estudantes de Navadvipa era incalculável, e o número exato de professores também era desconhecido. Agraciados pelo olhar favorável de Lakshmi-devi, os residentes de Navadvipa estavam contentes, mas, estando interessados em degustar apenas sabores materiais, desperdiçavam a duração de suas vidas.
Os residentes de Navadvipa tinham sobre si o olhar favorável de Lakshmi-devi.
À medida que o orgulho e a mentalidade materialista cresciam entre eles, o gosto pelo serviço devocional ao Senhor Supremo diminuía, e, com a entrada de Kali-yuga, isso se agravou consideravelmente. A única prática religiosa conhecida era a observação de vigílias invocando semideuses e semideusas – especialmente Mangala Chandi Durga – para a obtenção de efêmeros benefícios materiais. Alguns arrogantemente adoravam Manasa, a deusa das cobras, e outros desperdiçavam grandes riquezas oferecendo-as a deidades que não passavam de bonecos de deuses e deusas. Eles esbanjavam grandes somas de riquezas no casamento de seus filhos e filhas e, dessa maneira, desperdiçavam a duração de vida de que dispunham neste mundo.
Mesmo os supostos sacerdotes de elite – Bhattacharyas, Chakravartis e Misras – desconheciam a razão das escrituras. Embora ensinassem as escrituras, suas atividades não eram condizentes com as injunções das mesmas. Mesmo enquanto vivos, a forca de Yamaraja já repousava no pescoço tanto dos professores quanto de seus alunos.
Ninguém discutia krishna-kirtana, a verdadeira religião de Kali-yuga do cantar dos nomes e glórias do Senhor Hari. Não podendo apontar falhas em outros, todos preferiam ficar em silêncio. Sequer um único nome de Deus escaparia das bocas daqueles pretensos renunciantes e eremitas. Aqueles considerados os mais piedosos da sociedade podiam ser ouvidos repetindo o nome de “Govinda” ou “Pundarikaksha” uma vez ao dia enquanto se banhavam. Perspectivas devocionais estavam invariavelmente ausentes nas explicações de obras transcendentais como o Bhagavad-gita e oSrimad-Bhagavatam.
Testemunhando o mundo inteiro confuso pela energia ilusória do Senhor Vishnu, os devotos sentiam profunda tristeza. Eles se perguntavam: “Como todas essas almas serão libertas? Elas estão hipnotizadas pelo mito da gratificação dos sentidos. Embora sejam solicitados a cantar os santos nomes do Senhor Krishna, elas se recusam e seguem com suas intermináveis discussões acerca de conhecimentos ordinários. Como todas essas almas serão libertas?”.
O pequeno número de devotos vaishnavas continuava com suas atividades devocionais. Eles adoravam o Senhor Krishna, banhavam-se no Ganges e discutiam tópicos conscientes de Krishna. Apiedados da condição em que a humanidade se encontrava, os vaishnavas oravam: “Ó Senhor Krishnachandra, por favor, derrama sem demora Tua misericórdia sobre todos”.
O líder dos vaishnavas de Navadvipa se chamava Advaitacharya. Ele era a personalidade mais gloriosa de todo o mundo. Ele era o melhor exponente de jnana (conhecimento), bhakti (serviço devocional) e vairagya (renúncia). Suas explicações sobre krishna-bhakti (devoção a Krishna) eram como aquelas dadas por Shiva em pessoa. Quando discutia qualquer passagem de qualquer escritura, Sua interpretação conclusiva para todos os versos era: “Devoção aos pés de lótus do Senhor Krishna é o melhor de todos os caminhos espirituais”. Ele constantemente adorava o Senhor Krishna com grande felicidade e devoção oferecendo-Lhe tulasi-manjaris e água do Ganges.
O líder do pequeno grupo de vaishnavas existente antes do advento do Senhor Chaitanya era Srila Advaitacharya.
Dessa maneira, Advaitacharya passava Seus dias em Navadvipa. Ele Se entristecia profundamente ao contemplar uma pessoa destituída de devoção ao Senhor. Advaitacharya Prabhu era por natureza muito compassivo. No íntimo de seu coração, Ele tentava elaborar um plano para libertar as almas condicionadas. Ele pensou: “Se meu Senhor fizer Seu advento neste mundo, todos serão libertos”. Ele adorava constantemente os pés de lótus de Krishna com determinação indivisa. O Senhor Chaitanya fez Seu advento neste mundo devido aos apelos sinceros de Advaitacharya Prabhu. O próprio Senhor repetia esse fato com grande frequência.
Com a liderança de Sri Advaitacharya, os devotos empreenderam uma iniciativa para tentar fazer com que as pessoas se tornassem conscientes de Deus, mas nem mesmo uma só alma entendeu a mensagem deles. Acometido por uma grande aflição ante o sofrimento de tantos, Advaita passou a jejuar. Os vaishnavas respiravam com dificuldade vendo o estado de seu líder.
“Por que cantar e dançar para Krishna? Qual o significado do canto congregacional dos santos nomes do Senhor? O que é ser um vaishnava?”. Os materialistas grosseiros não podiam compreender nada disso, pois tudo o que queriam na vida era dinheiro e filhos. Quando se reuniam, tais ateístas zombavam e riam dos vaishnavas.
Enquanto os devotos andavam pela cidade de Navadvipa cumprindo seus deveres, não ouviam em parte alguma discussões sobre o Senhor Supremo ou sobre devoção. Perturbados com tudo aquilo, os devotos desejavam morrer. Eles suspiravam o nome de Krishna enquanto respiravam pesadamente. A dor deles ante os frívolos empreendimentos de uma sociedade materialista era tão grande que não tinham apetite. Em consequência à rejeição de toda a felicidade material por parte dos devotos, o Senhor Supremo começou a preparar Sua vinda ao mundo material.
Em Navadvipa vivia uma grande personalidade transcendental chamada Sri Jagannatha Misra. Ele era tal qual Vasudeva Maharaja: sempre ocupado em atividades transcendentais. Ele era magnânimo e possuía no mais alto grau todas as qualidades bramânicas. Suas virtudes eram sem paralelo. Sua dedicada e casta esposa, de nome Srimati Shachidevi, era a personificação da devoção ao Senhor Supremo. Ela é a mãe de todo o universo.
A irreligiosidade manifesta no começo de Kali-yuga era um indicativo do que o futuro reservava; não haveria serviço devocional ao Senhor Supremo, vishnu-bhakti, em nenhum lugar do mundo material. Em consequência do desaparecimento da religião verdadeira e do sofrimento de Seus devotos, o Senhor Supremo advém a este mundo.
A Suprema Personalidade de Deus, o Senhor Chaitanya Mahaprabhu, entrou, então, nos corpos de Shachidevi e Jagannatha Misra. Nesse momento, as interjeições “Jaya! Jaya!” se manifestaram das bocas do Senhor Ananta. Sri Jagannatha Misra e mãe Shachi ouviram o clamor de Anantadeva como se estivessem em um sonho. Os corpos de ambos exibiam grande resplandecência, embora olhos ordinários não pudessem ver. Shiva, Brahma e os demais semideuses, entendendo que a Suprema Personalidade de Deus estava prestes a aparecer, vieram até a Terra para oferecer orações.
Os semideuses oraram: “Repetidas glórias ao Senhor Mahaprabhu, o mantenedor de todos! Repetidas glórias ao Senhor que faz Seu advento neste mundo material para inaugurar o Movimento de Sankirtana! Repetidas glórias ao Senhor Chaitanya, o protetor dos Vedas, da religião, dos devotos santos e dos brahmanas piedosos! Repetidas glórias ao Senhor Chaitanya, cuja forma transcendental é absoluta, eterna e plena de bem-aventurança. Repetidas glórias ao Senhor dos senhores, cujos desejos não conhecem obstrução. O Senhor permanece imanifesto em milhões e milhões de universos, mas Se manifesta pessoalmente no ventre de Shachidevi. Quem é capaz de compreender os desejos do Senhor? A criação, a manutenção e a aniquilação dos universos não passam de um aspecto de Seus maravilhosos passatempos. Se assim desejasses, todos os universos seriam imediatamente destruídos. Assim, não serias capaz de matar Ravana e Kamsa simplesmente pronunciando uma única palavra? Apesar de tal habilidade, apareceste nas casas do rei Dasharatha e de Sri Vasudeva para matar esses dois demônios. Ó Senhor, quem seria capaz de desvendar o mistério por detrás de Tuas atividades? Apenas Tu conheces o Teu coração. Se este fosse Teu desejo, um único de Teus servos poderia libertar as almas de todos os inumeráveis universos. Mesmo assim, vens pessoalmente a este mundo, ensinas os princípios religiosos e tornas a todos venturosos”.
Continuaram: “Em Satya-yuga, apareceste em uma compleição clara e ensinou o caminho da austeridade e da meditação executando Tu mesmo austeridades. Portando uma danda e um kamandalu, com Teus cabelos descuidados e trajando pele de antílope, descendeste a este mundo como um brahmachari com o intuito de estabelecer os princípios da religião. Em Treta-yuga, manifestando Tua bela forma como o avermelhado Yajna-purusha, ensinaste a prática religiosa dos sacrifícios. Com a sruk e a srava em mãos, pessoalmente conduziste os rituais sacrificatórios”.
Oraram ainda: “Em Dvapara-yuga, apareceste com a bela compleição enegrecida de uma nuvem de monção e estabeleceu a adoração à Deidade em toda residência. Descendendo a este mundo, Tu Te tornaste um grande rei. Trajando veste amarelas e carregando em Teu corpo transcendental a marca da Srivatsa e outros sinais exclusivos, executaste opulenta adoração à Deidade. Agora, neste presente nascimento, Tu Te apresentarás na forma de um devoto puro e incondicional do Senhor. Com todo o Teu poder, pregarás o Movimento de Sankirtana, o movimento do cantar do santo nome do Senhor Krishna. O néctar do canto congregacional do santo nome irá imergir todo o universo”.
Em conclusão, disseram os semideuses: “Ó Senhor, concede-nos Tua benevolência de forma que sejamos afortunados o suficiente para ver os maravilhosos passatempos que desfrutarás em Navadvipa. Ó Senhor, daqui a alguns dias, satisfarás o acalentado desejo da deusa Ganga ao desfrutar de muitos passatempos em suas águas. Tua primorosa forma transcendental, que os místicos e yogis veem mentalmente em suas meditações, tornou-se manifesta em Navadvipa. Oferecemos nossas respeitosas reverências a Navadvipa-dhama e à casa de Shachidevi e Jagannatha Misra, onde escolheste realizar Teu aparecimento divino”.
Desse modo, Brahma e outros semideuses, mantendo-se invisíveis, ofereciam diariamente orações seletas ao Senhor Supremo.
O Proprietário Supremo de toda a criação permaneceu no ventre de Shachidevi. Com a ascensão da Lua cheia do mês de Phalguna, Ele tornou-Se manifesto. Toda a auspiciosidade residente em diferentes partes da manifestação cósmica se apresentou em plenitude naquela noite de Lua cheia. A Suprema Personalidade de Deus fez Seu advento em companhia do processo do canto congregacional do santo nome. Ele propagaria esse processo de sankirtanapraticando-o Ele mesmo.
Com a ascensão da Lua cheia do mês de Phalguna, Chaitanya Mahaprabhu tornou-Se manifesto.
Quem é capaz de compreender as estonteantes atividades do Senhor Supremo? Por Seu desejo, Rahu cobriu a Lua naquela noite. Como arranjado pelo Senhor, todos de Navadvipa, vendo o eclipse lunar, começaram a cantar bem alto os auspiciosos nomes do Senhor Hari. Muitos milhões de pessoas correram para o Ganges, onde se banhavam e clamavam: “Haribole! Haribole!”.
O som tumultuoso do cantar do nome do Senhor Hari tomou primeiramente toda Nadiya e, então, penetrou em todas as camadas do universo material até Brahmaloka. O santo nome do Senhor, não obstante, jamais se contaminou com a atmosfera material. Vendo aquele acontecimento miraculoso, os devotos pediram em prece: “Que este eclipse dure para sempre!”.
Os devotos experimentaram profunda felicidade e falaram entre si: “Todos estão tomados de bem-aventurança. Deve ter sido este o sentimento experimentado pelos habitantes da Terra quando o Senhor Krishna apareceu neste mundo”.
Enquanto os devotos se dirigiam ao Ganges para se banharem, as quatro direções eram tomadas pelo sankirtana dos santos nomes do Senhor Hari. Mulheres, crianças e idosos, e piedosos e ímpios – todos cantavam o santo nome do Senhor Hari durante o eclipsar da Lua. O único som dentro do universo era o onipresente cantar de “Hari! Hari!”. Os semideuses derramavam flores por toda parte e proclamavam vitória enquanto tocavam seus tambores dundubhi. Em meio a essa primorosa exaltação, o Senhor, a alma do universo, apareceu na Terra como o filho de Shachidevi.
A Lua fora jantada por Rahu e o oceano do santo nome inundara Navadvipa. Bandeiras de vitória tremulavam ao vento indicando que Kali encontrara-se com a derrota personificada. O Senhor Supremo havia nascido! Todos os quatorze mundos conversavam sobre o grande evento.
Meramente pela contemplação do Senhor Gaurachandra, todos os moradores de Nadiya se tornaram satisfeitos em plenitude. Agora, toda a lamentação se dissipara. Sua refulgência incandescente ofusca os raios solares. Quanto a Seus olhos ligeiramente caídos, não ousarei tentar nenhuma metáfora. A atmosfera está tomada de boa-venturança: hoje, as glórias do Senhor Chaitanya estão manifestas! Cada vibração rugiente do nome do Senhor Hari é ouvida em todos os mundos até o planeta de Brahma, carregando a excelsa notícia do nascimento do Senhor. Sua esplêndida compleição se assemelha à cor da pasta de sândalo. Seu peito é amplo, e nele se dispõe uma dançante guirlanda de flores silvestres. Seu rosto iridescente é prazeroso, consolador e refrescante como a Lua. Seus longos braços se estendem até Seus joelhos.
Clamores de vitória e glorificações ao Senhor permeavam todas as direções, e a Terra se sentia especialmente favorecida pelo advento do Senhor Chaitanya. Alguns cantavam com profunda satisfação, enquanto outros dançavam em êxtase. Para Kali, entretanto, estar em meio àquela celebração espiritual era algo desesperador. A Lua dourada, o Senhor Chaitanya Mahaprabhu, nasceu. Não há nenhum lugar nas dez direções que não esteja tomado de bem-aventurança.
Sua beleza humildava milhões de cupidos. Ele sorria ao ouvir o cantar de Seu santo nome. Sua face amável e olhos encantadores, somados aos sinais auspiciosos trazidos em Seus pés, como a bandeira e o raio, bem como toda a Sua forma graciosa belamente decorada, estavam ali para roubar a mente e os sentidos de todos.
Toda forma de medo e desânimo foi imediatamente dissipada pelas Suas glórias e opulências. Os semideuses cantavam estupefatos ante o aparecimento do Senhor Chaitanya. Contemplando o rosto do Senhor, refrescante como a Lua, refrescante o bastante para curar o sofrimento ígneo da vida material, os semideuses ficavam imensamente satisfeitos. Era uma ocasião festiva e gloriosa. Ananta, Brahma, Shiva e outros semideuses haviam agora assumido formas humanas. Tendo o eclipse por pretexto, eles também cantavam o nome do Senhor Hari. É-me impossível descrever a exultação deles todos.
Mãe Shachi, com o pequeno Nimai no colo, recebe visitas.
As quatro direções de Nadiya estão definitivamente tomadas pelo cantar de “Hari! Hari!”. Navadvipa jamais provara fortuna como esta. Juntos, humanos e semideuses desfrutariam de inúmeros passatempos. Todos os semideuses, aproveitando não poderem ser vistos na escuridão do eclipse, foram até o quintal da casa de mãe Shachi e ofereceram suas reverências ao Senhor Chaitanya. Quem seria capaz de descrever esses insondáveis e confidenciais passatempos do Senhor, tão difíceis de se compreender? Alguns ofereciam preces, alguns seguravam uma sombrinha e outros O abanavam com abanos chamara, enquanto outros derramavam flores, cantavam e dançavam.
O retumbar dos tambores dundubhi se misturava aos hinos, preces e música dos semideuses, fazendo o ar dançar. “Hoje, sem mais espera, conheceremos a Suprema Personalidade de Deus, que é um mistério mesmo para os Vedas”. Os semideuses de Indrapura estavam euforicamente felizes; tumultuosamente se decorando, eles mal podiam acreditar terem recebido a benção de nascer em Navadvipa, onde o Senhor lhes daria Sua venturosa companhia. Devido à excessiva felicidade que sentiam pelo nascimento do príncipe de Navadvipa, o Senhor Chaitanya Mahaprabhu, eles se abraçavam e se beijavam sem nenhum constrangimento. Não havia mais distinção no critério de amigos ou inimigos.
Muito curiosos, os semideuses chegaram a Navadvipa em meio ao sonoro cantar do nome de Deus. Provando o gosto nectáreo daquele cantar, o êxtase deles foi tamanho que quase perderam a consciência. Parecendo um tanto intoxicados, cantaram: “Chaitanya! Jaya! Jaya!”. Na casa de Shachidevi, eles contemplavam a belíssima forma do Senhor Chaitanya, que era gloriosa como o encontro de dez milhões de luas. Usando o eclipse como justificativa, Ele adveio em Sua forma semelhante à humana e fez com que todos cantassem bem alto o santo nome do Senhor Hari.
Leia também: Predições Escriturais Referentes ao Senhor Chaitanya, O Senhor Caitanya e o Renascimento da Devoção.
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