Como já é do conhecimento de muitos acaba de ser reeditado o primeiro livro de Gustavo Corção - A Descoberta do Outro. Durante muitos anos várias editoras procuraram em vão os herdeiros de Corção para pedir autorização de publicar esta obra-prima do nosso fundador e mestre. Agora foi acordado à Vide Editorial. Mérito deles.
Não posso deixar de recomendar vivamente a leitura deste livro e a Editora Permanência não deixará de promover sua venda. Por outro lado, resta-nos uma ponta de tristeza pois, sendo os herdeiros espirituais do pensamento e do combate de Gustavo Corção, seria muito mais coerente e natural que nós pudéssemos difundir a obra de Gustavo Corção. Mas não nos foi acordada essa possibilidade.
No intuito de aconselhar a leitura e de assinalar os aspectos mais importantes desse livro único no seu gênero, e para ajudar o leitor menos acostumado com as belas letras, escrevi o Prefácio que segue.
Foi aos dezesseis anos que eu li pela primeira vez A Descoberta do Outro. Abri-o como quem abre um testamento, tão grande era a presença do autor em minha vida. Em casa o chamávamos Vovô Corção, pois de fato ele fora um pai para o meu próprio pai. O pensamento e a obra de Gustavo Corção tornaram-se como uma herança espiritual que recebi enquanto crescia, e que assumi na Permanência.
Ao longo desses 40 anos reli este livrinho dezenas de vezes, ora por gosto, ora por estudo. Em 1980, por exemplo, foi para ajudar na revisão da edição francesa, publicada em 1987. Mais recentemente, colaborei na preparação de uma matéria sobre Gustavo Corção, na Revista Conhecimento Prático de Literatura[1], e mais uma vez fui buscar o primeiro livro do grande escritor para ilustrar o artigo que escrevi para a ocasião.
Aos poucos fui percebendo que A Descoberta do Outro era muito mais do que um relato da conversão do seu autor. A etiqueta de “literatura existencialista” que eu lera em alguns críticos há muitos anos, motivada talvez pela força de vida humana presente na obra, já não fazia sentido. Havia algo de muito mais profundo a ser explorado no livro. No início, achei que isso se dava por causa do ímpeto de conversão que o livro propõe ao leitor, o que fazia dele uma apologética da verdadeira fé, a conduzir o leitor diante de certa evidência no que toca a natureza da fé, de Jesus Cristo e de sua Igreja.
Tornei à leitura do texto para preparar umas aulas para o quadro de professores do Colégio São Bernardo, nas quais eu pretendia mostrar alguns aspectos da verdade como fim da educação. Parti do ponto a que tinha chegado no artigo que escrevera para a revista citada, presente na parte central do livro, que é o da restauração do bom funcionamento da nossa inteligência. E, mais uma vez, me espantei diante da grandeza da obra. De novo vi-me impelido a penetrar nas cavernas misteriosas do autor, para encontrar a luz presente desde as primeiras páginas, mal percebida, não apreendida nem assimilada.
Temos, pois, diversos níveis de leitura para A Descoberta do Outro. Podemos saborear, em primeiro lugar, a língua de Machado de Assis, o jogo lúdico com que Gustavo Corção convida seu leitor a brincar com ele, dentro do livro, como se fora o quintal de sua casa. Ao ritmo saboroso das frases acrescenta-se o uso inovador das palavras, alguns neologismos só cabíveis na pena dos grandes mestres. Por outro lado, será de grande proveito para todos conhecer alguns detalhes da vida do autor, seu itinerário espiritual, a passagem do materialismo cientificista para a descoberta do Outro, que o invade, rouba, e lança num ímpeto que durará até o fim de sua vida. Finalmente, algum leitor gostará de ir em busca daquela aventura do conhecimento provocada por este mestre do pensamento e da reta razão. A estes, porém, devo alertar sobre a sobriedade da leitura, seu lado árduo, exigente, ferindo a alma no seu mais profundo ser, fazendo desmoronar, qual imensa avalanche, os parâmetros equivocados de séculos de liberalismo, individualismo e de amor-próprio. Coragem, leitor, pois no fim da travessia encontra-se a luz da verdade.
Para estes, pois, dirijo agora algumas indicações, de modo que percebam ao longo do livro os vãos escondidos que devem ser iluminados pelos olhos atentos do leitor, e de onde sairão as pistas dessa verdadeira “caça ao tesouro”.
Os primeiros capítulos do livro parecem apresentar o escritor Gustavo Corção na sua vida antes da conversão. Faz a descrição da sua condição de escravo da técnica, da descoberta da situação contraditória do mundo, onde os homens se dividiam entre burgueses indiferentes e uma multidão de trabalhadores e pobres. Explica como essa descoberta o levou ao materialismo histórico e recorda passagens saborosas das suas ilusões políticas. Porém, um leitor mais atento perguntaria ao escritor por que razão ele conta certos acontecimentos banais da sua vida, situações sem aparente relevo e que poderiam acontecer na vida de qualquer pessoa, sem que entrasse num livro de autobiografia.
O que não é fácil compreender numa leitura mais amena é que aquelas situações não foram vividas por você, leitor, ou por mim, mas por um homem que tinha talvez largado tudo pelos caminhos da vida, menos a exigência da sua inteligência. E foram essas banais circunstâncias que vieram a dar a bofetada que provocou a visão do autor, de que “estamos sendo queimados”.
Nos capítulos “Era o mínimo de nós” e “Close up”, Gustavo Corção inicia a descoberta das mais importantes lições, tiradas das situações mais simples, em que qualquer outro não veria nada demais. Diante da coroa dentária mal colocada do tenente Lino, o autor conquista uma marca definitiva da sua vida. Procure, leitor, estas passagens em que o autor dá uma guinada na narrativa, muda o tom do ensaio e, como quem não quer nada, nos deixa a pista do tesouro escondido.
O materialismo histórico vai ficando para trás, torna-se passado na cabeça do engenheiro e inventor, apesar do longo caminho que terá pela frente. Depara-se então com o vazio da sua vida, o tempo que passa e tudo consome. E do tombo na rua de uma velhinha, Corção percebe que os homens vivem em um mundo absurdo e sem sentido. Onde estará a chave da vida? “Haveria alguma coisa que fosse o que era?” pergunta-se.
As situações vão passando, sempre com a iluminação de sua inteligência para as coisas profundas que cada uma delas guarda. A descoberta de que o inusitado, o anormal, atrai mais o homem do que a normalidade, e a percepção de que cada coisa é o que é. O quadro é pintado com letrinhas, e o colorido da tela da vida ilumina o seu entendimento.
Mas existem manchas nesta pintura da vida dos homens, e nos aproximamos do centro da questão. Em “Afonso tinha razão” e “Gostos e opiniões”, inicia-se o processo da “opinião”, no qual Gustavo Corção descobre o espinho que tortura a nossa existência. A opinião parece ser um conhecimento, mas não é; ao contrário, é produzida nos porões da nossa vontade e se fantasia de inteligência, bloqueando a verdade. A opinião é um apetite que precisa ser domado pela razão, sob o risco de engolir o homem. Foi o que o mundo liberal conseguiu fazer conosco.
Mais não digo, e deixo ao leitor o juízo sobre os capítulos que seguem, pois fomos conduzidos até eles sem percebermos muito bem aonde chegaríamos. Existe um defeito dentro de nós, uma falha no nosso entendimento, introduzida pelo próprio mundo em que vivemos. E não sabíamos disso. É necessário devolver às nossas inteligências a homogeneidade da nossa equação. Temos carência de certos sensos perdidos, e vagamos pela vida a dar cabeçadas, sem enxergarmos aonde somos conduzidos.
E a grande descoberta de Corção são os três sensos que refazem essa homogeneidade da nossa natureza, permitindo-nos ter novamente contato com os objetos que estão fora de nós.
Estamos no limiar de uma nova vida. Vivíamos como os homens do mito da caverna, envoltos em opiniões nebulosas e em ilusões sem fim. A luz do objeto nos liberta desse mal, e nos abre novos horizontes de uma beleza infinita. Mas o caminho ainda é longo até estarmos diante do Outro. Uma vez libertados de nós mesmos, seria um desperdício, uma inutilidade, usarmos das prerrogativas de uma inteligência conhecedora do seu objeto, da verdade de cada coisa, apenas para saborearmos as coisas deste mundo. Se é verdade que as coisas são o que são, não encontraremos repouso para nossa sede de saber enquanto não conhecermos o incognoscível, enquanto não contemplarmos face a face o Criador de todas as coisas.
Depois de passar a vertente da montanha, Gustavo Corção nos conduz pelas escarpadas franjas que o levaram à conversão. Aqui também o autor é exigente com seu leitor, toma-o pelo braço, e fala a ele como a um amigo; fala sobre a fé, a esperança e a caridade. Cada uma das três virtudes teologais terá seu papel na transformação da alma que descobriu, no meio da vida, o objeto do seu saber, a força do seu olhar, e o verdadeiro amor de união contemplativa.
Como que invertendo a simplicidade das histórias do início do livro, Corção nos apresenta a grandeza das histórias de um reino sublime, onde toda uma vida acontece, longe daqui, em outra vida, em outro mundo, mais real e mais sólido do que o nosso, por ser eterno e imperecível, e onde sabemos que nos foi preparado um lugar. Estamos sendo esperados, ansiosamente aguardados para o banquete sagrado. Hoje sabemos que é verdade, hoje queremos que ele chegue.
São estas lições que Gustavo Corção conta em seu primeiro livro; elas estão presentes em toda a sua obra. Nesse aspecto, A Descoberta do Outro é um livro único, essencial. Muito podemos dizer sobre a obra magistral deixada por Corção nos dez últimos anos de sua vida, quando escreveu as 1200 páginas da mais lúcida análise da sociedade humana, contida em Dois Amores Duas Cidades[2] e em O Século do Nada[3]. Por seu sentido político e civilizacional estes dois livros abrangem temas da mais alta importância. Porém, em seu primeiro livro, Corção realiza dentro de nós a necessária restauração que nos permitirá compreender todo o resto.
E então, leitor? pergunta Corção em certo momento do livro. E então, leitor? pergunto eu. Com que olhar você abrirá as páginas dessa descoberta?
[1] Conhecimento Prático de Literatura nº 30, Editora Escala Educacional.
[2] Agir Editora, 1967. Assinalo que o próprio Corção não admitiria uma simples reedição desse livro, pois descobriu, ao escrevê-lo, que havia algo de muito errado na sua consideração sobre a política dos povos. Corção escreveu O Século do Nada para explicar essa descoberta. Portanto, só podemos entender o primeiro se lermos junto o segundo.
[3] Editora Record, 1973.
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