Discriminados no passado, os cursos de tecnologia ganham credibilidade e passam a atrair um público cada vez mais jovem e voltado para o mercado profissional
Patrícia Pereira
No laboratório: aulas práticas atraem quem quer pôr a mão na massa |
Se fosse um filme de ficção, seria este o momento da trama em que o mocinho dá a grande virada. Mocinhos, neste enredo, são os cursos superiores de tecnologia, mais conhecidos como tecnólogos. Eles já foram confundidos com cursos técnicos, pouco valorizados no mercado de trabalho e procurados só por aqueles que perderam a chance de se formar na hora certa. Isso tudo está muito perto de ser passado. Nos últimos anos, a procura cresceu, o perfil dos alunos mudou e o mercado criou nichos que, adivinhe, só os tecnólogos conseguem ocupar.
O número de cursos superiores de tecnologia cresceu 96,67% entre 2004 e 2006, passando de 1.804 para 3.548 em todo o país, segundo dados do Ministério da Educação. Só no Estado de São Paulo, de 1998 a 2004, a quantidade de alunos ingressantes nas graduações tecnológicas aumentou 395%, de acordo com o Censo Nacional da Educação Superior realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Como a flexibilidade é um dos pontos centrais dos cursos superiores de tecnologia, Francisco Borges, diretor acadêmico da Faculdade IBTA, defende que os cursos de tecnólogos, ao contrário dos bacharelados, não podem ter ementa fixa, precisam mudar cerca de 20% todo ano. "Mudar a tecnologia ou a abordagem porque o mercado é dinâmico. Por isso, esses cursos precisam ter parcerias com empresas, para saber antes o que vai acontecer de novo", diz Borges.
João Mongelli Netto, responsável pela Comissão Permanente de Vestibular das Fatecs, concorda. "Os cursos de tecnologia são criados para atender às demandas atuais de mercado. E elas vão mudando com os anos", diz. Ele acredita que esse formato de curso tem maior agilidade para atender às mudanças por ter forte carga de aulas práticas e laboratoriais e por incentivar o estágio. E dá como exemplo as Fatecs. No segundo semestre deste ano serão oferecidos seis cursos reformulados em função do mercado e do que foi identificado como importante para a formação atualizada do aluno.
A formação está em sintonia com o mercado de trabalho, mas as empresas valorizam esses cursos e recebem os profissionais que acabam de se formar? Não há uma pesquisa nacional que responda sobre a empregabilidade dos tecnólogos, mas alguns números indicam que a aceitação tem sido grande nos últimos anos.
Netto cita um estudo feito pelo Serviço de Avaliação Institucional (SAI) das Fatecs, com alunos formados em 2004. A pesquisa aponta que 91,6% dos alunos egressos estavam atuando no mercado, sendo que mais de 60% nas áreas dos cursos. "O mercado reconhece bem. É um profissional que tentamos formar com espírito crítico para que seja criativo e auxilie na tomada de decisões onde vai trabalhar. Ele valoriza o trabalho em equipe e é uma pessoa de fácil aceitação pelo grupo", diz o responsável pela Comissão Permanente de Vestibular das Fatecs.
Uma justificativa para a grande oferta de trabalho diante dos tecnólogos é o novo perfil do mercado. Segundo Eduardo Ehlers, diretor de graduação do Centro Universitário Senac, de uns anos para cá, "talvez duas décadas", o mercado se tornou mais dinâmico. "Passamos por um processo de especialização das profissões e de diversificação das áreas. Não se pensava em um profissional de design de multimídia e hoje ele existe. Diversificaram-se, assim, as opções de trabalho. Isso tem permitido que egressos desses cursos encontrem seu espaço no mercado, que é dinâmico e tem lugar para profissionais de diferentes formações", diz o diretor de graduação do Centro Universitário Senac.
Mas as ofertas de emprego são maiores em áreas que não concorrem com as graduações tradicionais, de acordo com Elizabeth Guedes, pró-reitora acadêmica da Universidade Anhembi Morumbi. "As novas profissões são mais afeitas a esse modelo de curso, como gestão de redes ou de games. Todas as áreas em que profissões tradicionais não são fortes, os tecnólogos funcionam muito bem. Nas outras, como saúde, direito, engenharia, psicologia, é mais difícil conquistar espaço", afirma Elizabeth.
Quando surgiram no final da década de 60, os cursos superiores de tecnologia eram mais dirigidos para as áreas de engenharia. Mas o tempo passou e eles mudaram de perfil. As escolas têm fugido do tradicional e criado cursos inovadores. Por exemplo, há um curso tecnológico em design de multimídia, área muito nova e que vem crescendo bastante com o avanço da internet e dos jogos eletrônicos.
Winston Petty, de 28 anos, percebeu isso. Ele trocou sua graduação clássica em ciência da computação pelo curso de tecnólogo em design de multimídia do Centro Universitário Senac. Depois de ter cursado três anos e meio do bacharelado, abriu um estúdio de multimídia e web e descobriu que precisava de uma formação mais voltada para design e criação, o que encontrou no tecnólogo.
João Victor, com a turma: maioria pulou do ensino médio para o tecnólogo |
Além de cursos em áreas antes não existentes, velhos cursos ressurgem com enfoque novo. É o caso do tecnólogo em gestão de turismo. "O segmento de turismo vem mudando bastante, com o avanço do turismo de negócio. Os cursos precisam incluir, por exemplo, a logística de transporte aéreo e a assessoria de eventos", diz Eduardo Ehlers.
Outro setor que tem ganhado força entre os tecnólogos é o ambiental. Nas Fatecs, estão em estudo vários novos cursos nessa área, diz João Mongelli Netto. "São fortes os de hidráulica e saneamento ambiental e estão sendo preparados os de silvicultura, para fazer o aproveitamento de árvores, e o de bioenergia", diz.
Para Juper Laurindo Crispino, pró-reitor de graduação da Universidade Ibirapuera, os cursos voltados para o setor de serviços, como saúde, meio ambiente e turismo, são os que mais se destacam. "As pessoas querem viver bem e ter qualidade de vida. E tudo aquilo que reflete isso tem prosperado. A engenharia, que dominava os cursos tecnológicos, está voltada para o setor de produção e esse vem dando espaço para o serviço", explica Crispino.
Os cursos mudaram, mais ofertas de emprego surgiram, o reconhecimento do tecnólogo como profissional de curso superior tem se consolidado. Mas e os alunos, continuam os mesmos?
Houve uma ampliação do leque de alunos que procuram os cursos superiores de tecnologia. O perfil clássico de quem cursava o tecnólogo era o de pessoas que já estavam no mercado, mas pensavam em fazer um curso superior porque não haviam concluído a faculdade ou mesmo nunca haviam tido a oportunidade de começar uma graduação. Eram alunos, geralmente na faixa dos 25, 30 anos, que desejavam adquirir mais conhecimento e ter a chance de progressão na carreira.
Alunos com esse perfil continuam a procurar os cursos superiores de tecnologia. Mas agora eles têm a companhia de muitos outros grupos. "O mercado de curso superior de tecnologia, pela existência de novas profissões, se expandiu. Em vez de ser curso de curta duração para adulto, o tecnólogo virou opção para novas profissões. E, com isso, o público se diversificou. Temos desde o jovem que saiu do ensino médio e quer seguir uma carreira que nem tem uma graduação tradicional como opção até o médico que faz o curso de gastronomia por hobby", diz Elizabeth.
Letícia Staduto, 17 anos, que cursa o tecnólogo em estética e cosmetologia na Universidade Anhembi Morumbi reflete essa mudança de perfil dos alunos. Ela acabou de sair do ensino médio e optou pelo tecnólogo. "Só fiz este vestibular porque sempre gostei muito da área e fiquei interessada pelo curso", diz a estudante, que se mudou de Passa Quatro, em Minas Gerais, para São Paulo.
Ela conta que os pais ficaram um pouco receosos no início. "Minha família levou susto. Meu pai ficou preocupado ao saber que o curso só durava dois anos. Mas ele entrou em contato com a faculdade e conversou com as coordenadoras para entender o que era o curso e verificar se realmente era de nível superior. Depois disso passou a me apoiar. Ele sabe que me identifico muito com a área", diz Letícia.
Em sua turma, de 96 alunos, a maioria tem mais de 20 anos. "Deve ter umas 25 alunas da minha idade, todas saíram do ensino médio e entraram no superior de tecnologia, como eu". Letícia, que nunca trabalhou com estética, pensa em seguir carreira e continuar os estudos. "Quero fazer pós-graduação e me especializar em terapia ortomolecular."
Outra estudante recém-formada no ensino médio a se aventurar no tecnólogo é Leilane Assunção, de 18 anos. Ela cursa ecoturismo, também na Universidade Anhembi Morumbi. Antes de entrar na universidade ela fez um curso técnico de turismo. "Queria me especializar em ecoturismo e por isso escolhi este curso", diz a aluna, que tem planos de chegar logo ao mercado de trabalho. "Não pretendo estudar mais, quero conseguir um emprego e sair para o mercado."
O crescimento de cursos no país foi de 96,67%, de 2004 a 2006. Em São Paulo, os alunos aumentaram 395%, de 1998 a 2004
João Victor, 23 anos, aluno do último semestre do curso de processamento de dados da Fatec, nem pensou duas vezes. Acabou o ensino médio e foi direto para a instituição. A decisão foi tomada por influência dos amigos, que já tinham feito o curso e o encorajaram. "Fui porque sabia que o curso tem qualidade." Segundo ele, a maioria da sua turma está na mesma faixa etária que ele, e também saiu direto do ensino médio para o tecnólogo.
Aula de gastronomia: hobby para alguns, opção de trabalho para outros |
A descoberta pelos jovens de que o curso superior de tecnologia é mais ágil na hora de entrar no mercado de trabalho é um dos fatores que têm contribuído para a queda na média de idade dos alunos, diz Francisco Borges, diretor acadêmico da Faculdade IBTA. "Alunos jovens saem do ensino médio e percebem que o tecnólogo abre portas no mercado mais rapidamente. Nos últimos quatro ou cinco anos, a idade média dos alunos tem diminuído", diz.
A Universidade Ibirapuera, que neste ano abriu 1.837 vagas em cursos superiores de tecnologia, fez um levantamento sobre o perfil de seus alunos. 51,8% são mulheres e 48,2% são homens, sendo que 16% têm entre 16 e 20 anos. E 51,2% têm menos de 25 anos.
Esse público mais jovem, segundo Ehlers, é formado por alunos que mesmo saindo do ensino médio já sabem o que querem e, muitas vezes, identificam uma vocação para uma carreira inovadora e que não dispõe da graduação tradicional.
Com o crescimento da procura e da oferta de cursos superiores de tecnologia e com a mudança do perfil do aluno, o Brasil começa a se equiparar aos Estados Unidos e à Europa, onde os cursos superiores de duração mais curta representam mais de 50% dos alunos matriculados, diz Eduardo Wurzmann, presidente da Veris Educacional, holding que mantém as Faculdades Ibmec (no Rio de Janeiro e Belo Horizonte) e IBTA. No Brasil, esse número ainda não passa de 8%. "Percebemos uma grande perspectiva de avanço. No Brasil ainda há um campo gigantesco, ao contrário de outros países, onde cursos semelhantes já são importantes e formam boa parte dos profissionais do ensino superior", afirma Ehlers.
Pelo jeito, o roteiro padrão vai se manter e o mocinho terá sucesso no final do filme.
Décio Moreira, do Sindicato: restrição vem dos Conselhos Profissionais |
Mas será que a graduação tecnológica pode substituir o bacharelado? Sim e não. É certo que a procura pela graduação tecnológica tem crescido e que mais pessoas podem completar o ensino superior nessa modalidade, que exige menos anos de estudo. Mas é preciso lembrar que os focos do bacharelado e da graduação tecnológica são distintos.
Para Fernando Leme do Prado, presidente da Associação Nacional de Educação Tecnológica (Anet), a graduação tecnológica pode ocupar o espaço de cursos da graduação tradicional, desde que não deixe de ser tratada como tecnológica. "Muitas vezes, preocupados em atender às suas necessidades de preenchimento de vaga, instituições de ensino oferecem cursos de tecnólogos que não são tecnológicos. São, na verdade, um minibacharelado, pela duração menor. Eles não atendem ao mercado porque perdem sua característica fundamental de ter um foco específico e um vínculo com a prática. Só cortam algumas disciplinas, mas continuam cursos generalistas. Para se ter um curso de tecnólogo é preciso que a prática pedagógica seja a específica dele", acredita Prado.
Ocupar uma maior fatia do mercado educacional sim, mas sem desvirtuar a função e as características dos cursos de tecnólogos, diz o presidente da Anet. E, segundo Eduardo Ehlers, diretor de graduação do Centro Universitário Senac, a parcela da população que ingressa no ensino superior é ainda pequena e há espaço para a graduação tecnológica crescer.
O prognóstico do consultor educacional Carlos Monteiro é de que, em dois anos, 20% dos alunos matriculados no ensino superior estarão cursando cursos de tecnólogos.
Algumas universidades perceberam essa tendência e se adaptaram. Deslocar vagas do bacharelado para o curso de tecnólogo já é uma realidade.
A Universidade Ibirapuera, que passou a oferecer cursos de tecnólogos neste ano, usou espaço e professores que estavam sobrando para receber alunos da graduação tecnológica. "Há no país inteiro um decréscimo do número de alunos que procuram o ensino superior tradicional. E a Universidade Ibirapuera continua a ter o parque instalado para receber esses alunos: o que a gente fez? Deslocou algumas coisas, contratamos alguns professores, transferimos outros", explica Juper Laurindo Crispino, pró-reitor de graduação da Universidade Ibirapuera. Com isso, a universidade criou mais de 1,8 mil vagas em cursos de graduação tecnológica.
Pelo jeito, na configuração do setor há espaço para todo mundo. E até para andarem juntos.
É ou não é um curso superior? Sim, os tecnólogos são profissionais com formação superior. Essa imagem meio nebulosa de que se trata de um curso de segunda classe já foi mais forte, mas ainda existe. Por culpa de quem? Da desinformação e de confusões do passado.
O consultor educacional Carlos Monteiro explica que no passado existiram dois tipos de cursos de curta duração e que não eram considerados como graduações plenas: as licenciaturas curtas e a engenharia operacional. Pelo menor tempo de formação e por não habilitar seus alunos a cursar pós-graduações e mestrados, esses cursos eram considerados como intermediários e sofreram resistências corporativas. Acabaram desaparecendo, diz Monteiro.
Os tecnólogos surgiram como graduações plenas, mas, por terem uma carga horária reduzida, foram equiparados com aqueles cursos e lançados na mesma situação, explica Monteiro. "Na época, esses cursos eram realmente considerados de segunda classe e os tecnólogos pegaram esta fama", diz o consultor educacional.
E o desconhecimento é mesmo o vilão da graduação superior de tecnologia. "Havia uma certa resistência porque tecnólogo é um nome difícil. Embora se associe a ciência e técnica, muita gente não o associava a graduação, mas apenas a curso técnico", diz João Mongelli Netto, responsável pela Comissão Permanente de Vestibular das Fatecs.
Eduardo Ehlers, diretor de graduação do Centro Universitário Senac, concorda que a confusão entre tecnólogos e cursos técnicos contribuiu para se criar um certo preconceito contra o profissional formado nessa modalidade de graduação. "Por décadas nos acostumamos que a formação de nível superior era feita pelos bacharelados. Estabeleceu-se essa cultura. Quando algum aluno comentava que era tecnólogo, muitos não sabiam o que era isso. Confundiam com cursos técnicos, de formação do ensino médio", diz Ehlers.
O preconceito desaparece à medida que o curso se torna mais divulgado. Mas ainda existe. Para Décio Moreira, presidente do Sindicato dos Tecnólogos do Estado de São Paulo, os Conselhos Profissionais ainda estabelecem regras restritivas para a atuação do tecnólogo. "Nas áreas em que não existe o Conselho Profissional a atuação não é conflituosa. A experiência com profissionais das áreas de engenharia, arquitetura e agronomia, via de regra, nos mostra empregadores contratando tecnólogos como profissionais 'intermediários', 'complementares', ou seja, estão 'abaixo', não podem assumir responsabilidades efetivas nas suas áreas de formação e compatíveis com um graduado."
O mercado está saturado de profissionais das carreiras consagradas. Novas profissões aparecem e exigem especialização
Por desconhecimento ou por medo da falta de valorização, os cursos de tecnólogos ainda não são a opção da maioria dos alunos que saem do ensino médio. "O senso comum é muito forte. As pessoas são orientadas para as carreiras clássicas", afirma Fernando Leme do Prado, presidente da Anet.
Mas, segundo Prado, esse cenário está mudando porque o mercado está saturado de profissionais das carreiras consagradas. "Novas profissões aparecem e quem melhor atende em formação são os cursos de tecnologia." Para ele, ainda são poucas as pessoas nesse tipo de graduação para mudar o senso comum que forma o preconceito, mas com a ida progressiva desses profissionais para o mercado de trabalho, a tendência é o tecnólogo ser valorizado.
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