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quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Febre de Cérebro


Descobertas das neurociências, ainda incipientes, são vistas por muitos como o novo caminho para pensar a educação infantil. Mas é preciso cautela para não transportar para a sala de aula visões deterministas ou carentes de comprovação científica
Valéria Hartt

Há paradoxos importantes que cercam a educação infantil. Alguns remontam a sua origem, como a visão fragmentada entre educação e cuidados com a primeira infância. Outros ganham contorno à luz dos tempos atuais, quando a linguagem do brincar, tão própria da criança, perde espaço e protagoniza uma espécie de cabo-de-guerra com a visão "escolarizada" de creches e pré-escolas. A realidade brasileira não foge à regra. Ao contrário, soma ao repertório geral suas próprias mazelas, reservando à criança pequena o educador com a pior qualificação entre todos os profissionais de ensino. Nem mesmo o discurso dos organismos financiadores internacionais, que tratam de difundir as vantagens econômicas de um olhar mais focado sobre a primeira infância, parece capaz de corrigir a rota.

Ao ignorar as peculiaridades da infância e as bases necessárias ao seu adequado desenvolvimento, a educação infantil brasileira caminha entre acertos e experimentações. É alvo fácil de propostas novidadeiras, por vezes apoiadas em uma visão pseudocientífica, carente de sustentação mais sólida. A bola da vez são as neurociências, mais precisamente as ciências cognitivas, que se propõem a promover uma compreensão maior dos processos de ensino-aprendizagem.

A revista Newsweek (edição de 22/10/2007), um dos mais respeitados periódicos americanos, descreve a novidade: a chamada neurociência educacional "avança a passos largos" com o respaldo do recém-criado pro­grama MBE - Mind, Brain and Education (Mente, Cérebro e Educação), da Universidade de Harvard, e o lançamento da publicação homônima, que reúne as últimas pesquisas das ciências cognitivas.

João Augusto Figueiró, do Instituto Zero a Seis: a importância dos estímulos para a inteligência não significa que haja uma fórmula para criar gênios

Não faltam críticas e argumentos à nova visão - do chamado efeito Mozart à onda dos "brain toys", os brinquedos para o cérebro, que, para muitos especialistas, não passam de mitos ainda carentes de comprovação (veja texto na página 31). A eficácia dos consultores em neurociências da educação, que começam a chegar às escolas americanas, também está em xeque. E não é só. Há especialistas preocupados diante da constatação de que professores chegam a pagar US$ 500 em conferências que têm lugar em instituições de renome, como o Massachusetts Institute of Technology (MIT) e a Universidade de Stanford, sob a crença de que os novos conhecimentos têm uma base sólida para uso em sala de aula.

Armadilhas

Enquanto pesquisadores de todo o mundo reforçam a tese de que os primeiros anos são fundamentais para a constituição cerebral, há quem aponte para os perigos desse determinismo científico e de uma visão que induza à hiperestimulação infantil.

"O perigo está nas distorções", sustenta o médico João Augusto Figueiró, criador do Instituto Zero a Seis. "Quando reafirmamos a importância de determinados estímulos para a construção da inteligência e do conhecimento, não estamos defendendo a idéia de que a educação infantil deva privilegiar precocemente conteúdos informativos, nem sugerindo aos pais que proporcionem à criança uma agenda de cursos extracurriculares. Menos ainda temos receitas para fabricar gênios", arremata.

A advertência é per­tinente e, além dos limites éticos da própria divulgação científica, está no centro de um debate que aponta para os limites da estimulação infantil. As descobertas indicam que os primeiros anos de vida são fundamentais para a constituição cerebral. Em pleno desenvolvimento, é na primeira infância que o cérebro forma grande parte de suas conexões, as chamadas sinapses, e inicia um processo que perdura ao longo de toda a vida, oscilando entre o "brotamento" de novas conexões e o mecanismo analogamente conhecido como "poda neuronal".

"O organismo ajusta esse crescimento, eliminando o que não está sendo utilizado. Significa que determinadas funções, se não exercitadas nesse período, podem mais tarde trazer problemas de aprendizagem", diz Figueiró.

A fala do especialista carrega uma verdade há muito conhecida no campo da pedagogia: desenvolver na criança habilidades específicas é pré-condição para a aprendizagem futura. O perigo é dar a esse discurso um tom alarmista ou utilizá-lo como argumento para oferecer à criança um ambiente de hiper­estimulação. O progresso do conhecimento empírico sobre o funcionamento cerebral e a acelerada inovação no campo das neurotecnologias também abrem espaço para visões reducionistas, terreno fértil para promessas e visões pedagógicas questionáveis.

Em seu livro, O Mito dos Três Primeiros Anos (The Myth of the First Three Years: a New Understanding of Early Brain Development and Lifelong Learning, Free Press, 1999), ainda sem tradução no Brasil, John Bruer demonstra ceticismo em relação ao que chama de "contundente profecia" e desafia a uma reflexão: não há nada a ser feito se o cérebro do bebê não receber os estímulos adequados nos três primeiros anos de vida? Se a criança não aprende no momento esperado, então está tudo perdido? Para Bruer, presidente da Fundação James S. McDonell, trata-se de uma visão restrita, que, por si só, pode representar uma ameaça muito maior para o desenvolvimento mental e emocional das crianças.

Uma das pioneiras nas pesquisas em ciências cognitivas, Laura-Ann Petitto, da Universidade de Toronto, reforça o ataque: "O perigo aqui é jogar o bebê fora, junto com a água do banho", disse ela à Newsweek.

Aprendizado e memória

Renovadas pela proclamada década do cérebro e pelas tecnologias de neuroimagem, as neurociências ganharam os holofotes em 2000, quando o austríaco Eric Kandel e mais dois pesquisadores da Universidade de Colúmbia levaram o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia por suas pesquisas na área de aprendizado e memória.

Eric Kandel, da Universidade de Colúmbia e ganhador do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, sugere que seres humanos respondem a estímulos de forma similar a camundongos

Kandel estudou os neurônios da lesma marinha para investigar o que acontece com as células cerebrais quando as instâncias da memória são formadas. Concluiu que a memória altera o formato e a formação das sinapses e descobriu a proteína Creb-1, responsável por converter lembranças de curto prazo em memórias de longo prazo.

O modelo de experiência proposto por Kandel tem suas fontes no russo Ivan Pavlov, que induziu cães a salivar ao toque de um sinal sonoro associado ao horário da refeição. Em vez de cães, Kandel usou uma espécie de lesma do mar (Aplysia Californicus), organismo com circuitos simples, de aproximadamente 20 mil neurônios. O molusco tem um reflexo espontâneo que protege sua estrutura respiratória, o "reflexo de retração das guelras", utilizado por Kandel para medir o aprendizado nas lesmas. Um neurônio sensorial, o "equivalente" ao ouvido do cão na versão pavloviana, era estimulado para, em seguida, acionar um neurônio motor, responsável pela retração das guelras das lesmas, em um processo comparável à salivação dos cachorros na experimentação russa. Diante de determinados estímulos, o reflexo se tornava mais forte e permanecia assim por alguns dias. Para Kandel, uma representação simples de uma forma de aprendizado. O cientista expandiu as pesquisas, observou exatamente as mesmas mudanças em camundongos e sugeriu que um processo análogo acontece em seres humanos.

O estudo ganhou o Nobel, mas não a unanimidade. O psicanalista francês Éric Laurent, um dos expoentes da corrente lacaniana e hoje delegado-geral da Associação Mundial de Psicanálise, não poupa críticas à descrição biológica da memória e à proposta de Kandel de, a partir dela, estabelecer novos paradigmas para a psicanálise (Biology and the Future of Psychoanalysis: a New Intellectual Framework for Psychiatry, Kandel Eric, Am J Psychiatry. 1999;156:505-24; Tradução brasileira: Rev. Psiquiatria, 2003; 25(1):139-65).

"O inconsciente freudiano tem agora uma tradução na língua das neurociências (...) Kandel quer conduzir a psicanálise de seu contexto de descoberta pré-científico a uma etapa superior, científica, absorvendo-a na nova disciplina das neurociências cognitivas" (Our Politics for Psychoanalysis and the IPA's: Three Examples, julho de 2005), afirma Laurent.

O filósofo Peter Hacker e o neurocientista Max Bennett, da Universidade de Sydney, Austrália, apontam problemas conceituais e contestam as conclusões do estudo, no livro Fundamentos Filosóficos da Neurociência (Bennett M.R, Hacker P.M.S ; Philosophical Foundations of Neuroscience; Blackwell Publishing, 2003, p.170, edição brasileira pela Editora Piaget, 2005).

"É tentador pensar que as diversas formas nas quais se manifesta a recordação são todas devidas ao fato de que aquilo que é lembrado está registrado e armazenado no cérebro. Mas isto não tem sentido (...). a expressão de uma recordação deve ser distinguida das configurações neuronais, quaisquer que sejam. Essas configurações não são a memória: tampouco são representações, descrições ou expressões do que é lembrado", apontam.

À margem da polêmica, o fato é que o trabalho de Kandel é referência nas ciências da cognição, e, por associar aprendizado e memória, recebe também o olhar da educação. Olhar que ele próprio sugere que seja cauteloso.

"O futuro da neurociência é brilhante. O perigo é que estamos no pé da montanha e muitas pessoas pensam que já completamos a escalada. É uma grande montanha e vai levar um século [para que a escalemos]."

O diálogo possível

Não se trata, contudo, de negar a contribuição das neurociências para a esfera pedagógica. A própria história da pedagogia como disciplina acadêmica construiu seus alicerces a partir do diá­logo com diferentes saberes. Traz em sua natureza contribuições que vão da filosofia rousseauniana à Escola Nova da psicologia experimental; da psicogênese descrita por Piaget aos estudos antropológicos e, no caso da pedagogia infantil, também a visão recente da sociologia da infância, difundida nos anos 90, com quase um século de atraso.

A educação é uma arte e está em construção. Tem seu primeiro degrau no olhar sobre a criança de 0 a 6 anos, em creches e pré-escolas, que cresce em importância à medida que a formação desses sujeitos, antes majoritariamente a cargo das famílias, é cada vez mais institucionalizada em creches e pré-escolas.

A questão não é condenar as neurociências. É saber se iremos encontrar ali contribuições para o que parece central: qual o papel da educação infantil? Seu agir educativo deve moldar-se a partir das referências do ensino fundamental ou buscar caminhos para construir sua própria identidade? Enfatizar o que a criança já é ou valorizar o que lhe falta?

Há conflitos de sobra que precisam ser resolvidos e proposições que parecem transcender a esfera pedagógica e caminhar para um debate que é também ideológico.

"Uns valorizam aquilo que a criança já é e que a faz ser, de fato, uma criança. Outros, pelo contrário, enfatizam o que lhe falta e o que ela poderá (ou deverá) vir a ser. Uns insistem na importância da iniciação ao mundo adulto; outros defendem a necessidade da proteção face a esse mesmo mundo. Uns encaram a criança como um agente de competências e capacidades; outros realçam aquilo de que ela carece", descrevem Manuel Pinto e Manuel Jacinto Sarmento, do Centro de Estudos da Criança da Universidade do Minho, em Portugal (em As Crianças: Contextos e Identidades, Braga, Portugal, 1997).

Pontos de convergência

Afinal, quais são os mitos e as verdades extraídos das recentes descobertas das neurociências e o que de tudo isso interessa à educação, em particular à educação infantil?

"Por enquanto, os conhecimentos oferecem mais perguntas do que respostas, mas cremos que a pedagogia neurocientífica está sendo gerada para responder e sugerir caminhos para a educação do futuro", defende Katia Chedid, orientadora educacional do Colégio Dante Alighieri, em São Paulo, e integrante do grupo de pesquisa em neurociências e pedagogia Educação: Produção do Conhecimento, da PUC/SP.

Para Katia Chedid, a neurociência está sendo gerada para indicar os caminhos da educação do futuro

Como ela, outros especialistas e instituições se empenham na defesa de que conceitos básicos das neurociências podem ajudar na compreensão dos processos de ensino-aprendizagem, com contribuições importantes para a prática docente e o desenvolvimento das crianças.

"Harvard anuncia a missão imediata de treinar estudantes neste novo campo, tanto para retornar às escolas e outros espaços educativos, como para formar pesquisadores com profundo conhecimento das ciências biológicas, cognitivas e da educação, e, a partir disso, criar a base de pesquisa apoiada nessa nova união do conhecimento", escreve Kurt Fischer, diretor do programa MBE da universidade.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também figura entre os entusiastas da novidade. Em 99, lançou o projeto "Ciências da Aprendizagem e Pesquisa do Cérebro", disposta a aproximar os dois mundos e disseminar o conhecimento científico.

Na mesma trilha, o Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos acaba de lançar a edição ampliada de Como as Pessoas Aprendem - Cérebro, Mente, Experiência e Escola (2007), que chega ao Brasil pela Editora Senac. O livro apresenta as mais recentes descobertas da ciência da aprendizagem e mostra a melhor maneira de aplicá-las na sala de aula.

No capítulo reservado à primeira infância (Como as Crianças Aprendem), sustenta que os bebês vêm equipados com os meios necessários para entender seu mundo e que mesmo as crianças mais novas têm uma boa compreensão dos princípios básicos da biologia e da causalidade física, dos números, das narrativas e dos objetos pessoais. E vai além: "essas aptidões tornam possível a criação de currículos inovadores, que introduzem conceitos importantes para o raciocínio avançado em idades precoces". Como referência, sugere o programa Rightstart, agora incorporado a um modelo mais amplo, rebatizado de Number Worlds. O jogo, que está prestes a ser lançado nos EUA, é uma metáfora do ábaco asiático e ensina tarefas matemáticas básicas, como contar, correspondência entre número e quantidades e o conceito de number line (reta numérica).

"Vejo com reservas qualquer coisa que se intitule um "programa". O perigo é encarar as neurociências como um reparo técnico ou um método universal, como se fosse a panacéia capaz de curar todos os males da educação", adverte Peter Moss, da Universidade de Londres.

A OCDE também apresenta sua visão dos avanços neurocientíficos na obra Compreendendo o Cérebro - Rumo a uma Nova Ciência do Aprendizado (Understanding the Brain: Towards a New Learning Science, 2003). Mais cautelosa, propõe um julgamento crítico das alegações sobre aprendizagem e ensino a partir das pesquisas do cérebro.

Mas, como alertou o pensador Edgar Morin em palestra realizada em São Paulo em dezembro, a neurociência, como outros aspectos da evolução humana, carrega em si uma promessa e uma ameaça. A promessa é de um melhor entendimento dos processos cerebrais. A ameaça é bastante cinzenta: a de que esse conhecimento possa levar à pior manifestação totalitária, a de controlar seres humanos com informações advindas do conhecimento científico.

Os "neuromitos" e a educação

1. A popularidade de uma alegação neurocientífica não significa, necessariamente, que ela seja válida;
2. A metodologia e a tecnologia da neurociência cognitiva estão ainda em formação;
3. A aprendizagem não está totalmente sujeita ao controle da consciência ou da vontade;
4. O cérebro passa por mudanças naturais de desenvolvimento durante a vida;
5. Muitas pesquisas da neurociência cognitiva têm buscado compreender ou resolver patologias ou doenças relacionadas com o cérebro;
6. Uma ciência satisfatória da aprendizagem deve considerar fatores emocionais e sociais, além dos cognitivos.

Fonte: Compreendendo o Cérebro - Rumo a uma Nova Ciência do Aprendizado, OCDE, Editora Senac, São Paulo, 2003

PARA SABER MAIS
- Compreendendo o Cérebro - Rumo a uma Nova Ciência da Aprendizagem, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Editora Senac, 2003
- Como as Pessoas Aprendem - Cérebro, Mente, Experiência e Escola, Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos, Editora Senac, 2007
- A Importância do Cérebro, de Patricia Wolfe, Porto Editora
- O Cérebro, a Bioquímica e as Aprendizagens, de Eric Jensen, Edições ASA
- Práticas Pedagógicas Compatíveis com o Cérebro, de Laura Erlander, Edições ASA
 Aprendizagem. Neurociências e a Escola da Vida, de Manfred Spitzer, Climepsi Editores


- Mitos e perigos
- Universidade como modelo
- Convergentes ou divergentes?
- Gente que nasce longe de casa
Fonte: Revista Educação edição 129

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