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domingo, 28 de setembro de 2008

Fracasso Escolar.: Mito e Realidade.


Anna Maria Bianchini Baeta*

Falar sobre o fracasso escolar hoje em dia, para profissionais da educação, não é tarefa fácil, pois, dependendo do público, é assunto que pode ser bastante familiar, correndo-se o risco de ser repetitivo ou causar impacto, seja pelo nível de desconhecimento das causas até hoje identificadas, seja pelas resistências que podem provocar. Afinal, há pelo menos seis décadas, as altas taxas de reprovação e evasão são denunciadas e, no entanto, este quadro muito lentamente consegue ser alterado, e assim mesmo apenas em alguns locais. Por outro lado, de alguma forma estamos envolvidos com este problema, quer como professores, supervisores e/ou pesquisadores, quer cano cidadãos.
Se o fracasso escolar se mantém por tanto tempo, é preciso contextualizá-lo e historicizá-lo para tirar-lhe o caráter de fenômeno natural que, por ser esperado, já que é natural, não é problematizado nem questionado.
A primeira observação que devemos fazer é que, enquanto fenômeno, é histórico, ou seja, nem sempre existiu e se isto não ocorria deve-se ao fato de que a maioria da população brasileira não tinha acesso à escola, exatamente os membros das classes trabalhadoras, tanto urbanas, quanto rurais.
Saber quem "fracassa" já é um avanço, pois começamos a deixar de fazer uma análise abstrata para identificar concretamente quando, corre e em que circunstâncias a escola apresenta um rendimento diferenciado.
Mas esta longa permanência do quadro de fracasso aponta para a necessidade de continuarmos aprofundando a análise da questão na perspectiva de superá-lo.
Julgo o tema - Fracasso Escolar. mito e realidade -. bastante oportuno, pois quanto mais se ampliar o conhecimento sobre uma dada realidade, melhores serão as condições para encontrar formas de superar uma dada situação que julgamos ser profundamente injusta e inaceitável.
A primeira constatação a que gostaria de me referir é que de fato, hoje em dia, coexistem, tanto nos meios educacionais cano na população em geral, explicações mais consistentes - fruto de pesquisas, reflexões sistemáticas - ao lado de mitos, álibis, que em nada ajudam a resolver o desafio tão persistente.
Sem me estender muito, é preciso lembrar que o conceito de mito é tomado não necessariamente no sentido de uma narrativa correspondente a um período antigo e fabuloso, mas como uma construção que permite exprimir intuições de uma maneira imaginada num quadro aparentemente coerente, quando não se possui uma forma de apreender as realidades pressentidas por uma elaboração racional. (CHOMBART DE LAUWE, 1964).
Quando não se dispõe de informações e análises fundamentadas, é freqüente surgirem elaborações intelectuais, procurando dar conta de explicar ou justificar fenômenos ainda não interpretados de forma mais consistente, rigorosa, mais científica.
Assim, os mitos são representações, conjunto de imagens, de símbolos com forte colocação afetiva que respondem provisoriamente ã necessidade de melhor conhecer a realidade, dar explicações do mundo real, de suas contradições, de encontrar os pontos de apoio para conduzir ações. Vale lembrar que nortear-se por mitos e álibis também tranqüiliza e nos exime de maiores envolvimentos e responsabilidades.
Antes de analisarmos alguns mitos bastante freqüentes no âmbito da educação, faz-se necessário lembrar que, por outro lado, a realidade na sua complexidade não é alcançada, compreendida de forma completa e absoluta. Aceito o pressuposto epistemológico de que o conhecimento é sempre resultado de uma relação entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido, não sendo, portanto, nem uma cópia do real nem resultado de uma atividade subjetiva autônoma Como fica então a questão do conhecimento da realidade? O conhecimento que deve nortear as ações de forma a superar os desafios?
Parto do princípio de que o conhecimento mais elaborado, mais sistematizado, mais científico, só se dá por aproximações sucessivas, por construções cognitivas, neutras, através de um processo infinito, acumulando verdades parciais que a Humanidade estabelece nas diversas fases de seu desenvolvimento histórico - alargando, limitando, superando estas verdades parciais: o conhecimento baseia-se sempre nelas e toma-as como ponto de partida para um novo
desenvolvimento (SCHAFF, 1986, p. 97).
Vejamos, em seguida, como o conhecimento científico procurou explicar a questão do fracasso escolar.
VIAL, fazendo um retrospecto das argumentações adotadas para explicar o insucesso na escola, afirma que a atitude moralista, que atribuía a culpa simplesmente ã própria criança, teve que ser ultrapassada quando os conhecimentos científicos mostraram que fatores diversos podiam estar atuando de forma a condicionar a dificuldade da criança na escola.
Num primeiro momento, por influência do pensamento psiquiátrico, a ênfase recaiu sobre os aspectos patológicos de diferentes níveis, presos a características individuais. Segundo a autora, "Os primeiros trabalhos, dominados por teorias organicistas, centravam suas explicações nas noções de congenitabilidade e de hereditariedade, atribuindo todas as perturbações, que não fossem causadas por lesão nervosa, a disfunções neurológicas ou. a retardos de maturação imputadas a um equipamento genético defeituoso" (VIAL, 1979, p. 14).
Mais recentemente, explicações psicogenéticas mostram que a questão da dificuldade de aprendizagem é bem mais complexa na medida em que resulta de situações vivenciadas pela criança ao longo de seus contatos interpessoais em contextos sócio-culturais.
A fase da explicação única, por determinismo orgânico, estava teoricamente ultrapassada.
Por outro lado, inúmeras pesquisas vieram alargar a compreensão do fenômeno ã medida que contribuições na área da Sociologia da Lingüística, da Antropologia etc. chamaram a atenção para as variáveis externas ã escola, que exercem influência sobre as condições de desenvolvimento e aprendizagem das crianças e adolescentes.
A situação sócio-econômica e cultural de origem da criança interatuando com suas condições internas iniciais (dotação genética), ao longo da infância, determina a existência de uma população escolar diferenciada no que se refere às possibilidades de superar ou não as primeiras etapas da escolarização, tal como esta é proposta pelo modelo de escola existente.
As condições de educabilidade da criança decorrem, portanto, não só das características de seu processo de desenvolvimento, como também das características das práticas pedagógicas que lhe são oferecidas. De fato, em pesquisa realizada em 1981 sobre O Estudo do Conhecimento Sobre
Evasão e Repetência no Ensino de 1 ° Grau no Brasil (1971 - 1981), coordenada pela Professora Zaia Brandão, da qual participei, pudemos constatar que vários estudos põem por terra as hipóteses de que as deficiências de ordem biológica, física, ou de "carências" culturais, nutricionais, explicam isoladamente as altas taxas de evasão e repetência.
Em artigo publicado sobre os resultados da pesquisa, afirmamos que "Os fatores escolares - quer na perspectiva da prática pedagógica, quer na de fatores institucionais - são apontados como tendo um papel considerável na 'produção do fracasso'. Aliás, a produção do fracasso a partir da escola parece ser uma das preocupações dominantes da abordagem das pesquisas que analisam a educação de um prisma contextuai. Esta preocupação aparece desde o fatalismo dos que analisam a escola inspirados na 'Reprodução', até a perspectiva que objetiva o conhecimento da
especificidade escolar. Estes últimos, sem descuidar dos aspectos sócio-culturais, vêm procurando identificar as formas como a escola, ela mesma, interfere na geração do fracasso escolar das camadas mais pobres" (BAETA et alii, 1982, p. 4).
Com o movimento de democratização da sociedade brasileira, o pensamento e a prática pedagógicos buscam reverter este quadro através, não só, do questionamento do que ocorre no interior da escola, mas, principalmente, propondo novas estratégias de ação.
Mas, se por um lado começamos a constatar avanços em propostas de alfabetização, ensino de Matemática, História, Geografia, Ciências, bem como medidas de Política Educacional - corno Ciclo Básico, ampliação da jornada escolar-, verificamos também, ainda, resistências, apatia ou mesmo inúmeras dificuldades de se colocarem em prática propostas aceitas como válidas. Quantas vezes verificamos que professores regentes concordam que determinada forma de encaminhar o processo de alfabetização é mais criativa, mais coerente, com um objetivo de levar os alunos a um domínio mais autônomo da leitura e da escrita, mas se sentem inseguros e se apegam a uma cartilha conhecida para se apoiarem em sua ação docente?
Se a insegurança aponta para a necessidade de se rever as formas em que os cursos de reciclagem, o treinamento em serviço devam ser efetivados; a apatia, a resistência nos levam à necessidade de levantar algumas hipóteses sobre suas causas e, abertamente, de forma franca, discuti-Ias com os professores regentes.
Estou convencida de que um dos mitos que hoje mais arraigadamente perpassa as representações dos professores no que se refere ao fracasso escolar é o da criança carente que não aprende. Tudo se explica e se justifica a partir de uma elaboração social e historicamente construída de forma acrítica, na medida em que justapõe conceitos, noções, tanto "científicas" como do senso comum, informadas, apoiadas por ideologias próprias de uma sociedade profundamente desigual, mas mascarada por uma visão paternalista e assistencialista de conceber e atuar junto a segmentos mais desprivilegiados, que no contexto brasileiro se constituem na maior parte da sociedade. Para nos desvencilharmos do mito da criança carente que não aprende e atuarmos em bases mais realistas, faz-se necessário problematizar e questionar o que entendemos por carência e quais as suas implicações na produção e superação do fracasso escolar. Não há como negar que as condições materiais, concretas, de vida da maioria das crianças que freqüentam a Escola Pública são de fato extremamente precárias, condicionando, freqüentemente, um quadro de alimentação deficiente, falta de atenção, de carinho e de estímulos em casa, de informações, contatos com a língua escrita, além da necessidade de ajudar, seja trabalhando seja tomando conta dos irmãos. Sabe-se também que não contam com auxílio e até mesmo espaço apropriado para estudar. Conhecer esta realidade deve ser ponto de partida para adequar a prática pedagógica às crianças que nela estão inseridas, e não como vem sendo feito, usar este conhecimento como álibi para eximir a escola de seu papel na produção do fracasso escolar. Se no presente desmitificamos a escola como único e principal fator da mudança social, nem por isso deixamos de atribuir-lhe um papel específico, importante na socialização do saber e na formação de atitudes compatíveis com a formação de uma sociedade em que todos os cidadãos tenham a mesma categoria, exercendo-a de forma crítica e participativa. Mas para desmitificar é preciso ter consciência de que os mitos e álibis na realidade
exercem um papel de mascaramento, pois são contaminados ideologicamente.
A esse respeito LAPASSADE e LOURAU lembram que a ideologia contém três imagens da classe dominante: "- uma imagem de si mesma por si mesma que a enaltece (por exemplo: a burguesia sustentando a tocha da 'razão' humana, única capaz de boa organização); - uma imagem de si mesma para os outros, que a engrandece (a burguesia empregando seu dinheiro para o bem geral); - uma imagem dos outros para ela mesma, depreciando-os (o bom e o mau trabalhador, o
líder, o semeador de rebelião)" (LAPASSADE, 1972, p. 80).
Até que ponto nós, educadores, não incorporamos estas três imagens na nossa relação com os alunos da Escola Pública e pautamos nossas ações por elas?
Será que não nos vemos de forma enaltecida enquanto detentores do saber elaborado?
Será que não nos engrandecemos na medida em que nos dispomos a transmitir esse
saber, depreciando os alunos e suas famílias por não aproveitarem esse nosso esforço?
Não será esta uma das formas de explicar o fracasso escolar quando este é atribuído ao mito da carência dos alunos?
Vale lembrar também que, dependendo da posição que ocupamos no sistema de ensino ou fora dele, podemos explicar o fracasso escolar também pelas carências dos professores, malpreparados, desmotivados, sem procurar conhecer mais profundamente as raízes históricas, estruturais e conjunturais. dessas interpretações para, a partir delas, atuarmos.
Não estará esta carência econômica e socialmente construída e utilizada de forma paternalista e assistencialista, impedindo um compromisso efetivo com as classes trabalhadoras?
É suficiente termos "pena" da criança carente que fracassa na escola? Ou se trata de transformar esta piedade em um sentimento de profunda solidariedade que implica ver esta criança ou adolescente como tendo alcançado um determinado estágio de desenvolvimento cognitivo, lingüístico, cultural, afetivo e psicomotor, com direito inalienável de alcançar novos patamares de desenvolvimento? Não podemos negar os resultados das pesquisas quantitativas que apontaram as correlações positivas entre nível sócio-econômico e desempenho escolar, e nem as pesquisas qualitativas sobre as práticas escolares que denunciavam uma pedagogia equivocada, seletiva e/ou discriminatória. Mas hoje temos consciência, porque inúmeras experiências apontam neste sentido, que os alunos "carentes", tanto crianças como adultos, são capazes de aprender.
Foi o inconformismo com as reprovações, a confiança na capacidade de aprender dos alunos, a busca de novas práticas na relação professor-aluno e, principalmente, o fato de tomarem como ponto de partida as experiências, habilidades e conhecimentos que os alunos já desenvolveram em seu ambiente familiar e comunitário, que vários educadores, professores, norteados por uma postura político-pedagógica, crítica mas construtiva, alcançaram resultados positivos.
Não podemos, no entanto, transformar esta afirmação -toda criança tem capacidade de aprender - em algo vazio de conteúdo prático, correndo o risco de criarmos um novo mito que se mostrará frustrado e frustrante. Dentre as contribuições que já dispomos para adequar o ensino às características dos alunos, julgo oportuno lembrar o conceito de erro construtivo, ou seja, aquele que nos indica o estágio em que o aluno se encontra, aquele que serve de diagnóstico para os professores no sentido de adequar e/ou redimensionar o processo de ensino-aprendizagem. Desta forma, a avaliação deverá sofrer profunda revisão nos seus pressupostos e na sua prática, superando sua função alienadora para o professor e para o aluno, pois ambos poderão detectar o que já foi assimilado e o que falta alcançar. Ao revelar progressos, o erro construtivo deixará também de exercer um papel de desqualificador dos alunos na medida em que ultrapassa uma concepção de ignorância inata e insuperável por parte daqueles que estão em processo de aprendizagem. Se este não está alcançando os objetivos pretendidos, faz-se necessário avaliar todo o processo, todos os elementos envolvidos, não caindo no extremo oposto de deixar errar sem corrigir.
A outra contribuição importante e pertinente refere-se ao conceito de desenvolvimento potencial ou proximal de VYGOTSKY, qual seja, aquela faixa de desenvolvimento na qual os alunos com a ajuda do professor ou dos colegas são capazes de realizar as tarefas que sozinhos ainda não conseguem. Mas para que estes conceitos, erro construtivo e área de desenvolvimento proximal, não virem modismos e efetivamente ajudem a superar o quadro de fracasso escolar, há muito
que pesquisar e trocar experiências, aprofundar teoria e prática. É importante enfatizar que o que estou propondo para a práxis do professor cabe para nossa práxis junto a eles, revendo nossas práticas equivocadas, nossos erros construtivos e nossa faixa de desenvolvimento potencial, pois só com o trabalho coletivo, solidário e compromissado, transformaremos o atual quadro educacional em nosso país. Concluindo, reitero que a superação dos mitos e um conhecimento mais consistente da realidade sobre o fracasso escolar deve, necessariamente, ser resultado de um trabalho, de um esforço interdisciplinar que aproxime cada vez mais o mundo acadêmico e as Redes de Ensino na perspectiva de um duplo enriquecimento. Só assim poderemos contribuir para que a escola exerça seu papel de transmissora de conhecimento, sem esquecer que deve atuar com sujeitos do conhecimento coerente com o objetivo de desenvolver cidadãos críticos, capazes de construir uma sociedade democrática.
BIBLIOGRAFIA
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social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1988.

* Mestra em Educação e Professora do IESAE/FGV-RJ.
Fonte: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_06_p017-023_c.pdf

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