HISTÓRIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - O DEBATE TEÓRICO METODOLÓGICO A PARTIR DE UMA LEITURA MARXISTA – PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES
Valdir Picheli
Doutorando com pesquisa na área de História da Educação
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
INTRODUÇÃO
A análise das metodologias explicativas da História e da História da Educação, em particular, constitui um tema crucial. Questões tradicionais dessa ciência, já há algum tempo, foram colocadas sob suspeita, trazendo à tona antigos questionamentos do tipo: constitui a História uma ciência? Pode a escrita histórica revestir-se de objetividade? É possível uma história com pretensões à apreensão da totalidade do fenômeno social?
É muito forte hoje, inclusive nos círculos dos historiadores profissionais, a tendência que considera a História escrita sob o rigor da ciência, algo que já se exauriu. Por isso, sua finalidade, antes de se revestir de perspectivas que busquem a compreensão do fenômeno social, hoje teria como pretensão proporcionar o deleite, o prazer, o idílio folhetinesco. A descaracterização da história enquanto ciência do social, de acordo com os "bruxos" do pós-modernismo, guarda coincidências com o discurso subsumido na desreferenciação do sujeito. De forma inexorável isso seria a marca do "fim da História" exemplificado pela síntese do progresso tecnológico com o liberalismo econômico, por um lado e, por outro, o predomínio de uma visão caleidoscópica do real, que ao afirmar o singular propõe ainda o esgotamento ontológico das vanguardas revolucionárias, quer na política, quer nas artes.
É nesse sentido que se coloca a importância da retomada do percurso analítico das principais correntes interpretativas da História. Esse tratamento deve nos permitir um posicionamento crítico em relação ao debate historiográfico, facilitando, assim, uma delimitação mais conseqüente do trabalho de pesquisa em História e, no nosso caso particular, em História da Educação. Desse modo, ao contrário do que sugere Le Goff de que o que se deve esperar é que a ciência histórica possa evitar melhor, de agora em diante, as tentações da filosofia da história, que renuncie às pretensões da maiúscula - a história com H (LE GOFF, 1990: p.57), é de extrema importância relembrarmos a imperativa afirmação de Marx e Engels na Ideologia Alemã: conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história (MARX e ENGELS,1993: p.23).
Assim, o texto que se segue procura uma síntese crítica dos debates de ordem teórico-metodológico que tem ocorrido entre aqueles que estão envolvidos em projetos de pesquisas em História da Educação. Por isso, privilegiamos um recorte temático que abrangesse, essencialmente, a tônica das últimas discussões que tem aflorado com certa constância no meio acadêmico. De uma maneira genérica, pode-se afirmar, que esse debate tem privilegiado uma grande polêmica, que em última análise confronta os dois paradigmas primordiais de toda a História do pensamento, a saber: racionalismo e irracionalismo.
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E MÉTODO EM HISTÓRIA
A leitura recente de uma série de apontamentos de pesquisadores de programas de pós-graduação em História da Educação de todo o Brasil é um bom começo para aqueles que pretendem tomar ciência de como se apresenta o estado da arte no momento atual. Tal leitura nos revela uma gama extremamente diversa dos mais variados temas de pesquisa no interior da Educação, e como a questão metodológica tem se apresentado aos respectivos pesquisadores. Com algumas poucas exceções, foi possível notar que a maioria dos depoimentos colhidos apresentava uma rudimentar confusão no tratamento da questão metodológica, referindo-se ao método como procedimentos de pesquisa. Também ficou perceptível nesses depoimentos o quanto a falta de cuidado em relação à metodologia por vezes se desdobra numa verdadeira "salada mista" conceptual, na qual, cabem, como parceiros, Marx, Kosik, Foucault, Le Goff etc. Por outro lado, há também aquelas referências particularistas que procuram inserir a construção metodológica da pesquisa como uma explicitação do próprio EU do historiador.
A incursão nestes relatos nos revelou também pesquisadores que, com certo arrojo intelectual, se recusavam (ao menos até aquele momento) a entrar no alegre coro da pós-modernidade e a sua melopéia que nos encaminha ao barranco de cegos em que se precipita a civilização ocidental. Em tom de ironia, por exemplo, Maria Luisa Santos Ribeiro, cita um samba de Paulinho da Viola que diz: "faça como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar". As colocações da pesquisadora Zeila B. F. Demartini parecem contemplar a serenidade sugerida no antigo samba. Trabalhando com fontes orais, a pesquisadora tem o cuidado de salientar que
...acreditamos que, na medida em que transcrevemos o que foi gravado, passamos a trabalhar com um tipo de documento que, se é designado oral, dada a sua origem, passa a partir daí a carregar uma grande ambigüidade, pois o que se escreve a partir das falas não consegue registrar o clima e todos os sentimentos e aspectos culturais que envolvem a situação de entrevista (INEP: p.42).
Para afirmar mais à frente que:
...não concordamos com os autores que, ao recorrerem aos relatos orais, especialmente a histórias de vida, afirmam que a análise já está praticamente concluída quando se encerram as entrevistas. A nosso ver, além do trabalho de crítica metodológica que deve ser feito, o material transcrito guarda elementos que mesmo várias escutas atentas não permitem captar (idem: p.42).
Com mais contundência, Ester Buffa, numa citação implícita a Hegel, apresentou seu depoimento contrário aos estudos que se pretendem "novos" nos seguintes termos: ...por mais sedutores que sejam esses estudos, não se pode admitir que a descrição pormenorizada da árvore impeça a compreensão da floresta como um todo (...) estudamos o singular visando compreendê-lo no todo (idem: p.69). Nessa ótica a pesquisadora justificou seu objeto de estudo que trata da educação brasileira a partir da cidade paulista de São Carlos. Sem descartar o singular (São Carlos), o trabalho de pesquisa da autora, procurava dar conta das relações econômicas, culturais, políticas, urbanas, educacionais do Brasil.
Finalmente, é preciso salientar a fala da pesquisadora Zaia Brandão alertando sobre os riscos da interdisciplinaridade entre os educadores. Há, por parte da pesquisadora, como se evidencia, uma clara preocupação com um ecletismo inconseqüente: suponho que o apelo ético-crítico da interdisciplinaridade e a tendência da área da educação a mimetizar campos disciplinares mais prestigiosos podem estar obscurecendo os limites epistemológicos pertinentes a essa prática...(idem: p.124).
Porém, ao expor o eixo de sua concepção a respeito das fontes documentais, Zaia Brandão, recorreu a Foucault e Le Goff que tratam os documentos enquanto monumentos. É necessário precisar com um pouco mais de rigor a origem desse tratamento, uma vez que seu uso tem sido cada vez mais generalizado na pesquisa histórica.
Essa relação (documento/monumento) foi apresentada pela primeira vez por Foucault. Para ele, a história tradicional (aquela que se escreveu antes do século XVIII) ...se dispunha a ‘memorizar’ os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem (FOUCAULT, 1987: p.08). Com essa crítica, Foucault propõe o abandono da crítica documental, o monumento falaria por si mesmo. A história nada mais significaria que apenas o ato de memorizar e levar adiante as impressões próprias do monumento, perfazendo, então, aquilo que com freqüência têm sido chamada pelos historiadores da Nova História de tradição. Essa forma de escrever a História possibilitaria o desvelamento daquilo que é muito caro ao pensamento de Foucault: "as descontinuidades", as "multiplicidades das rupturas", ou seja, aquilo que o trabalho de conceitualização não consegue fazer emergir na análise historiográfica.
Foucault, portanto, é crítico da História entendida como ciência. Abomina a crítica documental:
...a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações (idem: p.07).
Ou seja, é possível perceber que a preocupação legítima exposta inicialmente por Zaia Brandão se perde diante do que está explícito na visão de Michel Foucault sobre a História. Mas é preciso recolocar as questões: que balizas distanciam os tênues limites da interdisciplinaridade eclética das descontinuidades? Ou ainda, como se assegurar da precisão dos "limites epistemológicos" diante das multiplicidades heterotópicas particulares e particularistas sugeridas pela epistemologia de inspiração em Nietzsche?
Há um ponto primordial a enfatizar na discussão de acordo com o que foi dito até aqui. Os questionamentos, tais como se apresentam acima, só podem ser melhor esclarecidos a partir de uma ampla análise que resgate a epistemologia das correntes interpretativas da História.
Uma análise nessa direção está presente no texto "História e Paradigmas Rivais" de Ciro Flamarion Cardoso, que procurou apresentar o embate, no qual estão envolvidas a principais correntes interpretativas da História, a partir da oposição entre os paradigmas iluminista e pós-moderno.
O autor salienta que o Iluminismo se insere na tradição renascentista que afirmou a perspectiva da razão como possibilidade do progresso (emancipação) humano, enquanto o pós-modernismo seria a expressão crítica de tal tendência ao enfatizar o "colapso da civilização", negando, portanto, quaisquer tendências racionais ou cientificistas. Entretanto, se observarmos melhor a História da Filosofia até os dias atuais, com certeza, poderemos notar que esse embate não se reveste de total novidade. Nietzsche, por exemplo, desloca esse embate para a Grécia clássica. Para ele, toda a luminosidade do homem grego é perceptível na sua submissão às forças díspares que encarnavam a natureza presentes no Olimpo. A "idade do ouro", para os gregos, era aquela em que a vida humana se organizava em torno do mito. A desarticulação desse mundo teria se dado justamente com o surgimento das sistematizações históricas:
pois este é o modo como as religiões costumam morrer: ou seja, quando pressupostos míticos de uma religião, sob os olhos rigorosos, razoáveis, de um dogmatismo bem-pensante, são sistematizados como uma soma acabada de acontecimentos históricos e se começa angustiosamente a defender a credibilidade dos mitos, mas a rebelar-se contra toda sobrevivência e propagação dos mesmos, quando, portanto, o sentimento pelo mito morre, e em seu lugar se introduz a pretensão da religião a ter bases históricas (NIETZSCHE, 1991: p.11).
Sócrates teria sido o ponto de inflexão desse abandono de uma vida conduzida pelo mito. Sócrates o "não-místico" que, com altivez, à alternativa de ter seu nome maculado, sob a acusação de corrupção da religião, junto aos gregos, solicitou a própria condenação à morte perante o tribunal ateniense, acabou por tornar-se o novo ideal, nunca antes contemplado, da nobre juventude grega (idem: p.13). Assim, os desdobramentos da influência do espírito socrático se fizeram sentir na valorização da forma sintética, sistematizada, racional das coisas. Assim:
o pensamento filosófico cresce com mais viço do que a arte e obriga-a a se agarrar ao caule da dialética (...) Sócrates, o herói dialético do drama platônico, lembra-nos por afinidade de natureza, o herói euripidiano, que tem de defender suas ações com argumentos e contra-argumentos e por isso tantas vezes corre o perigo de perder nossa compaixão trágica (p.13).
Desde aí, segundo Nietzsche, a humanidade teria sucumbido à ilusão do conhecimento, do saber, da ciência. A dimensão que se vislumbra, portanto, é a de um conflito de paradigmas rivais que transcende a época do Iluminismo e o pós-modernismo. Trata-se, na verdade, de um histórico conflito entre as perspectivas racionalista e irracionalistas.
A apresentação da discussão metodológica feita por Ciro Flamarion Cardoso, portanto, se reveste de muita argúcia e pertinência. Apropriadamente Ciro faz uma síntese rápida da visão marxista da História que se inclui no paradigma iluminista e aponta, inclusive alguns pontos de convergência desta com a escola dos Annales: preocupação com a estrutura, a ideologia (mentalidades), as condições materiais e a ambição por uma ciência da totalidade. A pós-modernidade, também sintetizada rapidamente por Ciro, se encontra no paradigma oposto ao do Iluminismo: o irracionalismo. Seria oportuno, contudo, alçar a discussão proposta por Ciro Flamarion Cardoso, para além do choque dos paradigmas Iluminista e pós-moderno, tentando recuperar esse embate na história do confronto entre o racionalismo e o irracionalismo. A importância dessa operação se justifica tendo em vista que pensadores como Foucault, Lyotard, Deleuze, Derrida etc., influências marcantes entre os "novos historiadores", são tributários a Nietzsche, crítico da modernidade e de toda a tradição civilizatória.
Ao invés disso, Ciro Flamarion Cardoso, chama a atenção para aquilo que ele chamou de "excessos unilaterais"(p.23). Reconhecendo a importância das pesquisas relacionadas à Nova História por ter possibilitado a ampliação considerável dos objetos e estratégias de pesquisa e a reivindicação do individual, do subjetivo, do simbólico como dimensões necessárias e legítimas da análise histórica (CARDOSO, 1997: p.23), Ciro acredita que,
é inevitável que surjam, a curto ou médio prazo, um ou mais paradigmas explicativos globais, já que as razões que os suscitaram no passado, os graves problemas sociais e mundiais sem resolver, exigirão que se renovem os horizontes utópicos orientadores, amanhã, de lutas sociais menos parcializadas e mais coerentes do que as de hoje (idem, p.23).
Sem negar a importância que representam para a síntese histórica os novos objetos e as novas problematizações, é preciso salientar que estes não são atributos exclusivos dos "novos historiadores". A própria preocupação metodológica marxiana com a totalidade da praxis humana inviabiliza a exclusão de quaisquer que sejam as inquietações ou atributos pertinentes ao Homem. Uma afirmação, nesse sentido, não quer dizer que o diverso, o fragmento, o subjetivo tenham um ethos particular desprendido de centralidade. Dessa maneira torna-se questionável o que propõe Ciro Flamarion Cardoso como recurso metodológico para a síntese histórica. O que se deve esperar? Uma síntese que englobe os paradigmas rivais? Ou o surgimento de novos "paradigmas explicativos globais"? Esses novos paradigmas incorporariam os trapos alvejados atirando pelo ralo a água fétida da bacia do irracionalismo? Talvez tenha faltado a Ciro, mais rigor no tratamento de um tema tão espinhoso do campo da filosofia. Não é possível tratar o embate racionalismo e irracionalismo, como um simples "modismo" ou uma "mera rivalidade ideológica".
É interessante observar como a difícil interlocução, no caso específico do marxismo (paradigma racionalista), com o Nova História foi tratado pelo historiador Guy Bois, no texto "Marxismo e História Nova". Para ele, a interlocução entre as duas práticas de pesquisa e síntese histórica passa pela confluência, mas também pelo "combate":
a união sem combate, bem como o combate sem união, são prejudiciais ao destino do materialismo histórico. Assim, para os marxistas, essa confrontação adquire o valor de um desafio. Eles não podem ignorar a amplitude do que está em jogo e não ver que, sob o aspecto de inovação técnica e fascínio pelas ciências humanas, se desenvolve um questionamento parcial ou total do marxismo, uma rejeição da história global e das pretensões de um enfoque científico. Cabe-lhes, pois, dar uma resposta que esteja à altura do desafio (BOIS, 1990: p.257).
Concluindo que: essa resposta deve ser buscada numa prática histórica que associe a maior abertura aos novos métodos (...) e aplicação, real e não formal, dos conceitos básicos do materialismo histórico (idem: p.257).
Guy Bois, portanto, apresenta-nos uma outra perspectiva. Não uma aposta em novos "paradigmas globais" ou "holísticos", mas a aplicação do materialismo histórico indisfarçadamente sobre aquilo que se convencionou denominar de novos objetos, novos problemas etc.
Para tanto, é pertinente lançar mão da exposição "Relendo a Teoria Marxista da História", feita por José Paulo Neto no IV Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil".
Nesse texto, José Paulo chama a atenção par uma operação teórica presente nas obras inseridas no interior da Nova história: o cancelamento do século XIX obnubilando grandes matrizes teóricas como Kant, Hegel, Marx, Nietzsche etc.
Mas, empreender uma síntese do materialismo histórico também apresenta suas dificuldades, já que existem inúmeros desmembramentos dessa teoria. Por isso, José Paulo Neto, fala em "teoria marxiana" sintetizando-a em cinco categorias: primeiro
"...processo objetivo, isso significa que se trata de uma processualidade que porta em si mesma uma especificidade primariamente independente das representações que dela façam os sujeitos; segundo, esse processo é contraditório, já que ele é marcado pela tensão entre os interesses sociais que circunscrevem os diferentes sujeitos em presença; terceiro, é um processo com sujeitos, seus sujeitos reais não se plasmam como personalidades singulares, mas como grupos sociais vinculados por interesses comuns; quarto, projetos que são conduzidos por sujeitos determinados, isto é, tais sujeitos não se constituem aleatoriamente, mas segundo imperativos e possibilidades que se colocam concretamente nos espaços e tempos precisos; quinto, são sujeitos conscientes, ou seja, esses sujeitos não atuam cegamente mas direcionados pelo maior ou menor grau de conhecimento que têm dos limites e possibilidades da sua ação. E seis, é um processo que é marcado pela ação dos sujeitos que têm finalidades, têm intenções , sendo, pois, um processo tencionado por sujeitos com suas próprias teleologias (NETO, 1998: p.55).
José Paulo Neto deixa claro também a matriz paradigmática da teoria elaborada por Marx e Engels, associando-a à tradição de investigação sobre a verdade aristotélica. A este respeito é conveniente recorrer ao próprio Marx no "Posfácio da Segunda Edição" de O Capital:
é, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente, do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer eu se esteja tratando de uma construção a priori(MARX, 1983: p.20).
OS ANNALES: HISTÓRIA E A HISTÓRIA INERTE
Também muito influente na análise historiográfica tem sido a contribuição da "Escola dos Annales". A discussão sobre o método de investigação e exposição histórica da "Escola dos Annales" não pode ser reduzida a uma única visão. Entretanto, o texto "Os Annales: a Renovação Teórico-Metodológica e ‘Utópica’ da História pela Reconstrução do Tempo Histórico" de José Carlos Reis, é muito significativo. Como raramente encontramos à disposição uma discussão de âmbito teórico-metodológico na tradição que se reivindica herdeira da "Escola dos Annales", esse texto, torna-se primordial e, ao mesmo tempo revelador das implicações historianovistas.
De início, José Carlos Reis, já define o pressuposto que, na sua visão, estabelece a condição de "novo" ou "ultrapassado" para esta ou aquela corrente interpretativa. Ao contrário, de algo que indique a busca do conhecimento do objeto (verdade), esse pressuposto se insere no campo da "representação do tempo histórico". A partir daí, a própria elaboração discursiva do texto de José Carlos Reis se aproxima da tradição nietzschiana. Como Nietzsche, o autor revela sua propensão anti-histórica. Para ele, o "eterno" é a única condição possibilitora do conhecimento. Há, portanto, um reatamento com a dimensão mítica da realidade em oposição ao mundo desvelado pela razão pós socrática. Da mesma maneira que Nietzsche saudava o mundo governado pelo mito como a "Idade de Ouro" grega, José Carlos Reis, enfatiza, de forma reacionária, a época em que as musas geriam os atos humanos: o poeta ouvia as musa; o historiador quer a ‘verdade’ e interroga os que viram os fatos ou escreve sobre o que ele próprio viu (REIS, 1998: p.27).
Nessa toada, a afirmação metodológica exposta por José Carlos Reis, é tributária de um outro importante pensador que tem servido como referência para a produção "inovadora" em História. Esse pensador é Kant. Do mesmo modo que Michel Foucault, José Carlos Reis, valoriza em seus procedimentos metodológicos, não a busca do essencial, mas o mundo das representações sobre o objeto:
como a ‘intuição a priori’ kantiana que põe o universo como exterior ao sujeito e o organiza como sucessão e simultaneidade, é a ‘representação do tempo histórico’ presente no historiador que o leva a objetivar o mundo humano de uma certa maneira, a organizá-lo de certo modo, a distinguir e selecionar certos objetos, a estabelecer determinadas técnicas, a construir determinados conceitos, a optar por certos valores, a organizar a ação e a inércia (idem: p.28).
O pensamento de José Carlos Reis é, portanto, uma absoluta negação da forma dialética materialista. Trata o ato de pensar como algo absoluto que determina e formula as bases da investigação científica. Procura conferir ao seu "tempo histórico" um tom de inércia e imutabilidade. Chega ao ponto de elevar o idealismo à potência de dois, já que, para ele, a percepção é a base instituidora da representação do real sendo esta representação o elemento de organização da própria percepção. Dessa forma, não há nenhuma maneira do sujeito apreender o real estando preso eternamente às suas próprias representações num processo de circularidade inextinguível.
O desdobramento desse raciocínio, no qual as representações do "tempo histórico" assumem a condição de agente da própria história, coloca em perspectiva aquilo que o autor denomina de "nova utopia" inerente ao trabalho da Escola dos Annales. O que vem a ser essa "nova utopia"? Rompendo com a visão histórica pautada na idéia do movimento, a utopia se apresenta como a possibilidade do tempo inerte:
como um ‘nó-górdio-passado-presente’, a sociedade será considerada como coisa, permanência, continuidade inerte, repetição constante do mesmo, tendência à rotina e ao repouso do cotidiano. Sem utopias finais, sem Razão absoluta final que a obrigue a acelerar-se. Este nó passado/presente deverá ser desatado como se desmonta uma bomba, i.e., de forma lenta, gradual, técnica, informada, serena e prudente (idem, p.33).
É reveladora a filiação política dessa maneira de pensar. Mas, o autor tem razão ao colocá-la no âmbito do utópico. De fato, não são as formas de se escrever a História que determinam seus desdobramentos. A crença de que uma visão reacionária da História possibilitará um desenrolar dos fatos humanos sem os abalos próprios de uma sociedade organizada a partir de balizas conflituosas, só faz reafirmar mais uma vez a concepção idealista do mundo. É essa forma de pensar que permite, ainda que démodé, que se retome as tintas sarcástica do velho Engels:
se a humanidade chegasse, em algum tempo, a um tal grau de progresso que só atuasse com verdades eternas, com produtos do exercício do pensamento que pudessem reivindicar uma validez soberana e títulos incondicionais de verdade, teria alcançado o ponto em que se teria esgotado a infinidade do mundo intelectual, tanto em relação à possibilidade, efetuando-se assim o famoso milagre da contagem inumerável (ENGELS, p. 73).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma conclusão sobre um tema tão controverso é impossível e também não conveniente. Alguns aspectos da discussão, entretanto, devem ser ressaltados. Em primeiro lugar, é preciso de um modo contundente propor no espaço das ciências humanas a reflexão sobre a temática da metodologia das pesquisas e de suas conseqüentes sínteses. Isso se justifica pelo fato de as correntes ditas "Novas" negarem a possibilidade de tal discussão como algo extemporâneo ao fazer do pesquisador. Também é preciso propor o confronto metodológico reafirmando o materialismo histórico e dialético. Uma conciliação entre os paradigmas rivais é improvável, o que não quer dizer que a temática suscitada como novidade deva ser excluída da perspectiva materialista. Ao contrário, a vasta obra de Marx, Engels e vários marxistas comprovam que a pesquisa dialética não exclui os temas da subjetividade quer social, quer do indivíduo.
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