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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Matemática Hoje

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Um cálculo no meio do caminho


FSP 25 de fevereiro, 2003
Por Flávio Ferreira, Paulo de Camargo (free lancer)



O problema do ensino da matemática começa a ter sua equação invertida. Não são os estudantes que não aprendem, são os professores que não ensinam. A afirmação poderia soar revanchista se feita por aqueles de nós incapazes de definir rapidamente hipotenusa ou uma mera raiz quadrada. Mas não se trata de reação tardia de maus alunos, e sim da constatação dos próprios educadores.newshemaletube


A consciência da dificuldade de transmitir o conhecimento matemático não é nova. Talvez remonte aos tempos em que Euclides o maior matemático da Antiguidade greco-romana fundou sua escola em Alexandria, cerca de três séculos antes de Cristo. A novidade é a urgência em enfrentar a questão.


Lidar com números requer uma capacidade de apreender abstrações. O resultado desse aprendizado, porém, é bem concreto. A sociedade contemporânea cobra um mínimo de conhecimento matemático. Sem o básico, a própria cidadania fica ameaçada.


Tocar um negócio, acompanhar a evolução de uma campanha eleitoral, controlar o orçamento doméstico, verificar o rendimento de uma aplicação financeira, tudo exige algum trânsito pelo mundo dos algarismos, das proporções, da linguagem matemática.


Alexandre Schneider/Folha Imagem

A auxiliar de enfermagen Myriam da Silva Bevilaqua
Às vezes, até uma promoção profissional depende da matemática. É o caso da auxiliar de enfermagem Myriam da Silva Bevilaqua, 61, que trabalha no Hospital do Mandaqui, em São Paulo. Ela voltou a estudar matemática para concluir o supletivo de ensino médio e poder, assim, ser promovida a técnica de enfermagem.


Myriam Bevilaqua não está sozinha em sua dificuldade com os números. Ao contrário. As principais provas escolares mostram que, nesse campo, há uma pedra no meio do caminho do brasileiro (a pedra está associada ao cálculo até pela etimologia: "calculu", do latim, significa pedrinha). Em 2001, nas provas do Saeb (Sistema Nacional de Ensino Básico), os alunos da 4ª série do ensino fundamental acertaram, em média, 30% das questões de matemática. No ano passado, na primeira fase da Fuvest, os 130 mil alunos tiveram acerto médio de apenas 20%.


As dúvidas não dirimidas nas salas de aula em geral acompanham o indivíduo pelo resto da vida. A ignorância tem preço alto, estabelecido numa escala crescente de exclusão dos círculos mais privilegiados da sociedade.


Sempre se soube, até intuitivamente, que a grande maioria não entende a mais rasteira matemática. A impressão foi agora confirmada por uma pesquisa nacional, a que a Folha teve acesso, que mostrou que apenas pouco mais de um quinto dos brasileiros (21%) tem pleno domínio das habilidades matemáticas básicas. Assim mesmo, a "aprovação" desse contingente só foi possível porque a pesquisa avaliou apenas a funcionalidade das habilidades básicas em matemática. Bastava o entrevistado acertar uma regra de três ou demonstrar familiaridade com representações gráficas, como mapas e tabelas, que passava a integrar essa, por assim dizer, elite.


A pesquisa Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, do Ibope, em parceria com a ONG Ação Educativa, procurou adequar o conceito de alfabetismo funcional à matemática. Para tanto, entrevistou 2.000 pessoas de 15 a 64 anos, que tentaram realizar tarefas de complexidade variada. Quase quatro quintos deles (79%) revelaram apenas algum grau de alfabetismo matemático.


O trabalho subdividiu esse grupo em três níveis. Cerca de um terço (32%) conseguiu apenas desempenhar tarefas simples, como anotar um número de telefone ditado por alguém, ver as horas no relógio de ponteiros e verificar datas num calendário.


Fotos Pedro Azevedo/Folha Imagem

O vendedor de balas Francisco de Souza Moraes


A maioria (44%) é capaz de resolver problemas que envolvem operações de adição e subtração com valores em dinheiro. Nessa situação, estão pessoas como o vendedor de balas Francisco de Souza Moraes, 38, que, apesar de ter concluído a primeira série do ensino fundamental, diz não sabe ler nem escrever. Vindo do Ceará, está há seis anos em São Paulo e, dominando as quatro operações, consegue calcular o ganho na venda dos 18 produtos de sua banca.


Esses dois grupos são formados por indivíduos com conhecimento funcional. No terceiro grupo, formado por 3% dos entrevistados, ficaram os analfabetos, incapazes de, ao menos, anotar um número de telefone. Em pesquisa semelhante, realizada para avaliar a habilidade no uso da leitura e da escrita, 9% foram considerados analfabetos pelo mesmo critério.


Essa comparação permitiu que, no meio acadêmico, os resultados da pesquisa sobre conhecimento matemático não fossem considerados tão ruins. Para alguns educadores, porém, essa percepção complacente em nada contribui para tornar realidade a ambição de desenvolvimento científico-tecnológico do país. É o caso do professor Antônio José Lopes, ou Bigode, como é chamado.


Autor de livros didáticos para o ensino fundamental, Bigode procura desenvolver uma conceituação mais exigente de alfabetismo funcional em matemática. "Nossa situação é um caos estrutural", afirma Bigode, que propõe um teste ao leitor na página 14.


O problema não está restrito ao Brasil, mas aqui a situação é particularmente grave. Em comparações internacionais, como a realizada pelo Educacional Testing Service, dos Estados Unidos, o Brasil sempre desponta entre as últimas posições. Para Bigode, há consenso sobre a causa do problema: a falha na educação. "A matemática da escola não diz nada para o aluno sobre o mundo que o cerca."


A crítica vem dos tempos da matemática moderna, que, concebida nos EUA, marcou profundamente o sistema educacional brasileiro até a década de 80. "A herança da matemática moderna foi um ensino centrado no cálculo mecânico, carente de significado e construído em degraus estanques", avalia o professor Luis Imenez.


A crítica ao movimento é quase uma unanimidade no meio acadêmico, mas há quem faça ressalvas. "Não era um movimento intrinsecamente errado, mas foi abortado ainda no seu início, pois ninguém se preocupou em preparar os professores e a sociedade", diz o pesquisador Ubiratan D'Ambrosio. "Esse é um problema comum em todas as reformas: só depois pensam na formação do professor."


Na tradição brasileira, a formação do professor depende sobretudo do livro didático. Esse material de apoio tem sido renovado. Nos últimos cinco anos, surgiram diversos livros produzidos a partir de concepções mais modernas. Muitos são recomendados pelo Ministério da Educação. Mas há resistência tanto de pais como de professores educados à moda antiga.


Alguns não se conformam, por exemplo, com a pouca importância que hoje se dá às frações. Muitos implicam com a liberação do uso da calculadora em sala de aula, algo de que Bigode não abre mão. "O aluno precisa aprender a usá-la com inteligência", diz. "Qual é o sentido de ensinar, hoje, como calcular à mão a raiz quadrada de 2?", pergunta. Autores contemporâneos tendem a concordar com ele. Acham que o aluno deve perder menos tempo com contas e investir mais na resolução criativa de problemas, usando o raciocínio e aprendendo a fazer relações contextualizadas. A partir dos avanços da pedagogia, os matemáticos têm usado diferentes recursos, como jogos, histórias, informática, relações culturais, ligações com o cotidiano e modelos matemáticos associados a situações reais.





O artista plástico Antonio Peticov, em seu ateliê


A forma tradicional de ensinar matemática deixou muitas vítimas pelo caminho. Poucas conseguiram reagir, como o artista plástico Antonio Peticov, que repetiu cinco vezes a 2ª série do ensino fundamental por não saber matemática. "Tive um professor que disse, no primeiro de aula, que toda a classe seria reprovada", lembra. "A matemática tem de ser ensinada docemente, senão trava qualquer pessoa."


A ironia é que Peticov, ao contrário do que seu registro escolar sugere, tem especial talento para números: tornou-se famoso internacionalmente por desenvolver uma arte baseada em diversos conceitos matemáticos, como a regra de ouro —um parâmetro de proporcionalidade que foi um paradigma estético da arte clássica. Seu interesse levou-o a ser convidado a integrar o seleto grupo da Lewis Carroll Society, que reúne especialistas em matemática recreativa.


Autor de "Alice no País das Maravilhas", Carroll não dispensava lições de matemática e lógica em seu texto. Em certo momento, Alice está perdida e pergunta aonde deve ir. A resposta que obtém é também uma pergunta: "Para onde você quer ir?". Ela diz: "Para qualquer lugar". "Ora, então tome qualquer caminho" é a solução que recebe para o seu problema. "Essa é uma linda lição de lógica matemática", diz Peticov.





José Roberto Sadek, superintendente do Instituto Itaú Cultural
Da mesma opinião compartilha o cineasta e arquiteto José Roberto Neffa Sadek, hoje superintendente do Itaú Cultural. Depois de sofrer na mão de professores, Sadek persistiu em sua paixão e se tornou diretor de um dos projetos mais premiados do vídeo educativo brasileiro, a série "Arte & Matemática" (2001).


Para atender a alunos como esses, pesquisadores vêm se empenhando nos últimos 20 anos em abrir novas portas para o aprendizado, como a etnomatemática, que se baseia no respeito às raízes culturais do aluno, e outras ramificações da ciência matemática. "O grande desafio é fazer essa pesquisa chegar à sala de aula", diz a matemática Célia Maria Carolino Pires, da Sbem (Sociedade Brasileira para o Ensino da Matemática).


"É um processo lento e pontual, mas que começa a se disseminar", avalia a consultora Maria Ignez Diniz, doutora pela USP e diretora do Mathema, um instituto de pesquisa que capacita professores em diversas regiões. "O problema é que este país é um planeta, e o ensino de matemática virou uma colcha de retalhos", afirma.


Entre formas antigas e novas de ensinar matemática, o professor muitas vezes fica confuso. Um exemplo típico é a chamada contextualização, apregoada pelos Parâmetros Nacionais Curriculares e por grande parte dos educadores modernos. Muitos acham que contextualizar é encontrar aplicações práticas para a matemática a qualquer preço. "Já encontramos alunos que sabiam fazer frações usando pizzas e bolos, mas não utilizando números", diz Ignez Diniz.


Outros críticos apontam o descaso com os conteúdos. Para Cláudio Ossami, que dirigiu a comissão de graduação do Instituto de Matemática da USP, as novas estratégias de ensino obtêm mais sucesso com os conteúdos mais básicos. "Não há como ensinar funções através de jogos", diz. Para ele, a solução está no equilíbrio. "Já erramos por tornar o ensino muito formal, mas agora se contextualiza tanto que se perde a perspectiva do que está sendo ensinado."


A polêmica sobre o ensino da matemática não se limita ao Brasil. "Em Portugal, na Europa e na América do Norte, há duas grandes correntes: uma defende o aperto da malha da avaliação e outra procura tornar a matemática mais interessante", afirma o pesquisador João Pedro da Ponte, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.


Enquanto as grandes redes de ensino público e privado ainda não incorporaram por completo a nova visão da matemática, a iniciativa de mudar quase sempre parte de uma insatisfação individual do professor com as formas tradicionais de ensinar.





O professor Leôncio Fernandes Pascoal e alguns dos alunos que participam do projeto
Foi o que aconteceu na Escola Estadual Professora Lucia Akemi Miya e no Centro Educacional Escola Viva, em Itapecerica da Serra (SP). Nessas escolas, o professor Leôncio Fernandes Pascoal, 28, utilizou diversos softwares gráficos e pedagógicos para ensinar aos alunos conceitos da álgebra e da geometria. O estudo durou um semestre e partiu de fotografias de prédios do centro de São Paulo feitas pelos alunos. "Sempre procurei formas diferentes de ensinar", conta Pascoal.


O caso de Pascoal não é isolado. Desde 2001, quase 15 mil professores realizaram voluntariamente oficinas de capacitação em informática pedagógica voltada para a matemática. Nas oficinas, aprenderam a utilizar softwares como o Cabri Geomètre, um programa que, desenvolvido na França, se tornou sensação entre os educadores por permitir que o aluno pesquise e desenvolva conhecimentos de geometria dentro da perspectiva do construtivismo.


Para Maria da Conceição Fonseca, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e uma das coordenadoras do Inaf, o processo de mudança ocorrerá com certeza, sobretudo se impulsionado pela crescente disputa de vagas no mercado de trabalho.


Conforme Adilson Simoni, coordenador do Núcleo de Estudos de Graduação da USP, se antes o destino dos matemáticos era a pesquisa, hoje, cada vez mais, o mercado financeiro se interessa pelos formandos dessa área. "Desde o terceiro ano da graduação, os alunos começam a ser procurados", diz.


Na outra ponta do sistema educacional, o domínio de habilidades básicas também faz muita falta. É essa demanda que explica o desempenho de redes de ensino como a Kumon. Criticada por educadores por basear-se em fórmulas tradicionais, como a repetição de exercícios, a escola encontra cada vez maior número de adeptos. Em 2002, ano em que as escolas particulares perderam alunos em São Paulo, a rede Kumon cresceu 14%, chegando a 90 mil estudantes. "Nosso método busca desenvolver alunos autodidatas, disciplinados e autoconfiantes", explica Renato La Selva, gerente de marketing do grupo. O Kumon não se embasa em nenhuma teoria pedagógica. É um método prático, criado no Japão por um professor que queria ajudar seu filho.


Por maiores que sejam os esforços, a matemática, para muitos, continua sendo um bicho-de-sete-cabeças. Vera Masagão, 44, coordenadora-geral da ONG Ação Educativa, avalia que o temor em relação à matéria poderia ser reduzido se, nas salas de aula, a matemática fosse mais associada ao cotidiano dos estudantes.


É o que afirma também o coordenador de matemática da Escola Móbile, Antonio de Freitas da Corte. Na escola, um dos objetivos do ensino da matemática é a interpretação da realidade que vivem os alunos. Em 2002, todas as turmas estiveram envolvidas no acompanhamento das pesquisas eleitorais. Chegaram mesmo a preparar, aplicar e analisar uma pesquisa num universo de 2.000 pessoas, ao mesmo tempo estudando a matemática necessária para essa operação.


Qualquer que seja a linha a ser adotada, o certo é que a necessidade de renovação é consensual entre os pesquisadores. O surgimento, de tempos em tempos, de novos métodos de ensino é uma tentativa de resposta a essa dificuldade intrínseca de estimular o raciocínio abstrato sem perder o vínculo com o mundo real.




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