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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A República, de Platão- Análise da obra




No século IV a.C., em data imprecisa, surgiu em Atenas a primeira concepção de sociedade perfeita que se conhece. Tratou-se do diálogo A República (Politéia), escrito por Platão, o mais brilhante e conhecido discípulo de Sócrates. As idéias expostas por ele - o sonho de uma vida harmônica, fraterna, que dominasse para sempre o caos da realidade - servirão, ao longo dos tempos, como a matriz inspiradora de todas utopias aparecidas e da maioria dos movimentos de reforma social que desde então a humanidade conheceu.

Essa é a obra mais importante de Platão. Nela ele expõe suas principais idéias. Ali está descrito o
Mito da Caverna, o que é um filósofo e como é uma sociedade justa entre outras idéias.

Em
A República, Platão idealiza uma cidade, na qual dirigentes e guardiães representam a encarnação da pura racionalidade.  Neles encontra discípulos dóceis, capazes de compreender todas as renúncias que a razão lhes impõe, mesmo quando duras.  O egoísmo está superado e as paixões, controladas. Os interesses pessoais se casam com os da totalidade social, e o príncipe filósofo é a tipificação perfeita do demiurgo terreno.  Apesar de tudo isso e desse ideal de Bem comum, Platão parece reconhecer o caráter utópico desse projeto político, no final do livro IX de A República.

Tendo em vista esse ideal, o trabalho manual continuava não valorizado no âmbito da cidade-estado.  A classe dos trabalhadores não era classe cidadã, pois não lhes sobrava tempo para a contemplação teórica da verdade e para a práxis política.  Para Platão, o ideal humano se realizava na figura do cidadão filósofo, livre das incumbências da sobrevivência, constituindo um ideal altamente elitista.


Para além de todas as utopias da sua república ideal, da figura dos reis filósofos, devemos apreciar o ideal ético de Estado e o esforço de Platão para desvendar os vínculos que ligam os destinos das pessoas ao destino da cidade.


A República
começa com um sofista, Trasímaco, declarando que a força é um direito, e que a justiça é o interesse do mais forte. As formas de governo fazem leis visando seus interesses, e determinam assim o que é justo, punindo como injusto aquele que transgredir suas regras. Para responder a pergunta "Como seria uma cidade justa?" , Sócrates começa a dialogar, principalmente com Gláucon e Adimanto. Platão salienta que a justiça é uma relação entre indivíduos, e depende da organização social. Mais tarde fala que justiça é fazer aquilo que nos compete, de acordo com a nossa função. A justiça seria simples se os homens fossem simples. Os homens viveriam produzindo de acordo com as suas necessidades, trabalhando muito e sendo vegetarianos, tudo sem luxo. Para implantar seu sistema de governo, Platão imagina que deve-se começar da estaca zero. O primeiro passo seria tirar os filhos das suas mães. Platão repudiava o modo de vida com a promiscuidade social, ganância, a mente que a riqueza, o luxo e os excessos moldam, típicos dos homens ricos de Atenas. Nunca se contentavam com o que tinham, e desejavam as coisas dos terceiros. Assim resultava a invasão de um grupo para o outro e vinha a guerra.

Platão achava um absurdo que homens com mais votos pudessem assumir cargos da mais alta importância, pois nem sempre o mais votado é o melhor preparado. Era preciso criar um método para impedir que a corrupção e a incompetência tomassem conta do poder público, Mas atrás desses problemas estava a
psyche humana, como havia identificado Sócrates, Para Platão o conhecimento humano vêm de três fontes principais: o desejo, a emoção, e o conhecimento, que fluem do baixo ventre, coração e cabeça, respectivamente. Essas fontes seriam forças presentes em diferentes graus de distribuição nos indivíduos. Elas se dosariam umas às outras, e num homem apto a governar, estariam em equilíbrio, com a cabeça liderando continuamente. Para isso, é preciso uma longa preparação e muita sabedoria. O mais indicado, para Platão, é o filósofo: "enquanto os filósofos deste mundo não tiverem o espírito e o poder da filosofia, a sabedoria e a liderança não se encontrarão no mesmo homem, e as cidades sofrerão os males".

Para começar essa sociedade ideal, como dissemos, deve-se tirar os filhos dos pais, para protegê-los dos maus hábitos. Nos primeiros dez anos, a educação será predominantemente física. A medicina serve só para os doentes sedentários das cidades. Não se deve viver para a doença. Para contrabalançar com as atividades físicas, a música. A música aperfeiçoa o espírito, cria um requinte de sentimento e molda o caráter, também restaura a saúde.


Para Platão, a inspiração e a intuição verdadeira não se conseguem quando se está consciente, com a razão. O poder do intelecto está reprimido no sono ou na atenção que aflora com a doença. Ele então critica o controle da lei e da razão à certos instintos que ele chama de ilegais.


Depois dos dezesseis anos, e de misturar a música para lições musicais com a música pura, essas práticas são abandonadas. Assim os membros dessa comunidade teriam uma base psicológica e fisiológica. A base moral será dada pela crença em Deus. O que torna a nação forte seria Ele, pois ele pode dar conforto aos corações aflitos, coragem às almas e incitar e obrigar. Platão admite que a crença em Deus não pode ser demonstrada, nem sua existência, mas fala que ela não faz mal, só bem.


Aos vinte anos, chegará a hora da Grande Eliminação, um teste prático e teórico, Começa a divisão por classes da República. Os que não passarem serão designados para o trabalho econômico. Depois de mais dez anos de educação e treinamento, outro teste. Os que passarem aprenderão o deleite da filosofia. Assim se dedicarão ao estudo da doutrina e do mundo das Idéias.


O mundo das Idéias seria um mundo transcendente, de existência autônoma, que está por trás do mundo sensível. As Idéias são formas puras, modelos perfeitos eternos e imutáveis, paradigmas. O que pertence ao mundo dos sentidos se corrói e se desintegra com a ação do tempo. Mas tudo o que percebemos, todos os itens são formados a partir das Idéias, constituindo cópias imperfeitas desses modelos espirituais. Só podemos atingir a realidade das Idéias, na medida em que pelo processo dialético, nossa mente se afasta do mundo concreto, atravessando com a alma sucessivos graus de abstração, usando sistematicamente o discurso para se chegar à essência do mundo. A dialética é um instrumento de busca da verdade.


Platão acreditava numa alma imortal, que já existia no mundo das Idéias antes de habitar nosso corpo. Assim que passa a habitá-lo esquece das Idéias perfeitas. Então o mundo se apresenta a partir de uma vaga lembrança. A alma quer voltar para o mundo das Idéias. Um dos primeiros críticos de toda essa teoria de Platão foi um de seus alunos da Academia, Aristóteles.


Igualmente conhecida na República é a alegoria da caverna, que ilustra como percebemos apenas parte do mundo, reduzindo-o.


Um grupo de pessoas vive acorrentada numa caverna desde que nasceu, de costas para a entrada. Elas vêem refletida na parede da caverna as sombras do mundo real, pois há uma fogueira queimando além de um muro, depois da entrada. Elas acham que as sombras são tudo o que existe. Um dos habitantes se livra das amarras. Fora da caverna, primeiro ele se acostuma com a luz, depois vê a beleza e a vastidão do mundo, com suas cores e contornos. Ao voltar para a caverna para libertar seus companheiros, acaba sendo assassinado, pois não acreditam nele.


Depois de estudar a filosofia, aqueles que forem considerados aptos irão testar seus conhecimentos no mundo real, onde experimentarão os dissabores da vida, ganhando comida conforma o trabalho, experimentando a crua realidade. Aos cinqüenta anos, os que sobreviveram tornarão-se os governantes do Estado.


Todos terão oportunidades iguais, mas na eliminação serão designados para classes diferentes. Os filósofos-reis não terão nenhum privilégio, tendo só os bens necessários, serão vegetarianos e dormirão no mesmo lugar. A procriação será para fins eugênicos, o sexo não será apenas por prazer. Haverá defensores contra inimigos externos, os guardiões, homens fortes, dedicados à comunidade. Não haverá diferença de oportunidade entre o sexo, sendo cada um designado a fazer uma tarefa de acordo com a sua capacidade.


Platão fala da renuncia do individuo em prol da comunidade, impondo inúmeras condições para a vida. Ele atenta para um problema muito preocupante em nossos dias: a superpopulação. Os homens só poderiam se reproduzir entre os trinta e quarenta e cinco anos, e as mulheres entre os vinte e quarenta anos. Também a legislação de Esparta, que muito inspirou Platão, e a proposta de Aristóteles na Política levam em conta este aspecto. Assim, resumidamente seria o Estado ideal, justo. O próprio Platão fala de dificuldade em se fazem um empreendimento dessa natureza. Um rei ofereceu à ele terras para fazer sua República, ele aceitou, mas o rei ficou sabendo que quem iria governar eram os filósofos e mudou de idéia.


Apesar do título,
A República (em grego: Politéia), Platão nesta obra não tem como ponto principal a reflexão sobre teoria política. Nesta obra, o filósofo lida sobretudo com as questões em torno da paidéia, a formação grega, na tentativa de impor uma orientação filosófica de educação em oposição à paidéia poética então vigente. Outro alvo que tem em vista é a carreira que os sofistas vinham desenvolvendo como educadores que, com sua retórica, preparavam os cidadãos a saberem argumentar nos embates democráticos da ágora. Não tinham, portanto, um compromisso com a verdade - seus argumentos giravam em torno das percepções, opiniões e crenças - a doxa. A república ideal seria mais um resultado da paidéia filosófica que  Platão tenta fundamentar e propor com seus argumentos nesta obra do que o tema central da argumentação em si. Apenas um terço dos dez livros de A República, aproximadamente, tratam da organização e fundamentação filosófica da pólis especificamente. O tratamento dado às questões por Platão acaba por se tornar sistematizado por aqueles que adotam sua teoria, a partir do quê o pensamento no ocidente se torna uma sucessão de sistemas teóricos. Isso nos leva a considerá-lo o "pai" da filosofia, ao menos da filosofia enquanto pensamento sistematizado.

Estrutura da obra


A República
pertence, juntamente com o Banquete (Simpósio), o Fédon e o Fedro, à maturidade de Platão. É a obra mais extensa do autor. Foi elaborada ao longo de vários anos, pois nela já estão presentes as idéias mestras de seu sistema: Teoria do Mundo das Idéias (Hiper Urânio); o Filósofo Rei, a imortalidade da alma, etc. Seu estilo, como a maioria das demais obras de Platão, é o diálogo, isto é, um processo de discussão (dialética) através de perguntas e respostas com o escopo de atingir a verdade (VII-534b). Composta por dez livros, inicia-se e termina com a discussão em torno da justiça como virtude maior, na consecução de um “Estado perfeito”.

Seguindo a tradição da didática grega, aqui Platão lançará mão da alegoria (Livro VII) e do mito, com o objetivo de “ir além” daquilo que a razão (logos) pode descrever, sobretudo quando trata de assuntos escatológicos como no Mito de Er (X. 614b-621b).


Personagens


Mencionar as figuras da República é necessário tanto para a compreensão desta obra de Platão, assim como para destacar a importância de outros pensadores que formaram o pensamento filosófico grego.


Sócrates -
Principal figura, na boca do qual Platão coloca seu pensamento. O encontro de Sócrates com os demais personagens se dá no Pireu, onde ele havia se dirigido com a finalidade de orar e constatar as festividades em honra à deusa Bêndis (Diana ou Ártemis) (327a). O local da discussão é a casa de Polemarco, irmão de Lísias e Eutidemos, filhos do velho Céfalo (327b).

Acompanham Sócrates os dois irmãos de Platão, Glauco e Adimanto; também Nicerato que figurará entre os personagens do Banquete. Este era filho do general Nícias que, em 421, celebrou o armistício na guerra do Peloponeso. Nicerato foi condenado a beber cicuta no mesmo período que Sócrates.


Polemarco
- Filho mais velho de Céfalo, herdou deste a fábrica de escudos. À época dos Trinta Tiranos, foi também preso e obrigado a beber cicuta.

Lísias -
Considerado juntamente com Demóstenes, um dos mestres da oratória clássica grega, foi condenado à morte com o irmão Polemarco. Conseguiu escapar e, ao regressar, processou Eratóstenes pela morte do irmão, no célebre sermão Contra Eratóstenes. É nessa obra que descreve a vida de seu pai Céfalo.

Céfalo -
Nasceu em Siracusa – portanto, era meteco -, estabeleceu-se em Atenas e após trinta anos acumulou fortuna com uma fábrica de escudos; foi desapropriado pelos Trinta Tiranos. É Céfalo que convida Sócrates a vir com freqüência em casa para debater com seus filhos (329d).

Trasímaco
- é o famoso sofista. Especialista na dialética, irrita-se com a ironia de Sócrates, no início da discussão sobre a Justiça (336d. 337a). Definirá a justiça como “a conveniência dos mais poderosos” (340b).

Conteúdo


O próprio título da obra, Politéia, pode trazer embaraço quanto ao conteúdo, se não for esclarecido. Traduzida comumente pelo latim República (de respública = coisa pública), politéia indica tudo aquilo que compõe a origem e organização da Polis, as suas leis, o
modus agendi de seus súditos, as formas de governo, etc. Devido a essa abrangência de significados, os temas tratados são os mais variados. Decorre daí a quase impossibilidade de uma resenha completa.

Livro I -
aponta Sócrates obrigado a pernoitar na casa de Polemarco e aí inicia seu diálogo com Céfalo. Primeiro, é Céfalo que o convida a vir mais vezes a ter com os filhos Polemarco, Lísias e Eutidemo. Em tom respeitoso, Sócrates pergunta sobre a velhice, ao qual Céfalo responde sobre as agruras da senectude e, citando Sófocles, indica que o mal não é a velhice em si. Ser velho ou jovem, tudo depende do caráter: “Quando se possui boa índole e mente bem equilibrada, a própria velhice não é algo incompactável. Os que são diversamente constituídos, esses acham a mocidade tão tediosa quanto a velhice”. (329d)

Logo Sócrates conduz o diálogo ao seu objetivo primeiro: definir o que é a justiça (Dikaiosyne), e é Céfalo a dar a primeira definição: “Justiça é dizer a verdade e restituir o que se tomou” (331c). Céfalo se retira do diálogo deixando o posto ao seu filho herdeiro Polemarco. Este define a Justiça como “dar a cada um o que lhe é devido”; Sócrates o retruca com ironia: deve-se restituir algo a alguém que está fora do juízo? Adiante, faz ainda Polemarco afirmar que “a Justiça é favorecer aos amigos e prejudicar os inimigos”, ao que o próprio Sócrates rebate: “Se alguém disser que a Justiça consiste em restituir a cada um aquilo que lhe é devido, e com isso quiser significar que o homem justo deve fazer mal aos inimigos, e bem aos amigos – quem assim falar não é sábio, porquanto não disse a verdade. Efetivamente, em caso algum nos pareceu que fosse justo fazer mal a alguém” (335e).


A esta altura do diálogo, entra em cena o sofista Trasímaco que, após cobrar pela discussão, define a justiça como “o interesse do mais forte”. Algo que depende do interesse de quem governa. Tirando assim, como sofista que era, toda dimensão ética da justiça (338c).


A definição de justiça ocupará ainda os
livros II, III e IV. Sócrates alarga o campo da discussão, não relaciona a justiça com o cidadão, mas a coloca no contexto da cidade. Entram em cena Glauco e Adimanto, irmãos “corajosos” de Platão. Estes tentam demonstrar a bondade intrínseca da virtude (justiça) e não só os seus efeitos. A esta altura, Sócrates estabelece a origem da Polis a partir “do fato de cada um de nós não ser auto-suficiente, mas sim necessitado de muita coisa” (369b). Apontando os profissionais necessários para suprir todas as exigências de uma cidade, descreve como uma cidade minúscula tornar-se-á grande e luxuosa, com a necessidade de classes de cidadãos especializados em seus ofícios. Dá-se início a um dos temas relevantes da República: a educação.

Sócrates fala primeiro do aprimoramento da educação dos soldados que se dará através da “ginástica para o corpo e da música para a alma” (276c), iniciando pela música. Deve-se peneirar as
letras das músicas (poesia, fábulas) porque estas contêm somente parte da verdade e com isso deturpam a alma; portanto, devem sofrer uma censura constante, inclusive a Ilíada (379...), onde atribui-se aos deuses tanto o bem quanto o mal. Este tipo de poesia deverá ser banida da educação dos futuros guardiões (383c). Não só a poesia/música, mas todas as demais artes deverão ser vigiadas. Esta censura constitui parte do livro III.

Livro IV -
Sócrates, dando por fundada a cidade, questiona: “onde poderá estar a justiça, e onde a injustiça, e em que diferem uma da outra” (427d). Para vir à tona o lugar da justiça, enumeram-se as virtudes que uma cidade perfeita deve possuir; estas formam uma “sinfonia”- em primeiro está a sabedoria (Sofia), virtude dos que governam; segue-se a coragem (andréia), que é a virtude dos guerreiros: “É, pois, uma força desta ordem, salvação em todas as circunstâncias de opinião reta e legítima, relativamente às coisas temíveis e às que não o são, que eu chamo coragem e tenho nessa conta, se não tens nada a opor.” (430b) Vem em seguida a temperança (sofrosine). É a virtude de toda a cidade, e não de uma classe específica; consiste na ordenação, no domínio diante dos excessos, é “a concórdia, harmonia entre os naturalmente piores e os naturalmente melhores, sobre a questão de saber quem deve comandar, quer na cidade, quer num indivíduo” (432a). Por último, surge a mais importante das virtudes e causa das demais: a justiça (dikaiosyne). “E esta consiste em que cada um realize a função para a qual a sua natureza for mais adequada” (433 a-b-c-d).

“Lembras-te daquele princípio original em que sempre insistíamos durante a fundação da cidade: o de que um homem deve atender a uma coisa só, isto é, aquilo para que a sua natureza está melhor dotada? Pois a justiça é este princípio... Podemos presumir que, de certo modo, a justiça consiste nisso: em fazer cada qual o que lhe compete... Esta é a causa primeira e condição de existência de todas as outras três virtudes, e que as conserva enquanto nelas subsiste”. (433 a-b-c).


Livro V -
a pedido de Polemarco, Sócrates retoma o tema já mencionado (423 e 424) da “posse comum das mulheres e filhos entre os guardiões” (449d). Preocupado com a purificação da raça (eugenia) e com o adestramento (eutenia), propõe para tal fim, que as mulheres dos guardiões “se revestirão de virtude em vez de roupa” (457a-b), participarão das agruras da guerra em defesa da cidade, praticarão ginástica e música. “Estas mulheres todas serão comuns a todos esses homens, e nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais saberão quem são os seus próprios filhos, nem os filhos os pais”. (457d).

Todo esse processo eugênico tem por fim a realização do Estado Ideal, governado por filósofos e guardiões que jamais deverão se distrair de suas principais ocupações. Obstinado em tal propósito, Sócrates chega a excluir qualquer valor ao amor materno ou paterno, antepondo sempre os objetivos do Estado (460-461). Admite-se o aborto e o infanticídio quando ocorrerem concepções fora do estabelecido pelo Estado (461c)


Livro VI -
inicia com a distinção entre “quem é que é filósofo e quem não o é” (484 a): Filósofos, responde Sócrates, são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, os que não o são se perdem no que é múltiplo e variável (484b). Como as leis e os costumes do Estado devem refletir o eterno, somente os filósofos, capazes de conceber as idéias eternas, devem ser estabelecidos guardiões por serem capazes de guardá-las.

A alma filosófica ao “contemplar a totalidade do tempo e do ser” (486a), colocará a própria vida e a morte em segundo plano e se “apaixonará pelo saber que possa revelar-lhe algo daquela essência que existe sempre, e que não se desvirtua por ação da geração e da corrupção” (485b).


À crítica da inutilidade do filósofo na cidade, Sócrates responde que este é analogamente o médico diante dos doentes e o piloto diante dos marujos.


Livro VII -
tratar-se-á da educação do futuro governo-filósofo. Todas as quatro virtudes (sabedoria, coragem, temperança e justiça) sobre as quais deve ser construído o Estado Ideal, só são conhecidas, úteis e valiosas a partir da idéia de Bem. Assim, a idéia do Bem constitui-se no mais alto saber, ao qual os guardiões devem aspirar e serem conduzidos. É mediante tal idéia que tudo se torna compreensível: “... No limite do cognoscível é que se avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto de justo e belo há; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para ser sensato na vida particular e pública” (517 a-b-c).

Mas, para que o guardião, futuro filósofo-rei, atinja o Bem, é preciso “sair da caverna e contemplar o Sol”. É no livro VII que está a “alegoria da caverna”, a mais sugestiva imagem da República, que trata dos níveis do conhecimento humano (514-a. 518-b).


Livros VIII e IX
- Sócrates descreve as transformações que as formas de governo podem sofrer e recapitular as regras do “Estado Comunista”, onde os governantes, assim como os soldados e atletas, possuirão tudo em comum (mulheres, filhos, casas e educação).

A forma ideal de governo é a aristocracia (544e), comandada por aqueles que amam o saber, o bem e o justo. Mas, se tudo o que nasce está sujeito à corrupção, nem uma constituição como essa permanecerá para sempre, há de dissolver-se (546a). Através de um complicado cálculo geométrico, Sócrates faz ver que há uma falha eugênica (exemplificada pela mistura indevida de metais) (547a); o amor à justiça é substituído pelo amor ao poder e à riqueza; assim, ocorrerá a Timocracia, “uma forma de governo entre a aristocracia e a oligarquia” (547c). A esta sucede a oligarquia, governo dos que amam o dinheiro (551a). Ao legislar em favor só de uma classe, a dos ricos, esta forma de governo causará a cisão do Estado: “É que um Estado desses não é um só, mas dois... o dos pobres e o dos ricos, que habitam no mesmo lugar e estão sempre a conspirar uns contra os outros” (551 d). Termina o amor à virtude. O Estado entra em luta consigo mesmo: um partido de poucos muito ricos e outro de muitos pobres estarão em guerra, prevalecendo o último: “A democracia surge... quando após a vitória dos pobres, estes matam uns, expulsam outros, e partilham igualmente... o governo e as magistraturas, e esses cargos são, na maior parte, tirados à sorte (557a). Tendo a liberdade por base, na democracia ocorrerá a ausência de qualquer exigência e o desprezo pelos princípios. A democracia conduz à anarquia: “Estas são as vantagens da democracia: uma forma aprazível, anárquica, variegada, e que reparte a sua igualdade do mesmo modo pelo que é igual e pelo que é desigual” (558c). Ao exasperar a liberdade como bem supremo, “eliminam-se até as diferenças impostas pela natureza e, assim, a liberdade em excesso não conduz a mais nada que não seja a escravatura em excesso, quer para o indivíduo, quer para o Estado” (564 a). E dessa forma surge a Tirania: do cúmulo da liberdade surge a mais completa e mais selvagem das escravaturas (564b). Primeiro, instaura-se a anarquia, e dessa situação aproveita-se o tirano que, de pretenso defensor da ordem, transforma-se em lobo, impondo a força sobre todos. É o reino da injustiça.


No final do livro IX, Glauco questiona que tal Estado Ideal, como Sócrates propõe, é utópico, jamais existirá. Este Estado permanecerá como modelo eterno a ser contemplado: “Talvez nos céus haja algum modelo para alguém que deseja consultá-lo e por ele modelar a conduta da própria alma”, é a resposta de Sócrates.


Livro X -
no início do livro Sócrates retoma a crítica à poesia como meio educativo. A poesia não revela as coisas como são, mas como num espelho, nos revela só a aparência; e da natureza humana descreve somente o trágico e o triste. A poesia, enfim, está a três passos da realidade ( ). Deverá ser excluída da Cidade uma arte dessa espécie (607b), pois seria prejudicial à justiça e às demais virtudes (608b). Sócrates dá a entender que a poesia deva ser substituída pela filosofia, como meio educativo, pois somente esta pode nos revelar, na sua forma dialética, o que é a realidade de fato.

O restante do livro X constitui uma exortação à prática do Bem, ou seja, da justiça e das demais virtudes. Sócrates recorre ao discurso escatológico através do mito de Er, onde fala da recompensa no pós morte: afinal, a vida “é um grande combate (megas agon), meu caro Glauco, é mais do que parece, o que consiste em nos tornarmos bons ou maus. De modo que não devamos deixar-nos arrebatar por honrarias, riquezas, nem poder algum, nem mesmo pela poesia, descurando a justiça e as outras virtudes” (608b).


Concluindo a República, Sócrates trata da imortalidade da alma e tenta equacionar o destino com a responsabilidade. Retornando às figuras das três Parcas: Laquesis (passado), Cloto (presente) e Átropos (futuro), as filhas da Necessidade, Sócrates folga os laços do férreo destino, defendido pelo pensamento grego anterior: “Não é o gênio que vos escolherá, mas vós que escolhereis o gênio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade é de quem a escolhe. O deus é isento de culpa” (617 e).


Assim, como é impossível a alguém descrever todos os detalhes de uma obra de arte, analogamente nesta resenha não foi possível transmitir “tudo” sobre a República – que esta sirva ao menos como convite à leitura e contemplação desta obra prima do gênio grego.

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