quinta-feira, 6 de junho de 2013

O Pensamento Abstrato



O Pensamento Abstrato

Dr. Jorge Martins de Oliveira e Dr. Júlio Rocha do Amaral
Conceituar alguma coisa é um indispensável primeiro passo para entende-la. Assim, faz-se mister que a gente se conscientize de que a complexidade do assunto “pensamento abstrato” já começa pela própria dificuldade em definir o que é “pensamento” e o que é “abstrato”.
Iniciemos tentando conceituar “pensamento”.
Na lingua portuguesa, consultando o Dicionário do Aurélio e deixando de lado diversas definições lá existentes, que não esclarecem absolutamente nada, como: “é o ato ou efeito de pensar” ou “é a faculdade de pensar logicamente”, conceituações que nos deixam rodando em círculo, conseguimos encontrar duas que nos parecem um pouco mais cabíveis: “é um processo mental que se concentra nas idéias” e “é o poder de formular conceitos”.
Buscando na lingua inglesa, através do The Oxford Desk Dictionary and Thesaurus, voltamos a girar em torno de um mesmo ponto, frente à definições como: “é o processo ou poder de pensar” ou, pior ainda, “é o que alguém está pensando”, até que encontramos um conceito mais aceitável: “é a faculdade da razão”.
Porém, definitivamente, as conceituações dos filólogos de lá e de cá, não satisfazem às exigências de filósofos, psicólogos e neurocientistas.
Mas, de que forma estes conceituam “pensamento”?
Para Jung o “pensamento é uma função psicológica racional, que estabelece relações de ordem comportamental entre conteúdos representativos, através da utilização de categorias como ‘verdadeiro’ ou ‘falso, ou como ‘certo’ ou ‘errado’.”
Para Jolivet “pensamento é a capacidade que tem o ser humano de conhecer em que consistem as coisas e as relações que elas têm entre si.”
Porque admitimos que outras espécies também pensam, temos um conceito que, conquanto, parecido com o de Jolivet é, a nosso ver, menos restritivo e mais adequado. Assim, para nós, “pensamento é a capacidade que tem o ser de, através de três operações mentais distintas: ‘a formação de ideias’, ‘o juízo sobre as relações de conveniência  entre essas ideias’ e ‘o raciocínio, que estabelece relações entre os juízos’, compreender o significado das coisas concretas e das abstrações, bem como das relações que elas guardam entre si.”
E quanto ao conceito de “abstrato”?
Voltemos aos filólogos:
Na lingua portuguesa, novamente de acordo com o Dicionário do Aurélio, “ ‘abstrato’ é o que expressa uma qualidade ou característica separada do objeto a que pertence ou a que está ligada.”
Na lingua inglesa, de novo recorrendo ao The Oxford Desk Dictionary and Thesaurus, temos conceitos mais simples, como este: “abstrato é o que existe no pensamento ou na teoria e não na matéria ou na prática.”
Consultando outras fontes, científicas e filosóficas, obtivemos conceituações bem mais lúcidas, as quais, conquanto aparentando, à primeira vista, um certo grau de complexidade, nos permitiram, a partir de palavras relacionadas, como ‘abstração’ e ‘idéia, definir e compreender, mais claramente, o significado de ‘abstrato’.
Assim, temos que a ‘abstração’ é um conceito no qual não se leva em conta um valor específico determinado e sim qualquer entre todos os valores possíveis daquilo com que estamos lidando ou ao que estamos nos referindo. Por exemplo, em álgebra, quando dizemos que x é uma variável, desconsideramos o seu valor atual, mas consideramos todos os possíveis valores de x como sendo números, os quais não são objetos físicos e sim objetos linguísticos, formados pela abstração durante o ato de contar.
Daí ser talvez a matemática o exemplo ideal do ‘abstracionismo’, uma vez que, como regra, não estuda o mundo real, e sim modelos, que são abstrações do mundo real. Exemplificando: ‘três’ é uma idéia abstrata e não uma coisa concreta do mundo real. Mas ‘três’ é uma abstração muito útil, porque nos permite ter certeza de quanto ‘três’ representa e que, adicionando-se mais ‘um’, sempre teremos ‘quatro’, independentemente de estarmos nos referindo à pessoas, casas, bananas, ou a qualquer outra coisa.
Existem outras considerações interessantes e até mesmo contraditórias sobre o tema em questão. Vejamos:
Para o filósofo George Berkeley, idéias abstratas são não entidades, ou seja, não constituem idéias que na realidade temos e sim descrições incoerentes de ideías que imaginamos ter. Assim, para ele, as idéias não possuem existência própria, necessitando, sempre, da presença de alguém que as perceba. Uma opinião oposta aos clássicos pensamentos de Platão, para quem as idéias (abstratas ou não) existem de fato, independentemente de haver ou não uma mente humana para percebê-las, uma vez  que se encontram fora de nós, no universo, concebidas por um Ser Superior.
Allan Randall, ao concordar, parcialmente, com o filósofo grego, diz que, uma vez que a idéia abstrata possui uma existência própria, devemos imaginá-la como uma idéia de alguma coisa específica. E explica: se, por exemplo, “abstraímos”, ou retiramos, uma maçã do mundo real em que ela se situa, passamos a ficar, apenas, com uma idéia muito particular- a da palavra ‘maçã’. A idéia, em si, embora obtida através de uma abstração, não é inerentemente abstrata. Trata-se, na verdade, de uma idéia particular de algo concreto. Neste caso, uma espécie de imagem mental de uma maçã com cor, forma e tamanho definidos.
A idéia abstrata, que alcançou seu grau maior de desenvolvimento em nossa espécie, tornou-se a fonte da criatividade. Sem esta, a raça humana teria sido privada de uma das mais belas expressões que vida pode prover:  a arte. Como, por definição, o 'abstracto' não tem massa, forma, tamanho e cor, quase todas as obras de arte são, definitivamente, concretas. Tomemos como exemplo uma pintura original, não uma cópia, é claro. Ela foi o resultado de uma concepção abstrata inicial da mente do artista, da qual ele construiu uma certa imagem e a pintou. Assim, o trabalho dele ficou concreto, porque tem massa, cor e dimensões.
Por outro lado, a música de uma canção, outra admirável criação artística, é, também,  privada de cor, massa e dimensões. Então, por definição, seria uma abstração. Porém, a música é capturada por uma de nossas percepções sensoriais: a audição. Então, segundo nosso ponto de vista, a música não representa uma abstração "pura”. Assim, nós a consideramos uma semi-abstração ou abstração parcial, enquanto reservando o conceito de abstração " pura " ou absoluta para aquelas que, além de serem privadas de cor, massa e dimensões, também não são percebidas pelos órgãos sensoriais.  Elas são apenas  “sentidas " pela mente.
Como exemplos de abstração absoluta nós temos sentimentos como ciúme, paixão ou ira, amor ou ódio, felicidade ou tristeza, todos eles profundamente inseridos dentro dos neurônios do nosso sistema límbico ou, como diria John Eccles, nas profundidades de nossas almas...
Mais tarde, citaremos outros exemplos de abstração absoluta.
São também importantes e significativas, para a compreensão do processo do pensamento em geral e do abstrato particular, as conceituações apresentadas por James D. Weinland em seu livro How to Think Straight. Para este autor “o pensamento é uma atividade mental, de natureza ensaio e erro, que precede a ação física. Ocorre quando o próximo passo a ser tomado é desconhecido, porque alguma dificuldade interfere com a ação. Nestes casos, ensaios imaginários indicam um caminho para uma solução, evitando assim respostas inadequadas.”
Esta definição faz-nos lembrar, imediatamente,uma outra do grande neurofisiologista Aleksandr Romanovich Luria, segundo a qual “o pensamento surge somente quando o sujeito é confrontado por uma situação para a qual não tenha uma solução previamente preparada, seja ela inata ou habitual.”
Na concepção defendida por Weinland, o pensamento é um ato complexo, no qual podemos isolar os perceptos (isto é, as impressões de um objeto obtidas pelos nossos sentidos), os conceitos e as generalizações, relacionados entre si pelos processos de indução e dedução, sujeitos à ação de processos subordinados, como a classificação e a formação de hipóteses.
Analisando as definições de Weinland em relação aos diferentes elementos constitutivos do pensamento, concluímos que apenas os perceptos têm um caráter concreto, individual, uma vez que se referem a informações captadas pelos diferentes órgãos sensoriais e à sua análise pelos centros corticais correspondentes. O autor ressalta que, embora constituam unidades fundamentais do pensamento, os perceptos “não são as experiências mentais mais elementares dos seres humanos”, uma vez que são “um composto consistindo de sensação e memória”.
Na elaboração dos conceitos (ou idéias) predomina o não concreto, o grupal , pois os mesmos são formados a partir de uma série de vários exemplares individuais de objetos e seres, dos quais eliminamos as diferenças e conservamos as qualidades comuns através da abstração.
Ainda segundo Weinland  os conceitos podem ser classificados de alto ou baixo nível. “Os conceitos de baixo nível, baseados em perceptos verdadeiros de coisas individuais, resultam diretamente do contato pessoal com essas coisas e ajudam a formar nossa experiência prática”. Os conceitos de alto nível, ao contrário, “são menos dependentes da experiência de uma única pessoa, derivando, em grande parte da educação e, portanto, da cultura do  mundo civilizado”. Ou seja, (acrescentamos nós), do universo em que ela está inserida.
Os conceitos são relacionados entre si pela generalização, atividade abstrata que identifica similaridade entre os mesmos.
A importância da abstração na formação do pensamento já era ressaltada há séculos por autores como Condillac (apud Cuvillier), o qual, já em 1798, afirmava que o processo abstrato tinha início já na percepção, pois, “com efeito, nossos sentidos decompõem cada objeto”
Laromiguiere (apud Cuvillier), nesta mesma época e seguindo uma linha similar, dizia ser “o nosso corpo, uma máquina de abstrações” A abstração pode, portanto, ser entendida como uma análise redutora e simplificadora do complexo ‘mundo senso – perceptivo’ em que vivemos, fundamentando o pensamento que nos permite tomar as decisões adequadas, visando garantir nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie.
Substratos Neurofisiológicos do Pensamento Abstrato
São conhecimentos importantes para a compreensão dos substratos neurofisiológicos do pensamento abstrato, os conceitos de unidades funcionais do cérebro, propostos pelo neuropsicólogo russo Luria, Segundo este autor, as diversas estruturas que compõe o cérebro podem ser consideradas como partes constitutivas de três unidades funcionais principais:
1. Uma unidade responsável pela regulação do estado da atividade cortical e do nível de vigilância, formada pela substância reticular e outras estruturas existentes no tronco cerebral e no diencéfalo e pelas regiões mediais do córtex;
2. Uma unidade para a recepção, análise e armazenamento de informações – constituídas por regiões laterais do neocortex situadas na superfície convexa dos hemisférios cerebrais, compreendendo as regiões occipital (visão), temporal (audição) e parietal (sensibilidade geral);
3. Uma unidade para programação, regulação e verificação da atividade – formada por estruturas localizadas na região anterior dos hemisférios cerebrais, à frente da circunvolução para-central.
O pensamento, assinala Luria, depende da ação conjunta destas três unidades funcionais mas, as duas últimas parecem ter maior importância para o  pensamento abstrato.
A segunda unidade funcional, conforme o já exposto, é formada pelas regiões occipital, temporal e parietal. Distinguem-se nestas regiões três áreas anatômica e funcionalmente distintas:
a) As áreas primárias ou de projeção – formadas, principalmente, por neurônios da camada aferente IV, muitos dos quais apresentando alta especificidade modal; são eles que recebem fibras aferentes provenientes dos órgãos dos sentidos e funcionam como analisadores das informações sensoriais específicas.
b) As secundárias ou gnósticas – intimamente relacionadas com as primeiras e constituídas, principalmente, pelos neurônios das camadas celulares II e III, dotados de menor especificidade modal. A presença de muitos neurônios de axônios curtos permite que a excitação ‘entrante’ seja combinada em padrões funcionais, realizando, assim, uma função sintética.
c) As terciárias (ou de superposição dos terminais corticais de vários analisadores), compostas quase inteiramente por neurônios das camadas associativas II e III. Situam-se entre as regiões corticais occipital, temporal e pós-central, formando, em sua maior parte, a região parietal inferior que, no ser humano, adquire um máximo desenvolvimento.
Essas estruturas terciárias estão situadas nas clássicas áreas de Brodmann: 5, 7, 39 e 40 (na região parietal), 21 (na região temporal) e 37 e 39 (na região têmporo-occipital).
As referidas áreas encarregam-se de integrar as excitações provenientes de diversos analisadores. Segundo Luria seu principal papel é o de promover a organização espacial dos impulsos aferentes vindos de diferentes regiões e o de converter “os estímulos sucessivos em grupos simultaneamente processados, único mecanismo possível para explicar o caráter sintético da percepção, que Sechenov originalmente discutiu há muitos anos”.
Ainda segundo Luria, estas áreas “desempenham um papel essencial na conversão da percepção concreta em pensamento abstrato”.
As abstrações, formadas na segunda unidade funcional, são utilizadas pela terceira unidade para as programação das atividades do ser. Especialmente importantes, nessa terceira unidade, são as áreas préfrontais, formadas por neurônios granulares, que mantém conexões de dupla via, não só com o diencéfalo e o tronco cerebral mas também, praticamente, com todas as demais áreas do córtex. As áreas préfrontais, que atingem no homem o seu máximo desenvolvimento, desempenham papel fundamental na formação de intenções e programas, bem como na regulação e verificação dos comportamentos humanos mais complexos.
Lesões nas áreas terciárias da segunda unidade funcional provocam diversas alterações neuropsicológicas, dentre as quais destacam-se a incapacidade de captar o sentido global de uma construção verbal, embora mantenha-se preservado o entendimento de palavras individuais. Os pacientes continuam capazes de entender comunicações de acontecimentos (por exemplo, papai e mamãe foram ao cinema), porém não mais captam comunicações de relações (por exemplo, uma senhora veio da fábrica para a escola onde Nina estuda, a fim de dar uma palestra). E se confundem quando diante de expressões como “muito maior que”  ou “muitas vezes mais”.
Por outro lado, lesões nas áreas terciárias da terceira unidade funcional, isto é, nas áreas préfrontais, levam a diversas alterações motoras e cognitivas pela impossibilidade de se realizar programas de atividades e a verificação de seus desempenhos.
Lhermitte (apud Miller), estudando dois pacientes que sofreram ablações extensas, bilaterais, dos lobos frontais, observou que eles são incapazes de captar o sentido global de uma situação social, respondendo, apenas, a detalhes da mesma, o que o levou a cunhar, para descrever esse tipo de comportamento deficitário o termo “síndrome de dependência ambiental”. Estes pacientes tornaram-se, no dizer de Laurence Miller, “escravos virtuais de ‘deixas’ contextuais isoladas”.
Embora nem todos aceitem, nós acreditamos que outras espécies são capazes de desenvolver abstrações. Alguns primatas e cetáceos, sem dúvida, têm concepções abstratas, mas elas devem ser muito tênues e, certamente, nunca evoluem, como em nós, humanos, para um estágio de alta criatividade. E, mesmo se isso ocorresse, seria uma criatividade inócua, pois eles não disporiam dos atributos físicos para, a partir dela, construir alguma coisa que se pudesse considerar relevante e concreto. Não obstante, o exercício de pensamentos conscientes e abstratos, entre golfinhos e símios superiores, tem sido ampla e nitidamente evidenciado.
Premeditação, ainda que de pequenos atos, ações conjugadas e astúcia racionalmente concebida são comportamentos que envolvem, necessariamente, o emprego de abstrações.
Ressalte-se que estamos nos referindo a um tipo de astúcia calcada na lógica, não na intuição. A astúcia intuitiva é, em maior ou menor grau, inerente a todos os animais, por se tratar de um importante instrumento do arsenal de sobrevivência dos seres e das espécies.
Os famosos estudos realizados por Wolfgang Kohler nas ilhas Canárias demonstram, claramente, o uso dessa astúcia racional e de ações conjugadas por macacos superiores. Entre as inúmeras observações conduzidas por esse cientista, existe uma que, não só por seu aspecto humorístico mas por caracterizar a existência de componente abstrato, merece ser aqui assinalada. Ela tem a ver com a atitude maliciosa e maldosa praticada por dois chimpanzés contra uma galinha: um dos macacos apresenta um alimento para a ave, encorajando-a a se aproximar. Tão logo ela o faz, recebe uma pancada, desferida pelo outro macaco, com um pedaço de arame que este mantivera escondido atrás das costas.  A galinha se retrai mas logo cai de novo na armadilha, já que não consegue estabelecer a associação entre a oferta do alimento e a pancada recebida. E a coisa prossegue até que os macacos, possivelmente cansados da brincadeira, afastam-se do estúpido galináceo. O componente abstrato se denuncia pela evidente premeditação de uma conspiração elaborada e executada, em uma ação conjunta, pelos dois chimpanzés.
O pensamento abstrato pode surgir de estímulos externos captados pelos órgãos sensoriais, de lembranças evocadas da memória ou simplesmente de mensagens provenientes de locais indeterminados nos recônditos da mente e sem qualquer traço de lembrança consciente. Era como se tivessem surgido do nada!
Contudo, independentemente da origem do estímulo desencadeante, os pensamentos abstratos representam idéias ou sentimentos, não dimensionáveis, desprovidos de forma, tamanho ou cor, como amor, paixão, ódio ou tristeza - abstrações límbicas, ou algo assim como sentido ético e moral, música ou matemática - abstrações neocorticais.
Também a habilidade que tem a mente de selecionar novas rotas ou novos meios para alcançar um determinado objetivo é algo que, certamente, tem a ver com o pensamento abstrato.
As vezes, o pensamento abstrato, tal como a concepção espacial de alguma coisa – possivelmente processada algures no hemisfério direito, adquire um caráter tridimensional. Essa tridimensionalidade permite que o processo mental evolua para uma criatividade mais definida, ou seja, para a capacidade de, a partir da associação inteligente de idéias abstratas, “formar” um pensamento tridimensional que permita a concepção, e depois, eventualmente, a construção de novas coisas concretas.
Em outras ocasiões, a abstração inicial gera novos conceitos, igualmente abstratos, mas que evoluem para a formulação de leis ou princípios físicos do mais alto sentido prático.
É o caso da concepção geométrica do matemático Hilbert sobre a intercepção de linhas paralelas, que acabou se tornando a base da teoria da gravitação elaborada por Einstein.
Ou da idéia do mesmo Hilbert de "construir" espaços abstratos multidimensionais, através da aplicação de funções matemáticas simples que, 25 anos depois, iriam constituir um dos fundamentos da mecânica quântica.
Mas o pensamento abstrato proporciona algo mais: quando envolvido num processo de criatividade, ele adquire uma tal magnitude, que acaba por se constituir em forte estimulo, capaz de promover a proliferação dendrito-axonial, criando novas sinápses. Torna-se, assim, um poderoso estimulador do aprendizado, do conhecimento e da potencialidade de memorização.
Bibliografia
Autoria Desconhecida. Modeling and Abstraction.
http://www.c3.lanl.gov/mega-math/gloss/math/model.html
Beavers A.F. Planeaux C.S.and Suzane B.F. Exploring Plato’s Dialogues. 1999
http://plato.evansville.edu
Berkeley G.A. Principles of human knowledge. In: A Treatise concerning the Principles of Human Knowledge. by Philonous G.J. Warnock Ed. La Salle, Illinois. 1962.
Buarque de Holanda Ferreira A. Novo Dicionário da Lingua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira. 1998.
Cuvillier A. Manuel de Philosophie. Tome I. Librairies, Armand Colin. Paris. 1950
Debnath L. and Mikusurski P. Introduction to Hilbert Spaces with Applications. Academic Press. New York. 1998.
Eccles J.C. Evolution of the Brain: Creation of the Self. Routledge. London. 1989.
Hilbert D. and Cohn-Vosgen S. Geometry and the Imagination. Chelsea Pub. Co. Reprint Edition. London. 1999.
Jolivet R. Curso de Filosofia. Edição Brasileira. Editora Agir. Rio de Janeiro. 1986.
Jung C. G. Tipos Psicologicos. Edição Argentina. ED. Sudamericana. Buenos Aires. 1960.
Kohler W. The Mentality of Apes. Harcourt and Brace. New York. 1925.
 Luria, A.R. The Working Brain. Basic Books Inc.Publ. New York. 1973
Martins de Oliveira J. e Rocha do Amaral J. Princípios de Neurociência. TecnoPress. São Paulo. 1997.
Miller L. Inner Natures - Brain, Self & Personality. Ballantine Books. New York. 1991
Randall A.F. The Rejection of Abstract Ideas in the Metaphysics of George Berkeley. 1996
http://home.ican.net/~arandall/Berkeley
The Oxford Desk Dictionary and Thesaurus. American Edition. Berkley Books. Oxford University Press,Inc. 1997.
Turchin V. Abstraction. 1997.
http://pespmc1.vub.ac.bc/ABSTRACT.html
Weinland J.D. How to Think Straight. Rowman & Allanheld Publ. New Jersey. 1984
 
 
 

Os Autores
 
Jorge Martins de Oliveira, MD, PhD 
Professor Titular e Mestre da UFRJ. Livre-Docente da UFF. Coordenador Científico e Diretor do Departamento de Neurociências do Instituto da Pessoa Humana (RJ). Fellow em Pesquisa pelo Saint Vincent Charity Hospital, Cleveland, USA. Membro Titular da Academia Brasileira de Medicina Militar. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores, Diplomado pela Escola Superior de Guerra (ESG). Membro do Corpo Editorial da revista Cérebro & Mente. Autor de "Princípios de Neurociências", entre diversos outros.jmartins@rio.nutecnet.com.br
 
Júlio Rocha do Amaral, MD - Professor de farmacologia clínica, anatomia e fisiologia . Gerente Médico Científico da Merck S/A Indústrias Químicas. Redator de manuais didáticos sobre anatomia, fisiologia e farmacologia para uso da Merck. Supervisor de editoração das publicações científicas: Senecta, Galenus e Sinapse. Redator de protocolos e relatórios de pesquisas clínicas de produtos, a partir de 1978. Coordenador adjunto dos cursos de formação de especialistas em Oxidologia, promovidos pelo Instituto da Pessoa Humana (IPH) e Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO). Chefe do Serviço de Psiquiatria do Departamento de Neurociências do Instituto da Pessoa Humana (IPH). Co-autor do livro 'Princípios de Neurociências, entre outros. Email:julioamaral@pobox.com




 
http://www.cerebromente.org.br/n12/opiniao/pensamento.html 
 



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terça-feira, 4 de junho de 2013

A HORA DO JOGO DIAGNÓSTICA


A HORA DO JOGO DIAGNÓSTICA
A hora do jogo diagnóstica é um instrumento utilizado no processo psicodiagnóstico que objetiva conhecer a realidade do paciente quando este é uma criança. Pois a atividade lúdica é para a criança um meio de comunicação semelhante à expressão verbal nos adultos.
Existe uma diferença entre a hora do jogo diagnóstica e a hora do jogo terapêutica. A diagnóstica tem começo, desenvolvimento e fim em si mesmo, objetivando conhecer o problema e suas possíveis causas. A terapêutica é contínua e existem modificações estruturais advindas da intervenção do terapeuta.
A hora do jogo diagnóstica é precedida das entrevistas realizadas com os pais e no primeiro contato com a criança e preciso dar instruções da sessão de forma clara.
Cada hora do jogo diagnóstica é uma experiência nova que deve ser realizado em um ambiente espaçoso, que possibilite uma boa movimentação, deve ter pouca mobília e de preferência com piso e paredes laváveis. Deve ser permitida a brincadeira com água e materiais diversos. Esses materias podem estar em cima de uma mesa e parte dentro de uma caixa aberta, não devem estar organizados em agrupamentos de classes. Os brinquedos não devem ser escolhidos aleatoriamente, mas em função das respostas específicas que provocam. Outro ponto importante é a quantidade que não deve ser exagerada.
Os materiais devem ser de qualidade para evitar estragos. Deve se evitar também os que possam colocar em risco a integridade física do psicólogo e paciente.
Quando a criança entra no consultório deve ser instruída de forma clara a respeito dos papeis, do tempo, do material que pode ser usado e sobre os objetivos esperados.
O psicólogo deve desempenhar um papel passivo. Caso a criança solicite a sua participação ele deve desempenhar um papel complementar. É importante o estabelecimento de limites caso o paciente fuja as instruções dadas ou se coloque em perigo.
O psicopedagogo deve proporcionar condições para que a criança brinque da forma mais espontânea possível. O objetivo é observar, compreendendo e cooperando com a criança.
Para a análise da hora do jogo diagnóstica não existe uma padronização, mas pautas oferecidas com critérios sistematizados e coerentes que orientam a análise. Devem-se considerar os indicadores mais importantes para o diagnóstico e prognóstico, por exemplo:

  1. Escolha de brinquedos e de brincadeiras: O tipo de brinquedo escolhido, o tipo de jogo, se tem começo, meio e fim, se é organizado e coerente e se corresponde ao estágio de desenvolvimento cognitivo em que a criança se encontra.
  2. Modalidade das brincadeiras: cada sujeito organiza a sua maneira de brincar de acordo com a modalidade que o seu ego escolhe para essa manifestação simbólica. Destaca-se entre as modalidades de brincadeiras a plasticidade, rigidez e estereotipia e perseverança.
  3. Personificação: é a capacidade que a criança tem de assumir e atribuir papeis de forma dramática. Essa capacidade deve ser analisada levando em consideração a forma de personificação própria a cada estágio de desenvolvimento cognitivo, lembrando que a passagem de um período para o outro não se realiza de forma linear nem brusca, mas com sucessivas progressões e regressões.
  4. Motricidade: observa-se a adequação motora da criança na etapa de evolução que atravessa focando nos indicadores de deslocamento geográfico, possibilidade de encaixe, preensão e manejo, alternância de membros, lateralidade, movimentos voluntários e involuntários, movimentos bizarros, ritmo de movimento, hipersinesia, hipocinesia e ductibilidade.
  5. Criatividade: Observar a capacidade de unir ou relacionar elementos em um novo e diferente.
  6. Tolerância à frustração. Como a criança reage em tolerar ou se frustrar em determinados momentos.
  7. Capacidade simbólica: podemos avaliar a riqueza expressiva, a capacidade intelectual e a qualidade do conflito.
  8. Adequação a realidade: devemos observar como a criança age em ter que se desprender da mãe. Se age de acordo com sua idade, como compreende e aceita as instruções. Deve-se observar a aceitação ou não do enquadramento espaço-temporal e a possibilidade de se colocar em seu papel e aceitar o papel do outro.
O brincar da criança psicótica A criança necessita de adequação a realidade por falta de discernimento da realidade como se apresenta. Escolhe os brinquedos e brincadeiras com base em sua estrutura psicótica. No psicótico, significante e significado são a mesma coisa, sua brincadeiras são estereotipadas ou rígidas. Possui movimentos bizarros e desrelacionadas ao contexto. Não existe capacidade de imaginação, mas fantasias. Os seus personagens são cruéis e com grande carga de onipotência e sua tolerância à frustração é mínima.

O brincar da criança neurótica A criança neurótica tem uma adequação parcial à realidade e escolhe seus brinquedos e brincadeiras pela sua área de conflito. A capacidade de criatividade é diminuída dependendo do seu grau de síntese egoítica, brinca com personagens mais próximos a realidade, mas com rigidez na atribuição de papeis sua modalidade de brincadeira se alterna em função das defesas do ego predominantes. Sua motricidade é variável.

O brincar da criança normal A criança normal tem uma boa capacidade de se adaptar a realidade e escolhe suas brincadeiras de acordo com as funções e interesses de sua idade, expressa suas fantasias através de uma atividade simbólica com maior riqueza. Possui uma motricidade adequada ao seu desenvolvimento cognitivo. A criança dá livre curso à fantasia, atribuindo e assumindo diferentes papeis na situação de vínculo com o psicólogo aumentando assim a capacidade de comunicação.

Referência:

SIQUEIRA, de Ocampo Maria Luísa (orgs) “Processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas”. 9ª Ed. São Paulo. Martins Fontes. 1999(Psicologia e Pedagogia)


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O Brincar e a Psicanálise


Introdução
A psicanálise nasceu como um método investigativo aplicado a adultos. O valor da interpretação foi compreendido por Freud desde o primeiro momento, quando comprovou que, comunicando seus descobrimentos em momento oportuno ao paciente, conseguia que este tornasse consciente o que até então estava reprimido. Associação livre, transferência e interpretação foram os três pilares da técnica de Freud para fazer consciente o inconsciente.
Em 1905 tentou, pela primeira vez, aplicar este método à cura de uma neurose infantil: tratava-se de uma zoofobia de um menino de cinco anos (o ‘Pequeno Hans’). O sucesso terapêutico obtido por Freud ao analisar essa criança, através do relato de seu pai, permitiu alentar a esperança de aplicar o método analítico aos transtornos e enfermidades de crianças de pouca idade.
Segundo as palavras de Freud,
Ousaremos supor que realmente existe na psique uma compulsão a repetição que se instaura mais além do princípio do prazer. Também estaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva as crianças a jogar.
Freud descobriu a importância dos jogos lúdicos na análise infantil em Além do Princípio do Prazer (1921), onde um menino fazia aparecer e desaparecer um carretel, tentando, assim, dominar suas angústias frente ao aparecimento e desaparecimento da mãe. A criança mostrou como, ao brincar, podia separar-se da mãe sem o perigo de perdê-la, já que o carretel voltava quando ele assim o desejasse. Essa atividade permitia ao menino elaborar suas angústias ante as situações de separação impostas pela realidade, inevitáveis para ele.
Toda criança que joga se comporta como um poeta, enquanto cria um mundo para si, ou, mais exatamente, transpõe as coisas do mundo em que vive para uma ordem nova que lhe convém (…) O poeta faz como a criança que joga; cria um mundo imaginário que leva muito a sério, isto é, que dota de grandes qualidades de afetos, distinguindo-o claramente da realidade. (Freud, 1910)
A maior dificuldade encontrada ao aplicar a técnica de Freud às crianças foi a impossibilidade de conseguir delas as associações verbais. Faltava então o instrumento fundamental da análise de adultos. Dessa forma, os diferentes modos de adaptar o método analítico à mente das crianças deram origem às técnicas da psicanálise infantil. Sophie Morgenstern, na França, e Anna Freud e Melanie Klein, em Viena, publicaram os primeiros livros sobre o tema.
Apesar de ter introduzido a possibilidade de uma Psicanálise Infantil, Freud desencorajou seu posterior desenvolvimento em História de uma Neurose Infantil (1918), onde afirma:
A análise conduzida diretamente junto a uma criança neurótica pode, é claro, parecer mais confiável, mas não pode apresentar um material muito rico; é preciso emprestar uma quantidade enorme de palavras e pensamentos à criança, e mesmo assim os estratos mais profundos podem se mostrar impenetráveis ao consciente.
Melanie Klein contra argumenta Freud em seu artigo: Princípios Psicológicos da Análise de Crianças Pequenas (1926). Ela diz que ao se abordar uma criança com técnicas apropriadas para adultos, certamente não será possível penetrar nas camadas mais profundas de sua vida mental. Porém, se forem utilizadas técnicas apropriadas e se forem levadas em conta as diferenças psicológicas entre crianças e adultos, tal como o fato de que na criança encontramos o inconsciente em ação lado a lado com o consciente, todos esses pontos duvidosos e desfavoráveis deixam de existir.
Desse modo, temos que se pode esperar a mesma profundidade e abrangência na análise de crianças do que na de adultos . Há ainda um ponto favorável à análise de crianças: “nela podemos chegar a experiências e fixações que no caso dos adultos só pode m ser reconstituídas, enquanto nas crianças elas são representadas diretamente.” (Klein, 1926 p.160)
Assim como o meio de expressão das crianças não é o mesmo que o dos adultos, a situação analítica na análise de crianças também parece completamente diferente. No entanto, em ambos os casos ela é essencialmente a mesma, caracterizando-se por interpretações consistentes, solução gradual de resistências e rastreamento persistente da transferência até as situações mais iniciais. Trata-se de técnicas diferentes, e não de novos princípios de tratamento. (Klein, 1926 p.161)
O método do brincar mantem, para tal autora, todos os princípios da psicanálise e leva aos mesmos resultados da técnica tradicional. A diferença é que ele emprega recursos técnicos adaptados à mente da criança.
O Brincar na perspectiva winnicottiana
A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é. (O Brincar e a Realidade, p.81)
Winnicott, apesar de acolher muitos aspectos da teoria kleiniana, contesta a idéia da autora de que o brincar está intimamente relacionado à masturbação e às variadas experiências sensuais. Segundo o autor, o elemento masturbatório está essencialmente ausente no momento em que uma criança brinca; ou em outras palavras, quando uma criança está brincando, se a excitação física do envolvimento instintual se torna evidente, então o brincar se interrompe ou, pelo menos, se estraga.
Em outro livro, A Criança e Seu Mundo, Winnicott reflete sobre os motivos pelos quais a criança brinca (cap 22; Por Que as Crianças Brincam? ). Descarta de cara a idéia muito comum de que seria uma forma de escoar sua agressividade, “como se a agressão fosse uma substância má da qual a pessoa pudesse se livrar” (1982, p.161). O autor defende que a criança brinca por prazer e, também, para dominar angústias, controlar idéias ou impulsos que conduzem à angústia se não forem dominados.
A angústia é sempre um fator na brincadeira infantil e, freqüentemente, um fator dominante. Um excesso de angústia conduz à brincadeira compulsiva, ou à brincadeira repetida, ou ainda a uma busca exagerada dos prazeres que pertencem à brincadeira. Se a angústia for muito grande, a brincadeira redunda em pura exploração da gratificação sensual. (1982, p.162)
Winnicott faz ainda outra ressalva, de que o uso da brincadeira como comunicação na psicanálise de crianças fez, em muitos momentos, com que o analista ficasse mais preocupado com o conteúdo da brincadeira, do que com a criança que brinca. Além disso, o brincar se faz tão presente na análise de crianças quanto na de adultos. Nesses últimos o brincar se manifesta através da escolha de palavras, nas inflexões de voz, na verdade, no senso de humor.
O Brincar, para o autor, tem um lugar e um tempo. Este lugar não é dentro e nem fora, não é interno e nem externo. “Para controlar o que está fora há que fazer coisas, não simplesmente pensar ou desejar, e fazer coisas toma tempo. Brincar é fazer” (Winnicott, 1971). A fim de dar um espaço para o brincar, Winnicott postulou a existência de um espaço potencial entre a mãe e o bebê, entre o mundo interno e a realidade concreta ou externa. E ainda salientou uma mudança de paradigma na seqüência: psicanálise, psicoterapia, material da brincadeira, brincar. A brincadeira é que é universal, que é própria da saúde.
O brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros. (Winnicott, 1982)
Para entender o lugar a qual pertence o brincar, o autor analisa o desenvolvimento da criança e suas relações de objeto. Primeiro bebê e mãe são fundidos um no outro. Depois, a mãe tenta satisfazer todos os desejos do bebê, se esforça para ser o que o bebê tem capacidade de encontrar. Esse esforço da mãe oscila com outra conduta; ‘ser ela mesma’, aguardar o encontro.Quando a mãe desempenha bem tal papel, o bebê se sente confiante e começa a fruir de experiências baseadas num ‘casamento’ da onipotência dos processos intrapsíquicos com o controle que tem do real. A confiança na mãe cria um playground intermediário entre o bebê e seus objetos.A importância do brincar consiste extamente na precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos reais, é a magia que se origina na intimidade, num relacionamento que está sendo descoberto como digno de confiança.
No artigo A capacidade de brincar: um desenvolvimento necessário no adulto e na criança Audrey Setton (psicanalista contemporânea) retoma a questão proposta por Winnicott de que tanto no jogo da criança, como no do adulto, a capacidade de brincar é uma prerrogativa para que haja um bom contato com a realidade. Isso pode, a princípio, soar paradoxal, uma vez que o brincar parece estar na direção oposta da concretude do real. Porém, é somente através do brincar que o indivíduo estabelece contato com a realidade interna e externa, podendo explorá-las e, dessa forma, aprender sobre si e sobre o mundo.
Tanto adultos quanto crianças, quando procuram análise necessitam da ajuda de seus analistas para criar esse espaço mental para a vivência e exploração de seu mundo interno; de uma relação na qual primeiramente possam brincar, ou seja, de um espaço seguro no qual possam vivenciar suas fantasias sem o risco da ação. Segundo Parsons (2001), “trata-se de uma experiência de expansão de limites e o súbito prazer de descobrir uma inesperada liberdade de investigação”.
Na experiência analítica Freud já apontava para a transferência como um playground, uma área intermediária entre a doença e a vida real, necessária para que a análise pudesse operar. A transferência permite retirar a compulsão à repetição da clandestinidade ao admiti-la em seu interior, como se em um playground. Permite que, dessa forma, meio real, meio brincadeira, a transferência possa se expandir com mais liberdade e, também, revelar ao analista os instintos patogênicos escondidos na mente do paciente.
Gilberto Safra (psicanalista contemporâneo) coloca que o brincar tem a função de ampliar a significação da realidade. Em seu artigo O brincar sob a perspectiva winnicottiana diz:
Brincar é imensamente excitante. Excitante não primariamente porquê os instintos estejam envolvidos. (…) A excitação do brincar não é decorrente dos instintos, e sim ligada à dimensão estética da experiência e, também, à possibilidade de se criar diferentes sentidos de realidade existencial. Há no brincar a abertura de mundos, a abertura de significações que oferece à criança ou ao adulto a possibilidade de colocar em devir o seu próprio viver e o seu ser em desdobramentos contínuos. (2006, p.158)
Dessa forma, o trabalho clínico deve sustentar a própria atividade do brincar para que a função de criar realidades e sentidos, para que a função simbolizante, possa acontecer, revelando e constituindo a subjetividade da criança e o seu estar no mundo.Ao jogar em determinado ambiente a criança o ressignifica, imprimindo a ele uma organização diferente daquela que lhe foi oferecida. Isso significa que todo brincar demanda um tipo de ruptura com o que é dado.
No momento em que uma criança está criando um jogo a partir dos objetos que lhe foram oferecidos, estão atuando, ao mesmo tempo, sua biografia (seu passado, suas preocupações e angústias relacionadas a sua história) e uma tentativa de formular uma solução para suas questões que é um ‘pressentimento do futuro’, acontecendo o projetar de um horizonte existencial possível. “A criança que brinca abre uma situação no agora e, ao mesmo tempo, funda mundos para o amanhã A brincadeira promove passagens entre mundos e entre tempos” (Safra, 2006, p.14).
Winnicott, por sua vez, se colocava mais preocupado não tanto com o que pudesse estar simbolizado no jogo, mas sim com o impedimento do jogo. “No momento em que o jogar se estanca, há o adoecimento”. Isso, pois o jogo constitui os modos de ser, os mundos possíveis, o sonho do futuro, a sustentação do devir humano, ele é em si mesmo terapêutico. “O Brincar, por suas características, cura a criança e o homem. Independente das interpretações que o analista pode fazer frente ao jogo, ele por si mesmo promove a transformação e a cura” (1975).
Porém,vale ressaltar que, em alguns momentos, o fato de uma criança não brincar pode não ter o caráter de uma inibição. Ela pode estar simplesmente experimentando o vazio. Isso vale para crianças que foram excessivamente formatadas e submetidas ao seu meio ambiente ou, ainda, para crianças que foram excessivamente sufocadas pela expectativa dos pais. Porém, essa discriminação só é possível observando os modos de ser da criança e conhecendo sua história.
Referências Bibliográficas
  • Freud, S. (1920-22) “Além do principio do prazer” Em: Obras Completas, Rio de Janeiro, Edições Standart Brasileira, Imago Editora Ltda 1969
  • Freud, S. (1910) “Cinco conferências sobre psicánálise, Leonardo e outros trabalhos”Em: Obras Completas, Rio de Janeiro, Edições Standart Brasileira, Imago Editora Ltda 1969
  • Klein, Melanie (1926) “Principios psicológicos da análise de crianças pequenas” Em: Amor, Culpa e Reparação- Rio de Janeiro, Editora Imago
  • Safra, Gilberto (2006) “O brincar” Em: Desvelando a Memória do Humano. O Brincar,o Narrar, o Corpo, o Sagrado, o Silêncio- São Paulo, Edições Sobornost.
  • Setton, Audrey (2006) “ A capacidade de brincar: um desenvolvimento necessário no adulto e na criança.” Em: Progressos em Psicoterapia Psicanalítica: dez anos, uma história- São Paulo, Editora Casa do Psicólogo
  • Winnicott, Donald.W. (1971) O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago,1975
  • Winnicott, Donald.W. (1982) “Por que as crianças brincam?” em: A criança e seu Mundo. São Paulo: Editora LTC, 1982.

http://gestopsicanalise.com.br/ensaios/o-brincar-e-a-psicanalise

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