Jamais julgue a vida de um homem por uma atitude particular. Se quer emitir opinião sobre quem quer que seja, julgue a vida inteira, ainda que em vislumbre, pela vocação que o sujeito revela almejar no conjunto dos seus atos e na unidade subjacente. Foi assim que, outro dia, vim nesta coluna limpar a barra do Ítalo Marsili (https://revistaesmeril.com.br/israel-simoes-italo-marsili-no-banco-dos-reus/). Defenestrado por um grupo de conservadores que caiu de queixo ao vê-lo apertar, sorridente, a mão do ministro Fux, em meio aos arroubos de poder supremo das instâncias superiores do judiciário, tive que lembrá-los de que o psiquiatra não parece inclinado a obter uma personalidade intelectual que transcenda sua esfera pessoal, contentando-se em ser um exímio homem de negócios. O estudiosos produzem, Ítalo sintetiza e vende. E como diriam os jovens desta geração: é sobre isso e está tudo bem.
Neste mesmo espírito de abertura ao amplo repertório das vidas possíveis, o que podemos dizer de Jair Bolsonaro? Mais de 12 meses após deixar a presidência, o capitão mostra que ainda tem o poder de mobilizar a população e alterar o jogo de cartas marcadas da política brasileira. No último domingo de fevereiro (25), o ex-presidente reuniu milhares de manifestantes na Avenida Paulista vestidos de verde-amarelo, bradando uma única mensagem: o fim do inquérito que investiga uma tentativa de golpe no dia 08 de janeiro de 2023. A motivação é mais do que justa, visto que centenas de pessoas presas pela suposta tentativa de implodir Brasília (com hastes de bandeira e garrafinhas de água…) ainda aguardam julgamento. Além disso, as imagens da multidão na Paulista reforçam a atuação da bancada de direita no Congresso Nacional e a legitimidade da agenda conservadora no debate público em geral. Os jornalistas terão um pezinho atrás antes de resumir suas ideias à “extremismo”.
E bem, é só isso. Não espere que Bolsonaro use do movimento popular como um meio para desarticular a aliança Supremo-PT. A multidão é o objetivo final, suficiente para provar que o ex-presidente detém poder, mesmo sem cargo. Não é este o anseio de todo político? Poder nas mãos, nem que seja apenas para salvar a própria pele.
Foi exatamente este destino de Bolsonaro, o de terminar sua escalada no animal político, membro da família e da cidade, bom e virtuoso, coerente com a natureza humana, de sabedoria prática e discernimento justo, que diagnostiquei no artigo A jornada do herói (https://revistaesmeril.com.br/israel-simoes-a-jornada-do-heroi/). Atribuí ao capitão uma personalidade de camada 8, o que nem é grande coisa, exceto no Brasil. O homem de inclinações domadas é o mínimo que a maturidade exige, mas equivocadamente alguns leitores interpretaram minhas palavras, à época, como um louvor exagerado.
Dizia eu ali:
Se os nossos supremos ministros permitirem a volta do guerreiro ao campo de batalha, provavelmente veremos, nas eleições de 2026, um novo Bolsonaro, capaz de conquistar um papel definitivo dentro da história brasileira e da hierarquia da humanidade. Um homem camada 10, desde que aproveite o longo período de férias para transitar pela vida intelectual, lendo uns bons livros de filosofia política, literatura clássica e, quem sabe, os artigos da Revista Esmeril.
A Jornada do Herói, Esmeril
Sim, eu estava otimista, na verdade sugestivo, distribuindo conselhos sem preço, jogando ao léu as últimas esperanças de um milagre que mudasse os rumos do país. Mas não vai acontecer. Primeiro porque Bolsonaro já está inelegível por 8 anos e deve ficar por mais de 30, se condenado no inquérito do golpe. Segundo porque, ao que me consta, ele não anda gastando seu tempo transitando para lugar algum. Permanece o mesmo, o líder da massa, da torcida organizada que faz barulho, mas não entra em campo.
O heroísmo ao qual me referi, há quase um ano, é justamente aquele que se concretizou em sua trajetória pessoal de vida: do menino que caçava passarinhos com chumbinho à presidente da república, chefia suprema das Forças Armadas da União, pelo menos por quatro anos, depois de uma improvável e desacreditada candidatura. E de novo: está tudo bem. Ninguém deveria ousar lhe subtrair os méritos.
Assim como Ítalo, Bolsonaro suscita expectativas de originalidade, como uma espécie de consciência a mais e de um senso de dever que ultrapassa o interesse pessoal e o papel social. Mais uma vez testemunhamos, no entanto, a frustração na cara dos discípulos. A ação do sujeito se limitou às exigências decorrentes do seu papel oficial, às quais atribuiu o máximo sentido e competência, mas sem uma contribuição de fato definitiva para a cultura, a sociedade, a existência humana.
Excelente político, talvez o melhor desde a inauguração da república brasileira. Este é Jair Messias Bolsonaro, com seus milhares de espectadores simultâneos em uma live lá pelas tantas da noite, ofuscando lideranças religiosas, políticas e empresariais em cima do trio elétrico. Quem quiser falar mal do homem deverá ser capaz de indeferir esta biografia, não um hipotético erro lastreado por uma quimera forjada nos devaneios da coletividade.
Aos que esperavam do ex-presidente um papel definitivo na história da humanidade, terão que se contentar com o arremedo tosco de guerra santa do 8 de janeiro, por ele instigado de maneira inconsequente, para não dizer maquiavélica.
Nada que me surpreenda.
Porque dos intelectuais se espera uma integração de personalidade coerente e estável, mas aos políticos é permitido o acerto e o erro, quantas vezes forem necessárias, naquela faixa moral baixa que reduz as pessoas à conformidade do denominado eleitorado.
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