Não tenho problema com produto de massa. Gosto de brigadeiro, de self-service, do batidão que toca na academia, da camiseta branca da Hering, do brasileirão nas tardes de domingo, enfim, do que todo mundo consome sorridente e distraído. Frequentemente meu criticismo entra em suspensão e até o meu bom gosto, parece que acaba a pilha. É cansativo ser exigente demais e a complexidade da vida moderna, por si só, já nos demanda escolhas e juízos para além da nossa plasticidade cerebral.
Ocorre que alguns amigos e colegas pelos quais tenho grande apreço passaram a semana defenestrando o último documentário da Brasil Paralelo, História do Comunismo, justamente pela sua tentativa de agradar a todos. Nada vi nem consumi deste produto, mas tendo a dar razão aos meus companheiros quando vejo, no site da BP, o anúncio de que o “épico” (segundo eles) prestigia “Posições de simpatizantes e não simpatizantes de diferentes correntes ideológicas”.
Ora, se nem a Netflix tem esta presunção de neutralidade, me pergunto o que leva uma plataforma de vocação essencialmente conservadora a adotar esse discursinho de William Bonner em tempos de eleição presidencial. Só me vem à cabeça aquela pretensão do empresário brasileiro de migrar de projeto familiar para franquia, na ânsia por garantir a viabilidade do negócio (o que comumente leva ao fracasso, diga-se de passagem).
Enquanto meu Whatsapp era abarrotado de análises minuciosas do primeiro capítulo do documentário, minha esposa seguia sua rotina de amamentar meu segundo filho no sofá, todos os dias pela manhã, assistindo a série americana The Chosen. De temperamento melancólico, é natural que ela necessite contrastar as agruras do aleitamento, com suas mastites e fissuras, a algum tipo de experiência estética que abranja as dores daquele momento.
Novamente, minha impressão é de que ocorre uma suspensão do senso crítico mais aguçado. Não consigo imaginar alguém derramando lágrimas com aquelas cenas (combinando diversos recursos cinematográficos justamente para produzir lágrimas) senão por uma transposição imaginária do que está na tela da TV para a situação real, registrada na narrativa bíblica, porém a nós carente do testemunho ocular.
No lugar de representar o mistério, o paradoxo, a agonia e o dilema vividos naquele período de inflexão histórica (coisa que Mel Gibson atingiu com maestria em A Paixão de Cristo), opta-se pela encenação simples e literal dos momentos marcantes do Ministério de Jesus, entrecortados por situações leves ou sentimentalóides. É uma série formatada no estilo soft de novela das seis com a obviedade textual de um teatro de adolescentes.
Nos comentários de internet não faltam emocionados relatando um novo modo de frequentar o culto e a missa: trazendo à mente o rosto de Jonathan Roumie, intérprete de Jesus Cristo em The Chosen, bem como os cenários e trilhas sonoras que dão o tom teatral da série americana. Em outras palavras: se a liturgia está monótona, pense em The Chosen e você evocará algumas emoções que o levarão mais próximo de um êxtase.
Como comecei o texto dizendo que não tenho problema com produto de massa, não serei ranzinza: assistam o drama cristão. Usem-no para sensibilizar seus familiares desviados do Reino, para entreter seus filhos viciados em telas. E quanto à nova série da Brasil Paralelo, vão lá, popularizem-na! De preferência nas universidades públicas, pois é certo que ela promove debates mais qualificados que os atuais seminários dos cursos de humanas.
Apenas peço que não chamem margarina de manteiga, ou massa pronta assada de bolo, nem o bife do McDonald’s de angus, pelo amor ao senso das proporções.
Mantenha a dose mínima da criteriosidade necessária à preservação da inteligência, antes que você se torne irremediavelmente viciado nos prazeres imediatos das coisas michas.
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ISRAEL SIMÕESTerapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.
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