“De noite, quando dormia
sonhei, bendita ilusão!,
que uma fontana fluía
dentro do meu coração.”
Aquele era o inverno da minha desesperança. Eu trabalhava como redator da primeira página do jornal; portanto, era o último a chegar e o último a sair da redação. Depois do fechamento, por volta das 11 horas, às vezes meia-noite, ia direto para o bar, onde ficava até algum ponto da madrugada. Chegando em casa (o meu solitário apartamento na Rua Cacilda Becker), engolia duas neosaldinas, tinha três ou quatro horas de sono etílico, e então chamava um táxi e ia para o Sindicato dos Jornalistas, onde era diretor de comunicação. O sindicato ficava em um fundo de vale, profundo como Jericó. Toda a minha vida era uma mentira, do começo ao fim. Eu não acreditava em Deus, não acreditava no homem, não acreditava em nada. Para justificar minha permanência no mundo, fingia ter esperanças em uma ilusão obscura que chamava de revolução. O medo e a angústia eram os meus deuses, mas eu os chamava de Lênin e Trotsky.
A 963 quilômetros dali, enquanto eu chegava de ressaca ao vale do sindicato, Olavo de Carvalho morava em um pequeno apartamento no lendário condomínio popular do Rio de Janeiro conhecido como Favelão. No momento em que eu escrevia algumas idiotices sobre o último congresso da Fenaj ou sobre o diploma de jornalismo, Olavo escrevia livros e artigos que mudariam o Brasil para sempre.
Certo dia, como conta a Roxane, Olavo e ela estavam assistindo a um filme no videocassete — acho que era “A Lista de Schindler” — e um professor foi até o Favelão para conhecer aquele articulista que demolia sem dó as reputações das vacas sagradas da esquerda brasileira. Quando viu onde Olavo morava com a mulher e os filhos — Leilah e Pedro eram pequenos —, constatou que aquele homem certamente não era financiado pelos grandes capitalistas internacionais, como imaginara antes.
Até que um dia — um dia em que minha ressaca estava particularmente insuportável e as neosaldinas haviam acabado —, eu liguei o computador do sindicato e por acaso, procurando textos sobre a Revolução Russa, caí no site de um professor que escrevera um livro cujo título me encantou desde o primeiro momento: “O Jardim das Aflições”.
Lendo os artigos do tal Olavo, descobri que ele atacava sem medo ou reverência os principais ícones esquerdistas da época, tais como Leandro Konder, Emir Sader e Marilena Chaui. Confesso que fiquei bastante irritado, e até indignado, com a insolência do homem —, mas simplesmente não conseguia parar de ler o que ele escrevia.
Obviamente, eu lia Olavo escondido, pois aquilo seria considerado uma transgressão inominável pelos meus companheiros de sindicato. Um dia, depois de muita hesitação, resolvi entrar numa livraria chamada Rosa do Povo e comprei “O Jardim das Aflições”. Enquanto escrevo agora, tenho essa velha edição aqui na minha mesa de trabalho. É impossível resumir, nos limites de uma crônica, o impacto que a leitura daquele livro causou na minha vida; eu simplesmente descobri que as minhas aflições estavam descritas naquelas páginas. Olavo é o jardineiro das nossas aflições, não no sentido de que as cultivou, mas porque soube identificá-las e podá-las, libertando seus alunos e leitores desse Getsêmani espiritual. Sobre isso, talvez eu possa contar uma breve história.
Certa noite, saí da redação e fui direto para o Bar Brasil, onde me reunia com meus colegas jornalistas. Era uma quinta-feira, que nós chamávamos de Quinta Sem-Lei. Em determinado ponto da noite, quando o bar estava lotado, olhei para todas aquelas pessoas que riam, bebiam, falavam aos gritos e se espremiam umas contra as outras — e pensei: Em breve todos estarão mortos. E então senti uma imensa compaixão por todos, uma surpreendente esperança de que pudessem ser salvos da morte eterna, uma luz dentro daquele Getsêmani noturno. Deve ter sido nessa noite que eu vi o Silvio Grimaldo pela primeira vez, sem imaginar que ele um dia me faria conhecer pessoalmente o Olavo. Silvio diz que não fui muito simpático com ele nessa ocasião, e aqui eu explico por quê: naquela noite eu descobri que todos morávamos no Jardim das Aflições. Santa Faustina viu o Cristo flagelado em um salão de baile; eu vi as velhas oliveiras do Getsêmani naquele bar.
Ah, eu deveria ter saído daquele bar, deveria ter pedido demissão do sindicato, deveria ter ido até o Favelão, deveria ter batido na porta do apartamento da família Carvalho. E a Roxane abriria a porta, e sorriria para aquele jovem desconhecido e, vendo o querido professor diante da máquina de escrever, eu diria o que só pude dizer tantos anos depois:
— Obrigado, Olavo!
“De noite quando dormia
Sonhei, bendita ilusão!
que era Deus o que eu trazia
dentro do meu coração.”
(António Machado)
— Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.
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Fonte: BSM.