Winnicott: O homem espontâneo
Resenha de Donald W. Winnicott,
Winnicott: o homem espontâneo(Cartas selecionadas de Winnicott)
São Paulo, Martins Fontes Ed., 1990, 178 p.
Dizia Winnicott que o homem maduro é aquele capaz de identificar-se com a sociedade sem ter que sacrificar excessivamente sua espontaneidade, é capaz de atender suas necessidades pessoais sem tornar-se por isto um ser anti-social, e de aceitar certa responsabilidade quando isto se tornar necessário.
O Gesto Espontâneo, coletânea de 126 cartas de Winnicott selecionados pelo psicanalista americano Robert Rodman, brinda-nos também, com breve e cuidadosa biografia do missivista feita pelo editor. Vemos o quanto Winnicott, atuando como pediatra, psicanalista e cidadão em vários setores da sociedade, mostrou, na prática, a importância que dava ao entrelaçamento do indivíduo com o meio. Emitiu valiosas opiniões referentes a projetos governamentais que interferiam direta ou indiretamente na área da saúde ou educação; assim, encontramos cartas dirigidas ao Primeiro Ministro da Inglaterra, a destacados períodos, a reitores de universidades, professores, sacerdotes, médicos das mais variadas especialidades (psiquiatras, neurologistas, pediatras, psicanalistas), a fabricantes de brinquedos, a amigos e inimigos, a leitores de suas publicações, a qualquer cidadão comum que lhe pedisse ajuda.
A correspondência abrange um período de 60 anos; inicia-se com a carta de novembro de 1919, que então estudante de medicina, aos 23 anos, dirige à sua irmã, seis anos mais velha (carta 1). É uma entusiasmada "aula" a respeito do que é a psicanálise, introduzindo Violet às idéias de Freud, e para tanto elaborando um esquema explicativo do funcionamento da mente. Observando o fenômeno das obsessões religiosas, considera-as tão patológicas quanto a loucura, e pensa na psicoterapia como forma de descentrar o indivíduo proselitismo religioso, possibilitando-lhe descobrir a religião de uma forma pessoal e criativa. Vemos aqui, desde cedo o jovem Winnicott valorizando a questão da individualidade, que se desdobrará no futuro nas idéias de falso e verdadeiro self. A psicanálise desperta-lhe fascínio intelectual. Sua prática, diz ele, "requerer paciência, solidariedade, além de outras qualidades..." Pondo em dúvida se utilizará em seu trabalho, considera-a de qualquer modo "seu passatempo", um verdadeiro hobby.
Um pulo de dezenove anos leva-nos à segunda carta, de novembro de 1938, endereçada ao Primeiro Ministro britânico, Neville Chamberlain, ou melhor muito engenhosamente enviada à sua mulher, Mrs. Chamberlain: "já que o primeiro ministro não tem tempo de responder as perguntas, poderia a senhora tentar respondê-las?" Chamberlain como sabemos, fazia a política de conciliação (appeasement) com a Alemanha de Hitler, e Winnicott enterpela-o sobre suas intenções democráticas: "por que o primeiro ministro nunca menciona os judeus? Não estou pedindo a ele que seja pró-judeus, mas quero saber com certeza se ele não é secretamente anti-judeus... no momento, parece que estamos compartilhando secretamente a insanidade antisemita dos alemães, e não é a isso que queremos que nossos lideres nos conduzam." Eis aqui o retrato do homem corajoso, combativo, levando até os últimas conseqüências seu ideal democrático.
Em novembro de 1948, Winnicott toma posição política contrária ao projeto de lei do Serviço Nacional de Saúde que propõe a estabilização da medicina. Dirige uma carta ao editor do Times (carta 6), na qual expressa suas preocupações de que "a prática médica seja agora subserviente, não à ciência, mas a política." Teme que um ministro de saúde sem qualquer treinamento científico opte, por exemplo, por incluir no serviço Médico do Estado determinada prática terapêutica. Critica frontalmente a posição daquele jornal por ter se furtado a prestar informações inequívocadas ao público a respeito dos possíveis riscos que tal estatização representava.
O prosseguimento na leitura das cartas faz-nos conhecer o homem intensamente participante dos problemas do seu tempo. Na área da educação, por exemplo, permite-se uma conversa franca com uma fabricante de bonecas (carta 11) que as faziam com órgãos sexuais, segundo especificações do Instituto de Psicologia Infantil. Dizia ele: "a boneca é muito mais do que um bebê não vivo." Winnicott dava importância a capacidade imaginativa da criança a sua possibilidade de utilizar recursos simbólicos e criativos na atividade de brincar. O brinquedo não tem que ser igual a realidade, caso contrário "a partir daí a conclusão lógica seria fazer um ursinho de pelúcia que mordia de verdade quando provocado." Os fenômenos da ilusão e da criatividade serão, mais tarde, ponto central nos seus estudos sobre os objetos e fenômenos transicionais.
Durante a guerra, Winnicott trabalhou com crianças evacuadas e separadas precocemente dos pais, o que o colocou frente a frente com angústias infantis graves, assim como com as tendências anti-sociais. A partir daí foi aprofundando sua compreensão sobre a importância de um ambiente facilitador e de uma mãe good-enough, presente e confiável. Vê a tendência anti-social e delinqüência como reação à falha ambiental, discutindo longamente tais idéias com vários interlocutores (cartas 14,17,29).
Grande parte da correspondência selecionada no livro é dirigida a psicanalistas, aentre ele os "britânicos" Anna Freud, Melanie Klein (sua supervisora), Bion, Betty Joseph, Glover, Ernest Jones, Strachey (seu primeiro analista), Joan Riviere (segunda analista), Kon Rosenfeld, e na França, Lacan. Winnicott, como todo inglês, era bom missivista, parecendo de fato ter prazer em escrever aos colegas, comentando trabalhos apresentados, apreciando a originalidade das idéias ou falando das suas próprias discordâncias teóricas, expressas num estilo franco, às vezes até rude .
Freqüentava a sociedade Britânica de Psicanálise, na época das famosas controvérsias que dividem aquela instituição em dois grupos, vinculados respectivamente a Anna Freud e Melanie Klein,. Embora as divergências principais se referissem a questões teóricas e técnicas, logo transformaram-se em verdadeira luta pelo poder, quase levando aquela sociedade a uma total cisão. Winnicott, que inicialmente pertencia ao grupo Kleiniano, com o passar dos tempos tornou-se bastante crítica ao trabalho de Klein, apesar de continuar admirando as suas primeiras contribuições e de ter-lhe feito, numa carta a Bion(57) uma verdadeira declaração de amor. ""julgo-me capaz de vituperar contra o grupo Kleiniano, sem alterar um mínimo que seja de minha opinião respeito da Sra. Klein, como sendo uma pessoa adorável, a quem deve tanto quanto a Freud e que contribuiu tão plenamente para a ciência ." Diverge todavia a política isolacionista do grupo, assim como de algumas posições conceituais, tais como os conceitos de inveja, de objeto interno, da precocidade da posição esquizo-paranióde e da pouca importância dada ao ambiente (carta 59 a Joan Rivière, carta 57 a Bion).
Winnicott procurou manter uma posição conciliatória entre as duas primeiras damas da escola inglesa, apesar de ter escrito cartas bastante duras a ambas e aos eus seguidores. Em 952, por exemplo, crítica severamente Hanna Segall por ficar, "empoleirada no topo do Everest de um seio bom internalizado." Pensa que as idéias de Klein não precisam ser impingidas à sociedade pelos "sub-kleinianos": as contribuições de Melanie estão tornando inaceitáveis para a Sociedade, por causa do modo com seis ou oito pessoas a estão apresentando, de maneira propagandísta"(carta 20 a Hanna Segall). Ainda naquele ano escreve diretamente a Klein para mostrar sua preocupação com a "estrutura Kleiniana". "Você é a única que pode destruir esta linguagem chamada doutrina kleinianismo"(carta 25).
Entre s seguidores de Klein, vemos Winnicott dedicar a Bion a mais profunda admiração: "penso em você como o grande homem do futuro na Sociedade Britânica de Psicanálise"(carta 57). Discute com ele questões sobre sonhos de psicóticos (carta 81) e falhas ambientais, e, com outros interlocutores, faz uma aproximação entre os conceitos de hoding a rèverie.
A correspondência com o outro lado da Mancha restringe-se, no livro, a uma carta (79), dirigida a Lacan. É datada de fevereiro de 1960, e nela Winnicott agradece a publicação e a tradução para o francês do seu artigo sobre objetos fenômenos transicionais, o que realmente possibilitou a divulgação de seu pensamento na França. A relação entre estes dois homens foi sempre de admiração e cordialidade. Cada um à sua maneira preocupou-se com os fatores culturais, e Winnicott declarou-se, em seu trabalho sobre o papel de espelho da face da mãe, influenciado pelas idéias de Lacan no "Le Stade du Miroir."
Poderia contar outras certamente muitas outras coisas sobre a correspondência que traz o seio da originalidade de Winnicott. Optei por não discutir suas contribuições teóricas que se delineiam aqui e acolá, por serem tão extensamente abordadas em outros livros, mas é um prazer vê-lo defender com tenacidade e firmeza suas idéias.
São inesgotáveis suas 126 cartas! O livro todovia termina, e o faz com uma brevíssima e modesta autobiografia que Winnicott envia a seu amigo Robert Tod, apresentando-se basicamente como aquele clínico trabalhador, trabalhador do dia a dia, quarenta anos pediatra, mas desde os 27 anos de idade envolvido com a psicanálise. Este casamento psiquê-soma permitiu a Winnicott inovar a pediatria. A penicilina, diz ele, pôs um fim à pediatria física, e agora pode-se examinar os distúrbios próprios da vida das crianças fisicamente adis: "os avanços da pediatria abriram campo para a psiquiatria infantil". Mas este percurso tem mão dupla, porque foi como pediatra que começou a valorizar a dinâmica das relações entre a criança e sua família.
É hora sugeri ao leitor que leia saborosamente ( apesar das falhas na tradução) estas cartas, admirando a coragem, o humor, a vivacidade, a firmeza e principalmente a criatividade deste analista espontânea, cujo centenário de nascimento Percurso ora homenageia.
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