A rebelião cessacionista
Ler a Bíblia é deparar-se com o sobrenatural em cada página. Além de ser um livro divinamente inspirado (2 Timóteo 3:16), é possível encontrar muitos relatos de milagres, visões, sonhos e profecias. Embora as Escrituras mencionem que há épocas em que essas manifestações eram raras (1 Samuel 3:1), elas ensinam que os últimos dias seriam marcados por profecias, sonhos e visões:
Mas o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta Joel: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão. Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais embaixo na terra: sangue, fogo e vapor de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e glorioso Dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. (Atos 2:16-21)
No entanto, estranhamente, um grupo de protestantes recusa a ideia de que Deus continue dando sonhos, visões e profecias sobre seus servos nos dias de hoje. Argumentam eles que tais manifestações estavam restritas aos dias dos apóstolos, juntamente com outras, como as orações em línguas e as pessoas com dons de curas e milagres. Há que vá além e chame de hereges e apóstatas os que acreditam na continuidade destes eventos no século XXI.
Contudo, acreditar na contemporaneidade dos dons miraculosos do Espírito Santo não é exclusividade pentecostal, muito menos uma novidade do início do século XX. Ao contrário, o cessacionismo é que seria uma novidade teológica, já que os ramos mais tradicionais do cristianismo, representado pela Igreja Católica Apostólica Romana e pelas igrejas ortodoxas, sempre reconheceriam a existência de pessoas que realizaram milagres e tiveram sonhos, visões e profecias, a quem elas chamam de santos. Mesmo dentro do protestantismo, há relatos históricos de que vários reformadores escoceses, inclusive John Knox, acreditavam na contemporaneidade da profecia (os relatos podem ser achados em português no livro Surpreendido Com a Voz de Deus, de Jack Deere, da Editora Vida, já esgotado). Atualmente, além dos pentecostais, o continuísmo é ensinado por vários representantes do novo calvinismo, como John Piper, Wayne Grudem e Mark Driscoll.
John Knox: o reformador escocês também cria em profecias |
Os mandamentos não explicados
Mas o maior problema não é o histórico, e sim o bíblico. Os cessacionistas não encontram uma base bíblica clara para fundamentar a cessação dos chamados dons extraordinários (profecia, milagres, curas, línguas, interpretação e outros). Na verdade, sequer conseguem explicar uma base bíblica para classificar os dons em ordinários e extraordinários, já que os mesmos sempre são relacionados lado a lado, de modo indistinto.
Como se não bastasse, há um problema ainda pior. O cessacionismo fere de modo frontal uma série de mandamentos bíblicos relativos a busca e a prática de dons cuja continuidade é negada por eles:
Segui o amor e procurai, com zelo, os dons espirituais, mas principalmente que profetizeis. (1 Coríntios 14:1)
Eu quisera que vós todos falásseis em outras línguas; muito mais, porém, que profetizásseis; pois quem profetiza é superior ao que fala em outras línguas, salvo se as interpretar, para que a igreja receba edificação. (1 Coríntios 14:5)
Portanto, meus irmãos, procurai com zelo o dom de profetizar e não proibais o falar em outras línguas. (1 Coríntios 14:39)
Pelo que, o que fala em outra língua deve orar para que a possa interpretar. (1 Coríntios 14:13)
Não desprezeis as profecias; (1 Tessalonicenses 5:20)
Porque assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função, assim também nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros, tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que ensina esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta faça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com alegria. (Romanos 12:4-8)
Não é preciso dar muitas explicações adicionais: os textos são claros. São mandamentos bíblicos que a Igreja deve buscar os dons, principalmente o de profecia. As línguas não devem ser proibidas e Paulo chegou a desejar que todos os coríntios orassem em línguas. Quando o apóstolo instrui a igreja de Roma sobre os dons, ele ordena que profetas exerçam seu dom segundo a medida de sua fé.
E aí há sim uma questão delicada a ser respondida pelos cessacionistas. Baseados em quê eles se negam a cumprir os mandamentos bíblicos? Por que proíbem o falar em línguas? Por que estimulam a busca de dons como o do ensino, mas põem a profecia em último lugar? Por que impedem que profetas exerçam seu dom dentro da igreja? O ônus da prova recai sobre eles, e não sobre os continuístas.
A Bíblia inútil
Uma outra consequência da visão cessacionista é tornar inúteis grandes porções do Novo Testamento. Por exemplo, se profecias e línguas não existem, boa parte das instruções de culto que são dadas em 1 Coríntios 12 a 14 são inúteis. Tratam-se de uma mera curiosidade histórica, uma espécie de "dispositivos transitórios", que valeram apenas por um curto período de 60 anos.
Uma rápida lida nestes capítulos mostra o quanto estes dons são importantes para o apóstolo. Os dons "extraordinários" são mencionados na lista de 1 Co 12:4-11. Os profetas, operadores de milagres, pessoas com dons de curar e variedades de línguas são mencionados em 1 Co 11:28-30 como partes do Corpo de Cristo. Profecia e línguas são dons mencionados no argumento de Paulo sobre o amor em 1 Co 13:1-3. E todo o capítulo de 1 Co 14 trata especificamente do lugar e do uso correto das línguas e da profecia no culto.
Aliás, este capítulo é emblemático. Possui 40 versículos que, segundo os cessacionistas, não encontram mais uma aplicação clara no século XXI. Ora, se estes dons cessaram, por que gastar tanto espaço explicando:
- A utilidade da profecia para a igreja (edificação, consolo e exortação);
- A relação entre línguas e profecia;
- A necessidade de interpretação no culto bíblico;
- A razão de quem ora em línguas orar para poder interpretar o que ora;
- O impacto das línguas e da profecia nos visitantes;
- Quantas pessoas devem orar em línguas nos cultos;
- Quantos podem profetizar nos cultos;
- Como as profecias devem ser examinadas;
- Porque não devem ser proibidas as línguas e buscada a profecia.
Se tais dons não existem mais, é de se perguntar: por que Deus daria tanto espaço na Bíblia para coisas tão passageiras? E 1 Coríntios 14 não é o único caso. Além de Corinto, há instruções ou menções sobre a profecia e outros dons miraculosos para outras igrejas, como Roma (já citado), Tessalônica (já citado), Éfeso (Ef 4:11-16) e Galácia (Gl 3:5). O autor da carta aos Hebreus considerava possível a visita de anjos (Hb 13:2). Pedro também deu instruções que incluem a profecia e as línguas (1 Pe 4:10-11).
A relação é ainda maior quando se lê o livro de Atos dos Apóstolos, onde há eventos sobrenaturais em quase todos (se não em todos) os capítulos. Mesmo considerando o argumento cessacionista de que os dons extraordinários estavam ligados aos apóstolos, há vários exemplos de uso desses dons por pessoas que não eram apóstolas...e que os exerciam sem a presença "supervisora" apostólica:
- O diácono Estêvão fazia prodígios e grandes sinais, com certeza, milagres (At 6:8). Além disso, fez um discurso, cheio do Espírito, que é facilmente enquadrado como profecia (At 7);
- O evangelista Filipe não era apóstolo e não pede autorização apostólica para fazer sinais e expulsar demônios em Samaria (At 8:4-13). Os apóstolos chegam depois. Filipe também vê anjos e é arrebatado em Atos 8:26-39;
- Ananias tem uma visão do próprio Cristo e efetua um milagre na vida de Paulo...e estava em Damasco, uma igreja onde não havia nenhum apóstolo. Não se diz nada de Ananias...nem se ele era pastor, presbítero ou diácono. Talvez fosse só um crente "comum" (At 9:10-19);
- Ágabo não era apóstolo e profetizou uma fome, que gerou inclusive campanhas de coleta de donativos nas cartas de Paulo (At 11:27-30). Ele parecia itinerante, já que reaperece em Cesareia, profetizando a prisão de Paulo (At 21:10-11);
- Há profetas na igreja de Antioquia e eles enviam Paulo e Barnabé em missões por causa de uma revelação do Espírito Santo (At 13:1-3);
- Profetas falaram sobre a prisão de Paulo em Tiro, outra igreja sem presença apostólica (At 21:4);
- Filipe morava em Cesareia, outra igreja sem apóstolos em seu quadro, e tinha quatro filhas donzelas profetisas (At 21:9).
Se os cessacionistas estão corretos, há um sério problema então para todo pregador que escolha um texto de Atos dos Apóstolos. Afinal, boa parte do livro não teria mais aplicabilidade para a igreja contemporânea. Pior: há que se ter um cuidado redobrado. Isto porque, se fizermos um estudo da vida normal da igreja em Atos, podemos tirar conclusões erradas, como a de que profecias podem orientar decisões eclesiásticas ou a de que milagres são sinais que acompanham a pregação evangélica.
O ônus da prova
Por todas as razões acima, pelo grande peso das evidências favoráveis ao continuísmo, o ônus de provar o seu ponto deveria ser dos cessacionistas, e não dos continuístas. É preciso um argumento exegético sólido para justificar porque tantos mandamentos e passagens bíblicas devem ser ignoradas. E, diga-se de passagem, este post não traz todos os argumentos que podem ser usados para defender o continuísmo. Ao contrário, ele mostra é o tamanho do nó que precisa ser desatado se insistirmos em uma posição cessacionista.
Creio também que é o momento de cessacionistas encararem os continuístas de outra maneira. O continuísmo não é uma quebra do primeiro ponto da Reforma, o Sola Scriptura, que ensina que a Bíblia é nossa autoridade máxima em questões de fé e prática. Ao contrário, o continuísmo é uma obediência a este ponto, já que o peso da evidência bíblica é favorável aos continuístas, e não aos cessacionistas. Já é chegada a hora de parar as acusações de que somos hereges e apóstatas ou de que nossa teologia é inferior.
Afinal, sendo bem sincero: considerando tudo o que foi apresentado aqui, quem faz a melhor exegese bíblica: cessacionistas ou continuístas? Ao meu ver, a resposta é clara. E, se estou correto, os cessacionistas estão em rebeldia contra o Senhor. E precisam se arrepender deste pecado.
Graça e paz do Senhor,
Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro
Obrigado pela visita, e volte sempre.
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