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segunda-feira, 30 de junho de 2014
domingo, 29 de junho de 2014
sábado, 28 de junho de 2014
domingo, 22 de junho de 2014
sábado, 21 de junho de 2014
sexta-feira, 20 de junho de 2014
quinta-feira, 19 de junho de 2014
quarta-feira, 18 de junho de 2014
Como avaliar os alunos em Educação Física?
Bruna Nicolielo. Com reportagem de Rita Trevisan
Os instrumentos de avaliação devem ser diversificados para que não haja a supervalorização do desempenho dos alunos nas atividades que exigem habilidades motoras. Afinal, a concepção mais atual de avaliação em Educação abarca o processo e não apenas os resultados finais. O exame deverá informar ao professor e aos alunos sobre o andamento da aprendizagem, a necessidade de modificar o que vem sendo feito e os pontos mais e menos fortes do trabalho pedagógico. A atribuição da nota poderá ser feita com base nos resultados obtidos em diversos tipos de exercício, em trabalhos e provas escritos e na elaboração de um projeto - uma coreografia de dança, um roteiro de atividades, um diário de campo - que abordem temas como brinquedos e brincadeiras que caracterizam determinados grupos sociais ou espaços geográficos, modalidades esportivas internacionais ou radicais, ginásticas competitivas ou profiláticas, lutas ou artes marciais, danças nativas ou contemporâneas, por exemplo. O ideal é que as atividades viabilizem uma compreensão maior daquela prática corporal na sociedade. Vale lembrar que só pode ser avaliado o que de fato foi dado nas aulas.
Consultoria Marcos Garcia Meira, professor de metodologia de ensino de Educação Física da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Pergunta enviada por Eduardo Armando Bausas Junior, São Paulo, SP
Pergunta enviada por Eduardo Armando Bausas Junior, São Paulo, SP
http://revistaescola.abril.com.br/formacao/como-avaliar-alunos-educacao-fisica-558688.shtml
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terça-feira, 17 de junho de 2014
Mário Ferreira dos Santos: a diferença entre ética e moral
Ao ser humano cabe a frustrabilidade de certos atos, que pode ele fazer ou não. Os animais dizem sempre sim à natureza. O homem, porém, pode dizer não. Nesse “não” está o índice de sua grandeza, a abertura de sua elevação, mas também o primeiro passo para os seus erros. O homem pode frustrar o dever-ser. O dever-ser dos animais é fatal porque eles obedecem aos instintos. Mas o do homem é frustrável, porque ele é inteligente e dispõe da vontade.
E por que se dão tais coisas? As razões são simples: o homem não é um ente imutável e eterno. É um ente mutável e temporal. Sua vida é um longo itinerário, um longo drama, porque ele atua e sofre sucessivamente uma longa realização dramática, porque ele age e faz. E como age e faz, ele prefere e pretere. Por isso, ao longo do drama humano, ao longo da sua práxis, da sua prática, o homem avalia valores.
Em toda vida prática do homem há a presença dos valores que são julgados, preferidos e preteridos. Onde há ação humana, há a presença do valor, e o que o homem faz ou sofre é conveniente mais ou menos ou não à sua natureza estática, dinâmica e cinematicamente considerada. Em tudo, portanto, há valores, maiores ou menores. E, ademais, o homem dá suprimento de valor ao que lhe convém, como também lhes retira. Supervaloriza ou desvaloriza. Todas estas características do homem são precisamente o que lhe dá o caráter da sua peculiaridade.
Mas esses valores são valores do homem, por isso são valores humanos (em grego, valor é axiós e o homem é antropos, daí chamarem-se esses valores de axioantropológicos). Toda vida ativa e factiva do homem (a vida técnica) está cheia da presença dos valores e dos desvalores do homem. Por essa razão, cada ato humano é mais ou menos digno, segundo tenha mais ou menos valor. A dignidade dos atos continuados marca o seu valor.
Os atos continuados constituem o costume (o que os gregos chamavam ethos e os latinos mos, moris, de onde vêm Ética e Moral). Os atos éticos ou morais são atos que têm valor, são atos, portanto, que têm dignidade. É eticamente valioso o dever-ser que corresponde à justiça como antes expusemos: é eticamente vituperável, indigno, o ato que ofende a justiça, ou seja, o direito, o que é devido à conveniência da natureza humana, na multiplicidade em que ela pode ser considerada.
Assim, toda vida prática do homem gira em torno da Ética. Realmente a vida prática do homem é a vida ativa e a vida factiva, e naturalmente essa vida gira em torno do que é conveniente ou desconveniente. Na ação e na realização da vontade, há apreciações de valores do que convém e do que não convém, consequentemente, do dever-ser frustrado e, por isso, giram todas em torno da Ética, que tem de estar presente em todos os atos da vida prática. E prossegue o texto: como disciplina filosófica, esta tem por objeto formal a atividade humana em relação ao que é conveniente ou não à sua natureza. Os atos podem ser assim éticos ou antiéticos, ou então anéticos. Éticos, os que devem ser realizados; antiéticos, os que não deveriam ser realizados; e anéticos, os que nos parecem indiferentes.
Portanto, toda vida ativa e factiva (técnica, artística) do homem se dá dentro da esfera ética. Razão tinham, pois, os filósofos antigos que punham o Direito, a Economia, a Sociologia, a Técnica e a Arte como inclusas e subordinadas à Ética, porque os atos humanos estão sempre marcados de eticidade. Esta a razão por que se deve distinguir Ética de Moral. Esta distinção não é arbitrária. Ora, os antigos, ao distinguirem essas disciplinas e as colocarem subordinadas à Ética, não subordinavam totalmente e absolutamente, porque há uma parte de cada uma dessas disciplinas, que é tipicamente própria das disciplinas, que é a sua parte específica. A Ética, então, funcionava em relação a essas disciplinas na mesma relação de gênero para espécie.
A Ética estuda o dever-ser humano, a Moral descreve e prescreve como se deve agir para realizar este dever-ser. A Moral é variante, mas a Ética é invariante. Podem os homens, mas assistidos pela intelectualidade, errarem quanto à eticidade de um ato e estabelecer um costume (moral) que nem sempre é conveniente ou é exagerado. Podem errar, porque o homem pode errar, mas se der ele o melhor de sua atenção à Ética, ele não errará e poderia evitar os erros na Moral. É essa a razão por que muitas vezes encontramos diferenças entre a moral e a ética. E muitas vezes vimos que certos costumes de certos povos ofendem a princípios de justiça, porque nem sempre o homem escolhe como modo de proceder (seria o modo moral) aquele que melhor corresponde à realização do dever-ser ético, e às vezes é movido por certas circunstâncias históricas, ambientais, que determinam agir desse modo e não doutro, porque, apesar de não ser benéfico como seria de desejar, é menos maléfico do que de outros modos de proceder. Assim pode-se compreender que certas tribos, em determinadas circunstâncias, se vissem forçadas a liquidar os elementos inválidos que a constituíam, para que sobrassem alimentos suficientes para manutenção dos que tinham maior capacidade de sobrevivência. Este ato eticamente considerado é falho, mas moralmente considerado ele tem uma desculpa, dada as circunstâncias ambientais e históricas daquela tribo. Por isso, muitas vezes a moral pode chocar-se com a ética, e nem sempre a moral conheceria a melhor resposta ou a melhor solução ao dever ético. Nós hoje estamos numa crise, não de ética, estamos numa crise de moral, e esta crise na moral está por uma má visualização da diferença entre moral e ética. Como a moral decai, como a moral não consegue manter as suas normas, porque ela já não corresponde à realidade da vida atual, então quem sofre as consequências é a ética, parecendo aos olhos daqueles que não estão preparados, que fazem confusão entre ética e moral, que a ética também se derrui, como se está derruindo a moral, e não é verdade: a ética permanece em pé, a ética é indestrutível, a ética é eterna; a moral é humana, factível, caduca, e por isso ela pode errar. Se a mente humana for bem assistida, ela poderá evitar os erros da moral pela criação de costumes que correspondem melhor ao dever-ser ético.
Aqueles que dizem que a Ética é vária porque a Moral é vária, confundiram a Moral com a Ética. Essas confusões provocaram inúmeros mal-entendidos e promoveram muita agitação entre os que desejavam atacar a Ética. Há costumes convenientes e inconvenientes apenas a uma parte da humanidade, mas o que é ético é universal e deve ser aplicado a todos. A Ética deve ser consagrada ao universal. Temos assim a explanação dos diversos aspectos importantes que já salientamos, mas o texto continua e nos vai esclarecendo a pouco e pouco este aspecto genuinamente cristão.
Assim, da moral, que surge na vida prática do homem, a mente especulando sobre ela chega à Ética, que é mais especulativa do que prática, porque nela há princípios eternos, enquanto naquela há regras de valores históricos, portanto, mutáveis. Dar a cada um o que é de seu direito é uma norma ética, mas o modo como se proceda, segundo a conveniência humana obediente a esta norma, será uma regra moral. Porque erram os homens na Moral, não se deve negar à Ética o seu valor, porque esta seria uma violentação da inteligência.
Do livro “Cristianismo: A Religião do Homem”, de Mário Ferreira dos Santos
http://www.epochtimes.com.br/mario-ferreira-dos-santos-diferenca-entre-etica-e-moral/#.U6A6jRkk3s0
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segunda-feira, 16 de junho de 2014
A gramática: como ensiná-la António J. Lavouras Lopes*
A gramática: como ensiná-la
António J. Lavouras Lopes*
A gramática escolar deve ser descritiva, explicativa e normativa. Assim deve ser apresentada em manual e assim deve ser ensinada. Para cada uma destas vertentes, não deverá ser esquecido o que de melhor foi produzido pelos estudos linguísticos tradicionais e pela linguística moderna.
A tradição gramatical portuguesa inicia-se com uma obra de acentuado pendor descritivista. Tendo em vista a normativização, Fernão de Oliveira (1536) sentiu a necessidade de recorrer a uma descrição bastante fina dos sons da língua. A necessária fixação da ortografia na altura, para ser lógica e aceitável, carecia da evidência de uma ordem no plano fónico, extraída do uso, e foi o que o primeiro gramático português fez.
A presença tutelar da gramática latina, que, curiosamente, ganhou importância no período (Renascimento) em que a língua vernácula se afirma como expressão da nacionalidade, inviabilizou as tentativas de valorização e defesa do ensino da gramática portuguesa. A primeira voz, neste sentido, que viria a ser ouvida pelo poder, foi a de Luís António Verney (1746), enformadora dos princípios em que assentou o instrumento gramatical da primeira política oficial da língua. Foi esse instrumento a Arte da Grammatica da Lingua Portugueza de Reis Lobato (1770), adoptada pelo Marquês de Pombal para ser ensinada antes da latina. A avaliar pelos termos da introdução, o objecto de ensino desta gramática parece aproximar-se mais da norma social delimitada por Fernão de Oliveira (a variedade das pessoas mais sabedoras e mais experientes) do que da norma mais restrita definida por João de Barros (o modo de falar e escrever dos barões doutos). Diz o gramático pombalino:
«Por duas razões se faz indispensavelmente precisa a noticia da Grammatica da Lingua materna: primeira, para se fallar sem erros; segunda, para se saberem os fundamentos da Lingua, que se falla usualmente.» (Lobato, 1823: IX).
Vê-se que, a par do carácter normativo, a gramática de Reis Lobato tem um pendor explicativo, a que não será alheio o conhecimento da gramática francesa de Port-Royal, denunciado, aliás, num outro passo da introdução, quando pressupõe a existência de uma gramática geral:
«[...] na Grammatica materna, de que já o uso nos tem ensinado a pratica das suas regras, sem difficuldade se aprendem muitos principios, que são communs a todas as linguas [...]» (id., ibid., p. X).
Não se sabe qual o âmbito da norma na prática do ensino desta gramática (até ao início do século XIX, segundo Jerónimo Soares Barbosa (1807: XI), não consta que tivesse mesmo sido ensinada), mas certamente que terá sido mais restrito, dentro da tradição inaugurada por João de Barros e promovida antes e depois de Reis Lobato. Na Nova Grammatica da Lingua Portugueza, Francisco Solano Constancio (1855: 1) confirma-o:
«[...] dá-se o nome de Grammatica á collecção de preceitos para fallar, escrever e ler huma lingua correctamente, isto he, conformando-se ao que o uso dos doutos tem estabelecido.»
A prescrição do bom uso, recolhido sobretudo dos textos literários, permitiu que se fosse cavando o fosso entre a língua erudita ensinada e a língua popular, que não ia à escola. Foi assim que se forjou a norma que hoje se ensina.
O carácter explicativo da gramática, assinalado já em Reis Lobato, tem a sua máxima expressão na Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza de Jeronimo Soares Barboza (1822), baseada na gramática de Port-Royal (1660). Igualmente com poder descritivo, procura dar conta dos princípios particulares de funcionamento da língua – Grammatica Particular –, eles próprios em consonância com as leis gerais aplicáveis a todas as línguas – Grammatica Geral (Barboza, 1830: IX). Este poder explicativo da gramática foi desqualificado pela linguística histórica do final do século XIX, de inspiração positivista, que via aí especulação sem valor científico. Houve outras gramáticas filosóficas, mas só a de Jeronimo Soares Barboza teve ampla difusão (sete edições, de 1822 a 1881). Descrevia, prescrevia e explicava o «uso da gente mais civilizada e instruida» de Lisboa, não o «uso do Povo» (id., ibid., p. 50). O seu poder explicativo é de grande valor para o ensino. Note-se que foi na tradição da gramática filosófica que Chomsky, na segunda metade do século XX, encontrou alguns fundamentos da sua teoria do conhecimento da língua.
A um nível diferente, a linguística histórica dos finais do século XIX deu um inestimável contributo para a compreensão do funcionamento da língua, de aplicação no ensino com grande utilidade. O conhecimento da evolução fonética e do próprio léxico tem tradução directa no desenvolvimento das competências da recepção e produção linguísticas.
A subalternização da perspectiva diacrónica pela linguística estrutural, dominante depois das primeiras décadas do século XX, afastou das gramáticas pedagógicas e do ensino da língua aquele contributo da linguística histórica. A Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mateus, Ana Maria Brito, Inês Duarte e Isabel Faria (1983), e a Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1984), duas obras de referência na gramaticografia portuguesa actual, inspiradoras de gramáticas pedagógicas, nunca recorrem à história da língua para a descrição do português actual. A última, ao contrário da primeira, também não aproveita o poder explicativo da linguística generativa. Descreve a norma, em moldes tradicionais, fundamentada em exemplos de escritores, sem explicações nem história.
Depois da abordagem do conhecimento da língua pela gramática filosófica e posteriormente da sua explicação por Chomsky, abriu-se um vastíssimo campo para a psicolinguística desvendar os mecanismos e processos da aquisição, aprendizagem e uso da língua, de grande importância para o ensino.
Pretendeu-se, através deste breve percurso pelo passado, evidenciar a utilidade dos estudos gramaticais e linguísticos para o ensino da língua. Há que ter, no entanto, algumas cautelas no aproveitamento pedagógico da produção científica. Em primeiro lugar, nem todos os produtos científicos se revestem, para este efeito, do mesmo interesse; em segundo, é necessário esperar que a areia da águas revolvidas da investigação assente, para se ver o que aproveita ao ensino. A última coisa que a escola deve ser é banco de ensaio de ideias novas. Num passado próximo, o ensino a quente das aquisições da gramática generativa foi duplamente nocivo: não contribuiu para um melhor domínio da língua e, consequentemente, permitiu a instalação da ideia de que esses conhecimentos não têm interesse didáctico. Mais recentemente, o ensino viu-se invadido por uma onda de pragmática linguística, cuja contabilidade de benefícios e prejuízos está por fazer.
O ensino das línguas, guardadas as devidas distâncias, deve acompanhar os estudos linguísticos. A linguística visa a compreensão do fenómeno da linguagem e do funcionamento das línguas, ou seja, dos princípios e das regularidades das suas gramáticas. Acontece que a descoberta desses princípios e dessas regularidades não é feita na língua abstracta, mas na língua concreta, usada pelos falantes. Os linguistas procuram descobrir a gramática interiorizada. Assistimos, então, a um movimento circular, aparentemente paradoxal: os estudos linguísticos descobrem a gramática que os falantes usam e que eventualmente nunca aprenderam; os professores ensinam a gramática, desse modo descoberta, aos falantes, que já a possuem. Por dedução lógica, poder-se-ia concluir que o ensino da gramática é um exercício obsoleto: o ensino de um sistema necessariamente incompleto e imperfeito a quem o contém integralmente.
A língua materna é, de facto, uma dádiva da natureza. A programação biológica do ser humano permite a sua apropriação natural, por simples exposição. A aquisição da língua implica a interiorização da sua gramática e a capacidade de recurso aos princípios e regularidades desta na recepção e produção linguísticas. Mas a faculdade da linguagem, como muitas outras faculdades, cumpre os mínimos para a sobrevivência. E aqui termina a generosidade da natureza. Esta não dotou os falantes com a capacidade de entenderem o funcionamento dessa gramática, tal como não os dotou com a capacidade mais geral de entenderem o funcionamento da mente. Essa é uma tarefa que a natureza deixa aos próprios, em que andam empenhados desde sempre e que nunca darão por concluída.
Ensinar gramática, sendo então ensinar o que já se sabe, é tornar explícito o conhecimento implícito da língua. Ainda aqui parece tratar-se de um exercício improdutivo, já que, aparentemente, os ganhos em termos de competência do uso serão inexpressivos: usa-se a língua em função do que dela se conhece, pouco importando que esse conhecimento seja implícito ou explícito. Parece assim lógico que o ensino da gramática é desnecessário. Interessará então potenciar as condições naturais da aquisição da língua, ou seja, aumentar os estímulos externos. Esta lógica, suportada pela psicologia comportamentalista e mais recentemente pela pragmática linguística, ambas alicerçadas no positivismo, tornou-se particularmente poderosa e dominante no ensino da língua. Para além do mais, facilitou a vida aos professores de língua materna, porque eles próprios, deste modo, não necessitam de saber gramática. Como sinaleiros da norma, limitam-se a apontar os sentidos desta e a reprimir os seus desvios, sem descrições nem explicações.
Este ensino empírico, dominante, é particularmente gravoso. Desde logo, porque não disponibiliza o mais poderoso processo de desenvolvimento cognitivo, que é a reflexão sobre o funcionamento da língua. Depois, porque não proporciona um bom domínio da língua e, muito particularmente, não potencia o seu uso criativo. Por fim, porque não facilita o acesso a todo o tipo de conhecimento, de que a língua é o meio de apropriação. Com este tipo de ensino desenvolve-se, pressupostamente, a competência da comunicação. Os actuais programas do ensino secundário têm esta conformação. Houve a vã esperança de formar comunicadores bem sucedidos usando um instrumento que conhecem mal.
Neste domínio convém não fazer misturas: à natureza o que é da natureza, à escola o que é da escola. A programação biológica tem os seus tempos de aplicação e não vai além deles. Castro Caldas (2004: 41) chama «períodos sensíveis» a «estes intervalos de tempo em que a janela da oportunidade se encontra aberta». Sabe-se que a fase de aquisição da língua, esse «período sensível», termina precisamente no início da idade escolar, por volta dos sete anos. O seu prolongamento artificial é pouco produtivo, porque a janela da oportunidade» já se encontra fechada. A escola surge naturalmente nessa altura para promover a passagem à fase seguinte, a da aprendizagem, sobretudo da língua escrita. A natureza viabiliza apenas o conhecimento da língua oral. A escrita é uma aquisição civilizacional e por isso não está prevista na programação biológica.
A «aquisição da dimensão escrita da linguagem constitui uma verdadeira «revolução no cérebro» (id. Ibid, p. 44). É de facto uma revolução, porque exige a capacidade de análise da própria língua oral, esta adquirida espontânea e naturalmente. Leva à abertura de uma nova «janela da oportunidade», a da aquisição de um segundo nível simbólico da linguagem – a representação gráfica das sequências sonoras. O ensino empírico não proporciona essa «revolução no cérebro», porque, não promovendo a reflexão sobre a língua, não faculta o conhecimento consciente das suas unidades e das suas estruturas. Boa parte dos alunos que terminam o percurso escolar não chega a experimentar essa revolução.
A escrita é distinta da oralidade. «Até mesmo o seu mínimo desenvolvimento exige um alto nível de abstracção.» (Vigotski, 1996: 85). É pela via da abstracção que surge a consciência linguística, cujo desenvolvimento leva ao conhecimento dos princípios reguladores do funcionamento da língua. O ensino sistemático da gramática, promovendo a reflexão sobre a língua, favorece a consciência linguística. A sua finalidade é o desenvolvimento da competência metalinguística, através da qual é possível explicitar o conhecimento implícito, aumentar esse conhecimento e, por conseguinte, através de um melhor domínio, fazer um melhor uso da língua.
Esta apropriação consciente do capital simbólico que é a língua, afinal um alto investimento individual, não é permitida através do ensino prático, repetitivo, no prolongamento artificial da fase da aquisição. Esse é um ensino pragmático, que prescinde da consciência linguística e da competência metalinguística, centrando-se nos factores da comunicação não linguísticos. Encara a língua apenas segundo o seu valor instrumental. Luís Filipe Barbeiro, em Os Alunos e a Expressão Escrita (1999: 31), evidencia a saliência dos factores extralinguísticos da pragmática:
«O conhecimento consciente relativo à pragmática, ou consciência (meta)pragmática, não incide estritamente sobre elementos de natureza linguística. A perspectiva pragmática estabelece a relação entre o sistema linguístico e a situação em que esse sistema é utilizado. Assim, constituem o foco da consciência metapragmática elementos exteriores à língua, mas que são alvo dessa relação.»
Vimos que o ensino da gramática tem um triplo efeito: permite um melhor conhecimento e uso da língua; contribui, desde os primeiros anos de escolaridade, para o desenvolvimento cognitivo; e permite, através de um melhor domínio da língua, a apropriação mais fácil de todo o saber, já que é, como já bem notava Luís António Verney em meados do século XVIII, «porta dos outros estudos» (1949, vol. I: 26). Pode-se ainda acrescentar que o conhecimento explícito da gramática da língua materna facilita a aprendizagem de línguas estrangeiras. E o ensino da gramática pode ainda levar ao gosto pela língua, à exploração e fruição das suas potencialidades e manifestações estéticas, para além de ser meio de formação cultural, na perspectiva histórica. É que da língua, parafraseando Vergílio Ferreira, vê-se o passado.
Depois da defesa teórica do ensino da gramática, convém fazer a demonstração prática, mesmo que parcelar. Vamos considerar exactamente o ensino da escrita.
O processo de desenvolvimento da competência linguística, num sentido lato, a nível individual, com as fases da aquisição oral e da aprendizagem escrita, é uma recapitulação aproximada do desenvolvimento da própria língua, em termos nacionais. Até 1536, o português formou-se e desenvolveu-se essencialmente por via oral, de forma natural, espontânea. É a fase da aquisição. Com a publicação da Grammatica da lingoagem portuguesa de Fernão de Oliveira, em 1536, inicia-se o período da aprendizagem. Para além deste instrumento de ensino, o século XVI vê ainda surgir as obras de João de Barros (1540), Pêro de Magalhães de Gândavo (1574) e Duarte Nunes de Lião (1576). No século XVI, um povo que fala a língua há alguns séculos começa a ir à escola para tornar explícito o conhecimento implícito. É claro que o ensino estava a dar os primeiros passos, a massificação ainda vinha longe e, portanto, aprender a língua escrita era privilégio de uma elite muito reduzida.
A orientação pedagógica da primeira gramática portuguesa é literalmente adequada ao ensino das primeiras letras. Começa por descrever a fonética e fonologia da língua, levando à consciência dos sons e do seu valor distintivo, para a apropriação do sistema da escrita, constituído por letras, símbolos dos sons. A correspondência nem sempre biunívoca entre som e letra obriga o autor a demoradas explicações. A descrição e a explicação feitas têm em vista a fixação de uma norma.
É, ou deve ser, este, afinal, o procedimento da escola no início da aprendizagem da língua: tornar explícito o conhecimento fonológico implícito, adequá-lo à norma, e explicar a sua representação ortográfica, em que se inclui a acentuação. Neste processo de aprendizagem, a reflexão e a procura do automatismo devem ser indissociáveis.
Posteriormente, uma visão histórica da língua, nomeadamente sobre a evolução fonética na passagem do latim ao português e a formação do léxico por essa via, constitui oportunidade para a compreensão da inicialmente estranha representação do mesmo som por diferentes grafemas, bem como da existência de um grafema a representar diferentes sons.
Num outro momento, através do conhecimento da realidade dialectal do português europeu, a explicitação do sistema ortográfico pode ir mais longe, confrontando as diferentes variações fonéticas com a ortografia fixada num dado momento histórico de acordo com a pronúncia padrão.
A seguir, a propósito do conhecimento das diferentes variedades do português no mundo, muito particularmente da portuguesa e da brasileira, é oportuna a explicitação do sentido da evolução do sistema fonético europeu, sobretudo o vocálico, sem correspondente adequação da ortografia.
Noutro momento, não necessariamente nesta ordem, a explicitação da estrutura das palavras complexas permite o conhecimento consciente dos morfemas e da sua grafia própria dentro do vocábulo.
Finalmente, o conhecimento explícito das estruturas do léxico permite a apreensão consciente de regularidades ortográficas.
Pode-se argumentar que o sistema ortográfico da língua é interiorizado pela prática da leitura e da escrita. Diríamos que também é, sendo mesmo um meio necessário, mas não suficiente. Além disso, através desta reflexão, no sentido da explicitação e da compreensão, obtém-se o domínio consciente da ortografia, aumenta-se o conhecimento da língua e aprende-se a sua história. Proporciona-se com isso aos alunos a autoconfiança no uso da língua, a apreciação do bem que esta representa e promove-se o desenvolvimento cognitivo.
A representação gráfica dos sons constituiu uma questão que ocupou gramáticos e ortografistas até 1911, altura em que foi oficialmente fixada a ortografia. A partir daí e da própria reforma de 1945, o problema mantém-se, mas as gramáticas normalmente passam-lhe ao lado. Quando o referem, não indicam processos didácticos adequados. As duas gramáticas de referência já apontadas, enformadas pelo princípio estruturalista de que a língua é oral, ou seja, os fonemas constituem a matéria da língua, não sendo os grafemas unidades linguísticas, não estão, naturalmente, vocacionadas para tratar do problema da representação gráfica. As gramáticas pedagógicas disponíveis seguem em boa medida os modelos.
Alguma atenção, embora pouco explicativa, tem sido dada pelos prontuários ortográficos a esta matéria. Entre eles, cabe destacar, pela relevância inusitada, mas oportuna, que lhe dá, o Prontuário Universal – Erros Corrigidos de Português de D’Silvas Filho, ilustre sócio da Sociedade da Língua Portuguesa [e consultor do Ciberdúvidas], com uma primeira versão em 1994 e uma segunda, mais completa, em 1999. O elevadíssimo número de erros sintácticos, morfossintácticos, e sobretudo ortográficos, recolhido do uso pelo autor é revelador da dimensão e da gravidade do problema, bem como da urgência da sua resolução por via do ensino. Alguns desses erros vêm acompanhados de oportunas reflexões. Cabe também assinalar outra obra recente, Manual Prático de Ortografia, de José de Castro Pinto (1998), em que são dados alguns passos na tipificação dos erros ortográficos, domínio inexplorado cientificamente e desvalorizado pedagogicamente. A didáctica da língua está condicionada por dois preconceitos: a ortografia não é parte da língua, e o erro é traumatizante, se assinalado.
A análise de um ‘corpus’ de erros recolhidos de textos escritos de alunos do ensino secundário (10.º, 11.º e 12.º anos) permite desenhar algumas tipologias, indagar da sua razão e estabelecer estratégias de ensino gramatical como as que atrás foram enunciadas.
Os alunos chegam ao 10.º ano sem o conhecimento explícito das unidades linguísticas. Não sabem que fonema e grafema não são a mesma coisa. Acreditam, nesta fase, que as vogais do português são cinco, porque é esse o número de letras que as representa. Vêem, pois, em sé, sê e se uma única vogal. Não têm noção do seu valor distintivo. Não revelam hábitos de reflexão sobre a escrita. Perante a dúvida, têm como único recurso a imagem gráfica da palavra. A frequência de erros ortográficos neste nível de ensino deve-se a essa incapacidade de uso consciente de estratégias de autocorrecção. Vejamos algumas situações.
1. Elevação das vogais átonas
A elevação ou fechamento das vogais átonas é uma tendência marcante do português europeu, notória no contraste com a norma brasileira. Este fenómeno é gerador de erros ortográficos quando dele não se tem consciência.
1.1. Fechamento em u do o semiaberto e do o semifechado em posição átona
Esta diferente realização fonética, que não foi acompanhada pela ortografia, leva o aluno não alertado a grafar um u onde realmente o pronuncia. Exemplos: afugado, descubrimentos, esculher, fluriram, metáfura, velucidade. Uma forma da mesma palavra ou outra palavra da mesma família em que a vogal seja tónica revela-nos que se trata de facto de um o. Assim, temos afoga, descobre, escolha, floor, metafórico, veloz. Este exercício permite a autocorrecção, desde que, no mínimo, a competência metalinguística do aluno inclua a noção de vogal tónica.
1.1.1. Hipercorrecção
Os alunos têm um conhecimento implícito desta característica do vocalismo átono do português, claramente revelado através do fenómeno da hipercorrecção, que é, por si, gerador de novos erros. Exemplos: corandeiro, estimolava, locrou, modou, oportonidade, orgolhoso. A mesma procura da vogal em posição tónica pode levar à autocorrecção: cura, estimula, lucro, muda, oportuno, orgulho. Claro que esta operação exige um conhecimento explícito das relações entre palavras e das suas formas.
1.2. Fechamento em i do e semiaberto e do e semifechado em posição átona
Exemplos: basiavam, chatiado, contiúdo, reciava, touriar. As dúvidas são esclarecidas através de formas da mesma palavra ou de palavras da mesma família, como baseia, chateia, conter, receio e toureia.
1.2.1. Hipercorrecção
Também neste caso o conhecimento implícito gera erros por hipercorrecção, como em adultéreo. Confrontar com adulterino. 1.3. Redução de i a e mudo Este erro é devido sobretudo à dissimilação. Exemplos: defenido, estelista, exestia, maravelhosa, openião, permetido. Utilizando a mesma estratégia de autocorrecção, confrontem-se estas palavras com define, esiilo, existe, maravilha, opina, permite.
1.3.1. Hipercorrecção
Devem-se à hipercorrecção os erros em anticipar, despidiu, destimida, dispertou. Autocorrige-se com o recurso a despede, desteme e ao reconhecimento dos prefixos ante- em antecipar e des- em despertar.
1.4. Redução a e mudo do e semiaberto e do e semifechado em posição átona
Este tipo de erro caracteriza-se pela não representação do som ou pela sua representação deslocada na sílaba, porque, de facto, é imperceptível. Exemplos: natrior, cria (queria), difrente, excsivo (excessivo), frevor, perposição. Nestes casos, além do recurso a palavras da mesma família emquer, difere, excesso e ferve, é útil o reconhecimento de prefixos em anterior e preposição.
1.4.1. Hipercorrecção
Por hipercorrecção, estão erradamente grafadas as palavras ademirar, elito, quelítico (clítico), queriados (criados), referão, sangeurando.
1.5. Redução de u a e mudo
O fechamento das vogais átonas tende para o seu desaparecimento na cadeia falada. Daí o registo de erros em que u original ou redução de o semifechado é grafado e. Exemplos: esdrúxela, permenorizadamente, prenominalização, prenuncia-se.
1.5.1. Hipercorrecção
Erros de sentido oposto ocorrem também, por hipercorrecção, como em adúltura.
2. Monotongação
O fenómeno da monotongação do ditongo ou em o semifechado ou mesmo semiaberto, quando não faz parte do conhecimento explícito dos alunos, gera erros como mando-os (mandou-os), o (ou), ovem (ouvem), robei (roubei), toca (touca), torada (tourada). Só a falta de consciência metalínguística dos alunos permite que a homonímia gerada não lhes chame a atenção.
2.1. Hipercorrecção
Neste domínio, a hipercorrecção também produz os seus erros: agradeçou-lhe (agradeço-lhe), espousa (esposa), poude (pôde), sedutoura (sedutora).
3. Despalatalização
A passagem do e semifechado a a semifechado na vizinhança de som palatal é um fenómeno relativamente recente e circunscrito ao falar de Lisboa. É gerador de erros ortográficos por parte dos falantes da capital. Exemplos: ansiadade, contrariadade, desfacho, mediaval, percevajo , recraio, sociadade. A consciência metalinguística pode levar à autocorrecção de alguns destes erros. Confrontar, por exemplo, com desfechar e recrear. 3.1. Hipercorreção
A falta de compreensão deste tipo de palatalização leva ao surgimento de erros por hipercorrecção, como em arqueísmo (arcaísmo). Misto de hipercorrecção e de ditongação, igualmente por falta de conhecimento explícito, são os casos de bocheicho, dêseijo, feicho, graceijo. Veja-se o confronto com arcaiço, bochechar, dêsejar, fechar, gracejar.
4. Representação gráfica das consoantes sibilantes surdas
A fusão, nos dialectos centro-meridionais da sibilante ápico-alveolar e da predorsodental nesta última gerou dificuldades de representação gráfica, sendo frequentes erros dos tipos seguintes:
a) comçoante, impreçionante, intençidade, preçionado, reçente-se.
b) compreenção, execussão, expanção, reinvensão.
c) fassa , próssima, sintase, troucesse, trousse.
d) correce, excelentícimo, foce, voltace.
Trata-se de erros de autocorrecção possível, através do conhecimento explícito. Em a), recorre-se ao confronto com palavras da mesma família, onde o grafema se mantém: som, impressão, intenso, préssão, sentir. Em b), através de palavras da mesma família reconhecemos a relação, por razões etimológicas, das letras s e d em compreensão e compreender, expansão e expandir, e entre as letras ç e t em execução e executar, reinvenção e reinventar. Em c), também existe a relação entre as letras ç e z em faça e fazer, as letras x e z em trouxesse, trouxe e trazer; relação igualmente estabelecida entre x e ct em sintaxe e sintactico. Finalmente, em d), trata-se da desinência própria do pretérito imperfeito do conjuntivo -sse, e do morfema do superlativo absoluto sintético -íssimo: corresse, excelentíssimo, fosse, voltasse.
5. Representação gráfica das consoantes sibilantes sonoras
Tal como sucedeu com as sibilantes surdas, verificou-se, na mesma zona dialectal, uma fusão das duas sonoras na predorsodental. Daí, igualmente, o surgimento frequente de erros como os seguintes:
a) certesa, escravisar, vitoriozo
b) desoito, diser, rasoável
c) nazal, rezumido, trânzito
d) atraz, atravez, atrazar-se
e) esistia, ezercer, ezaltações
Também estes erros, através do conhecimento explícito da língua, são susceptíveis de autocorrecção. Em a) a capacidade de análise estrutural das três palavras permite reconhecer outros tantos sufixos (-eza, -izar, -oso), cujas sibilantes, hoje indistintas no português padrão, têm representação gráfica fixa, por razões etimológicas. Em b) a grafia também é determinada etimologicamente. Sincronicamente, isso é visível através de constantes gráficas (z, c, ç e t) em palavras da mesma família: dezoito, dez, décimã, decúria; dizer, dicção, dito; razão, razoável, racional. Em c) não se aplica o exercício de b), pois o grafema s estava já presente no étimo latino. Sincronicamente, é possível reconhecer o morfema trans- em trânsito. Em d) temos etimologicamente sempre o grafema s. Sincronicamente, é possível ver em atrás e em atrasar o morfema trans-, com a mesma origem de tras- (traspassar) e tres- (tresnoitar); o mesmo para através (través, atravessar, travessa). As palavras de e) têm no étimo o grafema x, sem variação sincrónica, carecendo de aprendizagem directa.
6. Representação gráfica da consoante palatal surda
A palatal surda pode ser representada graficamente por ch e x em início de sílaba e por s e x em fim de sílaba. Exemplos:
a) axavam, baicha, deichar, esdrúchula, flexa.
b) espandir, esposta, exdrúxula, expecialmente.
Em a), a autocorrecção pressupõe o conhecimento da existência da africada palatal [tš] em português, fundida com a palatal surda simples (grafada com x) no português padrão a partir do século XVIII, sempre representada pelo dígrafo ch, resultante da palatalização dos grupos consonânticos pl, cl e fl. Os erros apontados não são passíveis de elucidação sincrónica, mas são-no, por exemplo, chumb e plúmbeo, onde temos o termo popular e o termo erudito da mesma família etimológica. Em b), é possível reconhecer, semanticamente, o prefixo ex- em expandir, exposta, o que não sucede em esdrúxula ou em especialmente.
Esta análise poderia ir mais além, sem abandonar o domínio da falta de biunivocidade na representação gráfica dos sons, mobilizando sempre conhecimentos gramaticais explícitos para traçar estratégias de autocorrecção. De qualquer modo, os casos tratados parecem já bem elucidativos. Os erros evidenciados, registados em alunos com, pelo menos, nove anos de escolaridade, são a parte visível do seu desconhecimento da gramática da língua. Nos momentos devidos, faltou a descrição das unidades da língua, faltou a explicação da sua representação escrita, enfim, ficou por desenvolver a competência metalinguística capaz de fundamentar escolhas e alicerçar automatismos.
A estimulação linguística, reforçada na escola, revela-se notoriamente insuficiente neste domínio da escrita. A mesma prova poderia ser feita noutros, nomeadamente da sintaxe e do léxico.
Compensando o carácter pragmático da didáctica da língua materna, ouvem-se algumas vozes a aconselhar a reflexão metalinguística a propósito de situações surgidas na rotina da exercitação das competências da produção e da recepção. Trata-se de um passo em frente, mas que poderá ser em falso, já que os alunos não reflectirão bem sobre o que conhecem mal. Há que fazer acompanhar a reflexão da descrição e da explicação. Em suma, há que, sem preconceitos, ensinar sistematicamente a gramática. É que o conhecimento explícito da estrutura e do funcionamento língua, bem como o seu uso correcto, exige uma sólida competência metalinguística, que a comunicação, apenas como prática, não faculta e a gramática, só como moleta, não suporta.
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A tradição gramatical portuguesa inicia-se com uma obra de acentuado pendor descritivista. Tendo em vista a normativização, Fernão de Oliveira (1536) sentiu a necessidade de recorrer a uma descrição bastante fina dos sons da língua. A necessária fixação da ortografia na altura, para ser lógica e aceitável, carecia da evidência de uma ordem no plano fónico, extraída do uso, e foi o que o primeiro gramático português fez.
A presença tutelar da gramática latina, que, curiosamente, ganhou importância no período (Renascimento) em que a língua vernácula se afirma como expressão da nacionalidade, inviabilizou as tentativas de valorização e defesa do ensino da gramática portuguesa. A primeira voz, neste sentido, que viria a ser ouvida pelo poder, foi a de Luís António Verney (1746), enformadora dos princípios em que assentou o instrumento gramatical da primeira política oficial da língua. Foi esse instrumento a Arte da Grammatica da Lingua Portugueza de Reis Lobato (1770), adoptada pelo Marquês de Pombal para ser ensinada antes da latina. A avaliar pelos termos da introdução, o objecto de ensino desta gramática parece aproximar-se mais da norma social delimitada por Fernão de Oliveira (a variedade das pessoas mais sabedoras e mais experientes) do que da norma mais restrita definida por João de Barros (o modo de falar e escrever dos barões doutos). Diz o gramático pombalino:
«Por duas razões se faz indispensavelmente precisa a noticia da Grammatica da Lingua materna: primeira, para se fallar sem erros; segunda, para se saberem os fundamentos da Lingua, que se falla usualmente.» (Lobato, 1823: IX).
Vê-se que, a par do carácter normativo, a gramática de Reis Lobato tem um pendor explicativo, a que não será alheio o conhecimento da gramática francesa de Port-Royal, denunciado, aliás, num outro passo da introdução, quando pressupõe a existência de uma gramática geral:
«[...] na Grammatica materna, de que já o uso nos tem ensinado a pratica das suas regras, sem difficuldade se aprendem muitos principios, que são communs a todas as linguas [...]» (id., ibid., p. X).
Não se sabe qual o âmbito da norma na prática do ensino desta gramática (até ao início do século XIX, segundo Jerónimo Soares Barbosa (1807: XI), não consta que tivesse mesmo sido ensinada), mas certamente que terá sido mais restrito, dentro da tradição inaugurada por João de Barros e promovida antes e depois de Reis Lobato. Na Nova Grammatica da Lingua Portugueza, Francisco Solano Constancio (1855: 1) confirma-o:
«[...] dá-se o nome de Grammatica á collecção de preceitos para fallar, escrever e ler huma lingua correctamente, isto he, conformando-se ao que o uso dos doutos tem estabelecido.»
A prescrição do bom uso, recolhido sobretudo dos textos literários, permitiu que se fosse cavando o fosso entre a língua erudita ensinada e a língua popular, que não ia à escola. Foi assim que se forjou a norma que hoje se ensina.
O carácter explicativo da gramática, assinalado já em Reis Lobato, tem a sua máxima expressão na Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza de Jeronimo Soares Barboza (1822), baseada na gramática de Port-Royal (1660). Igualmente com poder descritivo, procura dar conta dos princípios particulares de funcionamento da língua – Grammatica Particular –, eles próprios em consonância com as leis gerais aplicáveis a todas as línguas – Grammatica Geral (Barboza, 1830: IX). Este poder explicativo da gramática foi desqualificado pela linguística histórica do final do século XIX, de inspiração positivista, que via aí especulação sem valor científico. Houve outras gramáticas filosóficas, mas só a de Jeronimo Soares Barboza teve ampla difusão (sete edições, de 1822 a 1881). Descrevia, prescrevia e explicava o «uso da gente mais civilizada e instruida» de Lisboa, não o «uso do Povo» (id., ibid., p. 50). O seu poder explicativo é de grande valor para o ensino. Note-se que foi na tradição da gramática filosófica que Chomsky, na segunda metade do século XX, encontrou alguns fundamentos da sua teoria do conhecimento da língua.
A um nível diferente, a linguística histórica dos finais do século XIX deu um inestimável contributo para a compreensão do funcionamento da língua, de aplicação no ensino com grande utilidade. O conhecimento da evolução fonética e do próprio léxico tem tradução directa no desenvolvimento das competências da recepção e produção linguísticas.
A subalternização da perspectiva diacrónica pela linguística estrutural, dominante depois das primeiras décadas do século XX, afastou das gramáticas pedagógicas e do ensino da língua aquele contributo da linguística histórica. A Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mateus, Ana Maria Brito, Inês Duarte e Isabel Faria (1983), e a Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1984), duas obras de referência na gramaticografia portuguesa actual, inspiradoras de gramáticas pedagógicas, nunca recorrem à história da língua para a descrição do português actual. A última, ao contrário da primeira, também não aproveita o poder explicativo da linguística generativa. Descreve a norma, em moldes tradicionais, fundamentada em exemplos de escritores, sem explicações nem história.
Depois da abordagem do conhecimento da língua pela gramática filosófica e posteriormente da sua explicação por Chomsky, abriu-se um vastíssimo campo para a psicolinguística desvendar os mecanismos e processos da aquisição, aprendizagem e uso da língua, de grande importância para o ensino.
Pretendeu-se, através deste breve percurso pelo passado, evidenciar a utilidade dos estudos gramaticais e linguísticos para o ensino da língua. Há que ter, no entanto, algumas cautelas no aproveitamento pedagógico da produção científica. Em primeiro lugar, nem todos os produtos científicos se revestem, para este efeito, do mesmo interesse; em segundo, é necessário esperar que a areia da águas revolvidas da investigação assente, para se ver o que aproveita ao ensino. A última coisa que a escola deve ser é banco de ensaio de ideias novas. Num passado próximo, o ensino a quente das aquisições da gramática generativa foi duplamente nocivo: não contribuiu para um melhor domínio da língua e, consequentemente, permitiu a instalação da ideia de que esses conhecimentos não têm interesse didáctico. Mais recentemente, o ensino viu-se invadido por uma onda de pragmática linguística, cuja contabilidade de benefícios e prejuízos está por fazer.
O ensino das línguas, guardadas as devidas distâncias, deve acompanhar os estudos linguísticos. A linguística visa a compreensão do fenómeno da linguagem e do funcionamento das línguas, ou seja, dos princípios e das regularidades das suas gramáticas. Acontece que a descoberta desses princípios e dessas regularidades não é feita na língua abstracta, mas na língua concreta, usada pelos falantes. Os linguistas procuram descobrir a gramática interiorizada. Assistimos, então, a um movimento circular, aparentemente paradoxal: os estudos linguísticos descobrem a gramática que os falantes usam e que eventualmente nunca aprenderam; os professores ensinam a gramática, desse modo descoberta, aos falantes, que já a possuem. Por dedução lógica, poder-se-ia concluir que o ensino da gramática é um exercício obsoleto: o ensino de um sistema necessariamente incompleto e imperfeito a quem o contém integralmente.
A língua materna é, de facto, uma dádiva da natureza. A programação biológica do ser humano permite a sua apropriação natural, por simples exposição. A aquisição da língua implica a interiorização da sua gramática e a capacidade de recurso aos princípios e regularidades desta na recepção e produção linguísticas. Mas a faculdade da linguagem, como muitas outras faculdades, cumpre os mínimos para a sobrevivência. E aqui termina a generosidade da natureza. Esta não dotou os falantes com a capacidade de entenderem o funcionamento dessa gramática, tal como não os dotou com a capacidade mais geral de entenderem o funcionamento da mente. Essa é uma tarefa que a natureza deixa aos próprios, em que andam empenhados desde sempre e que nunca darão por concluída.
Ensinar gramática, sendo então ensinar o que já se sabe, é tornar explícito o conhecimento implícito da língua. Ainda aqui parece tratar-se de um exercício improdutivo, já que, aparentemente, os ganhos em termos de competência do uso serão inexpressivos: usa-se a língua em função do que dela se conhece, pouco importando que esse conhecimento seja implícito ou explícito. Parece assim lógico que o ensino da gramática é desnecessário. Interessará então potenciar as condições naturais da aquisição da língua, ou seja, aumentar os estímulos externos. Esta lógica, suportada pela psicologia comportamentalista e mais recentemente pela pragmática linguística, ambas alicerçadas no positivismo, tornou-se particularmente poderosa e dominante no ensino da língua. Para além do mais, facilitou a vida aos professores de língua materna, porque eles próprios, deste modo, não necessitam de saber gramática. Como sinaleiros da norma, limitam-se a apontar os sentidos desta e a reprimir os seus desvios, sem descrições nem explicações.
Este ensino empírico, dominante, é particularmente gravoso. Desde logo, porque não disponibiliza o mais poderoso processo de desenvolvimento cognitivo, que é a reflexão sobre o funcionamento da língua. Depois, porque não proporciona um bom domínio da língua e, muito particularmente, não potencia o seu uso criativo. Por fim, porque não facilita o acesso a todo o tipo de conhecimento, de que a língua é o meio de apropriação. Com este tipo de ensino desenvolve-se, pressupostamente, a competência da comunicação. Os actuais programas do ensino secundário têm esta conformação. Houve a vã esperança de formar comunicadores bem sucedidos usando um instrumento que conhecem mal.
Neste domínio convém não fazer misturas: à natureza o que é da natureza, à escola o que é da escola. A programação biológica tem os seus tempos de aplicação e não vai além deles. Castro Caldas (2004: 41) chama «períodos sensíveis» a «estes intervalos de tempo em que a janela da oportunidade se encontra aberta». Sabe-se que a fase de aquisição da língua, esse «período sensível», termina precisamente no início da idade escolar, por volta dos sete anos. O seu prolongamento artificial é pouco produtivo, porque a janela da oportunidade» já se encontra fechada. A escola surge naturalmente nessa altura para promover a passagem à fase seguinte, a da aprendizagem, sobretudo da língua escrita. A natureza viabiliza apenas o conhecimento da língua oral. A escrita é uma aquisição civilizacional e por isso não está prevista na programação biológica.
A «aquisição da dimensão escrita da linguagem constitui uma verdadeira «revolução no cérebro» (id. Ibid, p. 44). É de facto uma revolução, porque exige a capacidade de análise da própria língua oral, esta adquirida espontânea e naturalmente. Leva à abertura de uma nova «janela da oportunidade», a da aquisição de um segundo nível simbólico da linguagem – a representação gráfica das sequências sonoras. O ensino empírico não proporciona essa «revolução no cérebro», porque, não promovendo a reflexão sobre a língua, não faculta o conhecimento consciente das suas unidades e das suas estruturas. Boa parte dos alunos que terminam o percurso escolar não chega a experimentar essa revolução.
A escrita é distinta da oralidade. «Até mesmo o seu mínimo desenvolvimento exige um alto nível de abstracção.» (Vigotski, 1996: 85). É pela via da abstracção que surge a consciência linguística, cujo desenvolvimento leva ao conhecimento dos princípios reguladores do funcionamento da língua. O ensino sistemático da gramática, promovendo a reflexão sobre a língua, favorece a consciência linguística. A sua finalidade é o desenvolvimento da competência metalinguística, através da qual é possível explicitar o conhecimento implícito, aumentar esse conhecimento e, por conseguinte, através de um melhor domínio, fazer um melhor uso da língua.
Esta apropriação consciente do capital simbólico que é a língua, afinal um alto investimento individual, não é permitida através do ensino prático, repetitivo, no prolongamento artificial da fase da aquisição. Esse é um ensino pragmático, que prescinde da consciência linguística e da competência metalinguística, centrando-se nos factores da comunicação não linguísticos. Encara a língua apenas segundo o seu valor instrumental. Luís Filipe Barbeiro, em Os Alunos e a Expressão Escrita (1999: 31), evidencia a saliência dos factores extralinguísticos da pragmática:
«O conhecimento consciente relativo à pragmática, ou consciência (meta)pragmática, não incide estritamente sobre elementos de natureza linguística. A perspectiva pragmática estabelece a relação entre o sistema linguístico e a situação em que esse sistema é utilizado. Assim, constituem o foco da consciência metapragmática elementos exteriores à língua, mas que são alvo dessa relação.»
Vimos que o ensino da gramática tem um triplo efeito: permite um melhor conhecimento e uso da língua; contribui, desde os primeiros anos de escolaridade, para o desenvolvimento cognitivo; e permite, através de um melhor domínio da língua, a apropriação mais fácil de todo o saber, já que é, como já bem notava Luís António Verney em meados do século XVIII, «porta dos outros estudos» (1949, vol. I: 26). Pode-se ainda acrescentar que o conhecimento explícito da gramática da língua materna facilita a aprendizagem de línguas estrangeiras. E o ensino da gramática pode ainda levar ao gosto pela língua, à exploração e fruição das suas potencialidades e manifestações estéticas, para além de ser meio de formação cultural, na perspectiva histórica. É que da língua, parafraseando Vergílio Ferreira, vê-se o passado.
Depois da defesa teórica do ensino da gramática, convém fazer a demonstração prática, mesmo que parcelar. Vamos considerar exactamente o ensino da escrita.
O processo de desenvolvimento da competência linguística, num sentido lato, a nível individual, com as fases da aquisição oral e da aprendizagem escrita, é uma recapitulação aproximada do desenvolvimento da própria língua, em termos nacionais. Até 1536, o português formou-se e desenvolveu-se essencialmente por via oral, de forma natural, espontânea. É a fase da aquisição. Com a publicação da Grammatica da lingoagem portuguesa de Fernão de Oliveira, em 1536, inicia-se o período da aprendizagem. Para além deste instrumento de ensino, o século XVI vê ainda surgir as obras de João de Barros (1540), Pêro de Magalhães de Gândavo (1574) e Duarte Nunes de Lião (1576). No século XVI, um povo que fala a língua há alguns séculos começa a ir à escola para tornar explícito o conhecimento implícito. É claro que o ensino estava a dar os primeiros passos, a massificação ainda vinha longe e, portanto, aprender a língua escrita era privilégio de uma elite muito reduzida.
A orientação pedagógica da primeira gramática portuguesa é literalmente adequada ao ensino das primeiras letras. Começa por descrever a fonética e fonologia da língua, levando à consciência dos sons e do seu valor distintivo, para a apropriação do sistema da escrita, constituído por letras, símbolos dos sons. A correspondência nem sempre biunívoca entre som e letra obriga o autor a demoradas explicações. A descrição e a explicação feitas têm em vista a fixação de uma norma.
É, ou deve ser, este, afinal, o procedimento da escola no início da aprendizagem da língua: tornar explícito o conhecimento fonológico implícito, adequá-lo à norma, e explicar a sua representação ortográfica, em que se inclui a acentuação. Neste processo de aprendizagem, a reflexão e a procura do automatismo devem ser indissociáveis.
Posteriormente, uma visão histórica da língua, nomeadamente sobre a evolução fonética na passagem do latim ao português e a formação do léxico por essa via, constitui oportunidade para a compreensão da inicialmente estranha representação do mesmo som por diferentes grafemas, bem como da existência de um grafema a representar diferentes sons.
Num outro momento, através do conhecimento da realidade dialectal do português europeu, a explicitação do sistema ortográfico pode ir mais longe, confrontando as diferentes variações fonéticas com a ortografia fixada num dado momento histórico de acordo com a pronúncia padrão.
A seguir, a propósito do conhecimento das diferentes variedades do português no mundo, muito particularmente da portuguesa e da brasileira, é oportuna a explicitação do sentido da evolução do sistema fonético europeu, sobretudo o vocálico, sem correspondente adequação da ortografia.
Noutro momento, não necessariamente nesta ordem, a explicitação da estrutura das palavras complexas permite o conhecimento consciente dos morfemas e da sua grafia própria dentro do vocábulo.
Finalmente, o conhecimento explícito das estruturas do léxico permite a apreensão consciente de regularidades ortográficas.
Pode-se argumentar que o sistema ortográfico da língua é interiorizado pela prática da leitura e da escrita. Diríamos que também é, sendo mesmo um meio necessário, mas não suficiente. Além disso, através desta reflexão, no sentido da explicitação e da compreensão, obtém-se o domínio consciente da ortografia, aumenta-se o conhecimento da língua e aprende-se a sua história. Proporciona-se com isso aos alunos a autoconfiança no uso da língua, a apreciação do bem que esta representa e promove-se o desenvolvimento cognitivo.
A representação gráfica dos sons constituiu uma questão que ocupou gramáticos e ortografistas até 1911, altura em que foi oficialmente fixada a ortografia. A partir daí e da própria reforma de 1945, o problema mantém-se, mas as gramáticas normalmente passam-lhe ao lado. Quando o referem, não indicam processos didácticos adequados. As duas gramáticas de referência já apontadas, enformadas pelo princípio estruturalista de que a língua é oral, ou seja, os fonemas constituem a matéria da língua, não sendo os grafemas unidades linguísticas, não estão, naturalmente, vocacionadas para tratar do problema da representação gráfica. As gramáticas pedagógicas disponíveis seguem em boa medida os modelos.
Alguma atenção, embora pouco explicativa, tem sido dada pelos prontuários ortográficos a esta matéria. Entre eles, cabe destacar, pela relevância inusitada, mas oportuna, que lhe dá, o Prontuário Universal – Erros Corrigidos de Português de D’Silvas Filho, ilustre sócio da Sociedade da Língua Portuguesa [e consultor do Ciberdúvidas], com uma primeira versão em 1994 e uma segunda, mais completa, em 1999. O elevadíssimo número de erros sintácticos, morfossintácticos, e sobretudo ortográficos, recolhido do uso pelo autor é revelador da dimensão e da gravidade do problema, bem como da urgência da sua resolução por via do ensino. Alguns desses erros vêm acompanhados de oportunas reflexões. Cabe também assinalar outra obra recente, Manual Prático de Ortografia, de José de Castro Pinto (1998), em que são dados alguns passos na tipificação dos erros ortográficos, domínio inexplorado cientificamente e desvalorizado pedagogicamente. A didáctica da língua está condicionada por dois preconceitos: a ortografia não é parte da língua, e o erro é traumatizante, se assinalado.
A análise de um ‘corpus’ de erros recolhidos de textos escritos de alunos do ensino secundário (10.º, 11.º e 12.º anos) permite desenhar algumas tipologias, indagar da sua razão e estabelecer estratégias de ensino gramatical como as que atrás foram enunciadas.
Os alunos chegam ao 10.º ano sem o conhecimento explícito das unidades linguísticas. Não sabem que fonema e grafema não são a mesma coisa. Acreditam, nesta fase, que as vogais do português são cinco, porque é esse o número de letras que as representa. Vêem, pois, em sé, sê e se uma única vogal. Não têm noção do seu valor distintivo. Não revelam hábitos de reflexão sobre a escrita. Perante a dúvida, têm como único recurso a imagem gráfica da palavra. A frequência de erros ortográficos neste nível de ensino deve-se a essa incapacidade de uso consciente de estratégias de autocorrecção. Vejamos algumas situações.
1. Elevação das vogais átonas
A elevação ou fechamento das vogais átonas é uma tendência marcante do português europeu, notória no contraste com a norma brasileira. Este fenómeno é gerador de erros ortográficos quando dele não se tem consciência.
1.1. Fechamento em u do o semiaberto e do o semifechado em posição átona
Esta diferente realização fonética, que não foi acompanhada pela ortografia, leva o aluno não alertado a grafar um u onde realmente o pronuncia. Exemplos: afugado, descubrimentos, esculher, fluriram, metáfura, velucidade. Uma forma da mesma palavra ou outra palavra da mesma família em que a vogal seja tónica revela-nos que se trata de facto de um o. Assim, temos afoga, descobre, escolha, floor, metafórico, veloz. Este exercício permite a autocorrecção, desde que, no mínimo, a competência metalinguística do aluno inclua a noção de vogal tónica.
1.1.1. Hipercorrecção
Os alunos têm um conhecimento implícito desta característica do vocalismo átono do português, claramente revelado através do fenómeno da hipercorrecção, que é, por si, gerador de novos erros. Exemplos: corandeiro, estimolava, locrou, modou, oportonidade, orgolhoso. A mesma procura da vogal em posição tónica pode levar à autocorrecção: cura, estimula, lucro, muda, oportuno, orgulho. Claro que esta operação exige um conhecimento explícito das relações entre palavras e das suas formas.
1.2. Fechamento em i do e semiaberto e do e semifechado em posição átona
Exemplos: basiavam, chatiado, contiúdo, reciava, touriar. As dúvidas são esclarecidas através de formas da mesma palavra ou de palavras da mesma família, como baseia, chateia, conter, receio e toureia.
1.2.1. Hipercorrecção
Também neste caso o conhecimento implícito gera erros por hipercorrecção, como em adultéreo. Confrontar com adulterino. 1.3. Redução de i a e mudo Este erro é devido sobretudo à dissimilação. Exemplos: defenido, estelista, exestia, maravelhosa, openião, permetido. Utilizando a mesma estratégia de autocorrecção, confrontem-se estas palavras com define, esiilo, existe, maravilha, opina, permite.
1.3.1. Hipercorrecção
Devem-se à hipercorrecção os erros em anticipar, despidiu, destimida, dispertou. Autocorrige-se com o recurso a despede, desteme e ao reconhecimento dos prefixos ante- em antecipar e des- em despertar.
1.4. Redução a e mudo do e semiaberto e do e semifechado em posição átona
Este tipo de erro caracteriza-se pela não representação do som ou pela sua representação deslocada na sílaba, porque, de facto, é imperceptível. Exemplos: natrior, cria (queria), difrente, excsivo (excessivo), frevor, perposição. Nestes casos, além do recurso a palavras da mesma família emquer, difere, excesso e ferve, é útil o reconhecimento de prefixos em anterior e preposição.
1.4.1. Hipercorrecção
Por hipercorrecção, estão erradamente grafadas as palavras ademirar, elito, quelítico (clítico), queriados (criados), referão, sangeurando.
1.5. Redução de u a e mudo
O fechamento das vogais átonas tende para o seu desaparecimento na cadeia falada. Daí o registo de erros em que u original ou redução de o semifechado é grafado e. Exemplos: esdrúxela, permenorizadamente, prenominalização, prenuncia-se.
1.5.1. Hipercorrecção
Erros de sentido oposto ocorrem também, por hipercorrecção, como em adúltura.
2. Monotongação
O fenómeno da monotongação do ditongo ou em o semifechado ou mesmo semiaberto, quando não faz parte do conhecimento explícito dos alunos, gera erros como mando-os (mandou-os), o (ou), ovem (ouvem), robei (roubei), toca (touca), torada (tourada). Só a falta de consciência metalínguística dos alunos permite que a homonímia gerada não lhes chame a atenção.
2.1. Hipercorrecção
Neste domínio, a hipercorrecção também produz os seus erros: agradeçou-lhe (agradeço-lhe), espousa (esposa), poude (pôde), sedutoura (sedutora).
3. Despalatalização
A passagem do e semifechado a a semifechado na vizinhança de som palatal é um fenómeno relativamente recente e circunscrito ao falar de Lisboa. É gerador de erros ortográficos por parte dos falantes da capital. Exemplos: ansiadade, contrariadade, desfacho, mediaval, percevajo , recraio, sociadade. A consciência metalinguística pode levar à autocorrecção de alguns destes erros. Confrontar, por exemplo, com desfechar e recrear. 3.1. Hipercorreção
A falta de compreensão deste tipo de palatalização leva ao surgimento de erros por hipercorrecção, como em arqueísmo (arcaísmo). Misto de hipercorrecção e de ditongação, igualmente por falta de conhecimento explícito, são os casos de bocheicho, dêseijo, feicho, graceijo. Veja-se o confronto com arcaiço, bochechar, dêsejar, fechar, gracejar.
4. Representação gráfica das consoantes sibilantes surdas
A fusão, nos dialectos centro-meridionais da sibilante ápico-alveolar e da predorsodental nesta última gerou dificuldades de representação gráfica, sendo frequentes erros dos tipos seguintes:
a) comçoante, impreçionante, intençidade, preçionado, reçente-se.
b) compreenção, execussão, expanção, reinvensão.
c) fassa , próssima, sintase, troucesse, trousse.
d) correce, excelentícimo, foce, voltace.
Trata-se de erros de autocorrecção possível, através do conhecimento explícito. Em a), recorre-se ao confronto com palavras da mesma família, onde o grafema se mantém: som, impressão, intenso, préssão, sentir. Em b), através de palavras da mesma família reconhecemos a relação, por razões etimológicas, das letras s e d em compreensão e compreender, expansão e expandir, e entre as letras ç e t em execução e executar, reinvenção e reinventar. Em c), também existe a relação entre as letras ç e z em faça e fazer, as letras x e z em trouxesse, trouxe e trazer; relação igualmente estabelecida entre x e ct em sintaxe e sintactico. Finalmente, em d), trata-se da desinência própria do pretérito imperfeito do conjuntivo -sse, e do morfema do superlativo absoluto sintético -íssimo: corresse, excelentíssimo, fosse, voltasse.
5. Representação gráfica das consoantes sibilantes sonoras
Tal como sucedeu com as sibilantes surdas, verificou-se, na mesma zona dialectal, uma fusão das duas sonoras na predorsodental. Daí, igualmente, o surgimento frequente de erros como os seguintes:
a) certesa, escravisar, vitoriozo
b) desoito, diser, rasoável
c) nazal, rezumido, trânzito
d) atraz, atravez, atrazar-se
e) esistia, ezercer, ezaltações
Também estes erros, através do conhecimento explícito da língua, são susceptíveis de autocorrecção. Em a) a capacidade de análise estrutural das três palavras permite reconhecer outros tantos sufixos (-eza, -izar, -oso), cujas sibilantes, hoje indistintas no português padrão, têm representação gráfica fixa, por razões etimológicas. Em b) a grafia também é determinada etimologicamente. Sincronicamente, isso é visível através de constantes gráficas (z, c, ç e t) em palavras da mesma família: dezoito, dez, décimã, decúria; dizer, dicção, dito; razão, razoável, racional. Em c) não se aplica o exercício de b), pois o grafema s estava já presente no étimo latino. Sincronicamente, é possível reconhecer o morfema trans- em trânsito. Em d) temos etimologicamente sempre o grafema s. Sincronicamente, é possível ver em atrás e em atrasar o morfema trans-, com a mesma origem de tras- (traspassar) e tres- (tresnoitar); o mesmo para através (través, atravessar, travessa). As palavras de e) têm no étimo o grafema x, sem variação sincrónica, carecendo de aprendizagem directa.
6. Representação gráfica da consoante palatal surda
A palatal surda pode ser representada graficamente por ch e x em início de sílaba e por s e x em fim de sílaba. Exemplos:
a) axavam, baicha, deichar, esdrúchula, flexa.
b) espandir, esposta, exdrúxula, expecialmente.
Em a), a autocorrecção pressupõe o conhecimento da existência da africada palatal [tš] em português, fundida com a palatal surda simples (grafada com x) no português padrão a partir do século XVIII, sempre representada pelo dígrafo ch, resultante da palatalização dos grupos consonânticos pl, cl e fl. Os erros apontados não são passíveis de elucidação sincrónica, mas são-no, por exemplo, chumb e plúmbeo, onde temos o termo popular e o termo erudito da mesma família etimológica. Em b), é possível reconhecer, semanticamente, o prefixo ex- em expandir, exposta, o que não sucede em esdrúxula ou em especialmente.
Esta análise poderia ir mais além, sem abandonar o domínio da falta de biunivocidade na representação gráfica dos sons, mobilizando sempre conhecimentos gramaticais explícitos para traçar estratégias de autocorrecção. De qualquer modo, os casos tratados parecem já bem elucidativos. Os erros evidenciados, registados em alunos com, pelo menos, nove anos de escolaridade, são a parte visível do seu desconhecimento da gramática da língua. Nos momentos devidos, faltou a descrição das unidades da língua, faltou a explicação da sua representação escrita, enfim, ficou por desenvolver a competência metalinguística capaz de fundamentar escolhas e alicerçar automatismos.
A estimulação linguística, reforçada na escola, revela-se notoriamente insuficiente neste domínio da escrita. A mesma prova poderia ser feita noutros, nomeadamente da sintaxe e do léxico.
Compensando o carácter pragmático da didáctica da língua materna, ouvem-se algumas vozes a aconselhar a reflexão metalinguística a propósito de situações surgidas na rotina da exercitação das competências da produção e da recepção. Trata-se de um passo em frente, mas que poderá ser em falso, já que os alunos não reflectirão bem sobre o que conhecem mal. Há que fazer acompanhar a reflexão da descrição e da explicação. Em suma, há que, sem preconceitos, ensinar sistematicamente a gramática. É que o conhecimento explícito da estrutura e do funcionamento língua, bem como o seu uso correcto, exige uma sólida competência metalinguística, que a comunicação, apenas como prática, não faculta e a gramática, só como moleta, não suporta.
BIBLIOGRAFIA
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BARBEIRO, Luís Filipe (1999). “Os Alunos e a Expressão Escrita – Consciência Metalinguística e Expressão Escrita”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
BARROS, João de (1957). “Gramática da Língua Portuguesa”. 3.ª ed. Organizada por José Pedro Machado. Lisboa: e 1.ª ed.: 1540.
CALDAS, Alexandre Castro (2005). “A Língua Materna nos Primeiros Anos de Escolaridade: A Perspectiva das Ciências Neurocognitvas”. In “A Língua Portuguesa: Presente e Futuro. Lisboa”. Fundação Calouste Gulbenkian.
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LIÃO, Duarte Nunes de (1784). “Origem e Orthographia da Lingua Portugueza". Nova edição, correcta e emendada. Lisboa: Na Typografia Rollandiana.
LOBATO, Antonio José dos Reis (1823). “Arte da Grammatica da Lingua Portugueza”. 13.ª impressão. Lisboa: Na Impressão de João Nunes Esteves. 1.ªed..: 1770.
MATEUS, Maria Helena Mira, BRITO, Ana Maria, DUARTE, Inês Silva, e FARIA, Isabel Hub (1983). “Gramática da Língua Portuguesa”. Coimbra: Livraria Almedina.
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PINTO, José M. de Castro (1988). “Manual Prático de Ortografia”. 2.ª ed. Lisboa: Plátano Editora.
VERNEY, Luís António (1949-1952). “Verdadeiro Método de Estudar”. Edição organizada pelo Prof. António Salgado Júnior. Lisboa: Livraria Sá da Costa. 1.ª ed.: 1746.
VIGOTSKI, L. S. (1996). “Pensamento e Linguagem”. São Paulo: Martins Fontes.
06/06/2005
Sobre o autor
* António J. Lavouras Lopes é professor de Português do Ensino Básico, em Lisboa
http://www.ciberduvidas.com/ensino.php?rid=1816
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domingo, 15 de junho de 2014
Cabeçalho ou cabeçário
Cabeçalho ou cabeçário
A forma correta de escrita da palavra é cabeçalho. A palavra cabeçário está errada. Devemos utilizar o substantivo comum masculino cabeçalho sempre que quisermos referir as informações colocadas na parte superior de uma página, coluna, tabela ou seção de um documento, como o título, o nome do autor, o número da página,…
A palavra cabeçalho é formada a partir de derivação sufixal, ou seja, é acrescentado um sufixo a uma palavra já existente, alterando o sentido da mesma. Neste caso, temos o substantivo cabeça mais o sufixo nominal aumentativo -alho.
O erro de transformação da palavra cabeçalho em cabeçário pode ocorrer devido ao fato do sufixo -ário ser comumente mais utilizado do que o sufixo –alho ou então por simples erro de pronúncia.
Exemplos:
Favor preencher o cabeçalho com letras maiúsculas.
É preciso corrigir os erros ortográficos presentes naquele cabeçalho.
O cabeçalho do jornal de hoje era muito sensacionalista.
Fique sabendo mais!
Cabeçalho também se refere à peça dianteira das carroças à qual se prendem os animais pela cabeça ou pescoço.
A palavra cabeçalho é formada a partir de derivação sufixal, ou seja, é acrescentado um sufixo a uma palavra já existente, alterando o sentido da mesma. Neste caso, temos o substantivo cabeça mais o sufixo nominal aumentativo -alho.
O erro de transformação da palavra cabeçalho em cabeçário pode ocorrer devido ao fato do sufixo -ário ser comumente mais utilizado do que o sufixo –alho ou então por simples erro de pronúncia.
Exemplos:
Favor preencher o cabeçalho com letras maiúsculas.
É preciso corrigir os erros ortográficos presentes naquele cabeçalho.
O cabeçalho do jornal de hoje era muito sensacionalista.
Fique sabendo mais!
Cabeçalho também se refere à peça dianteira das carroças à qual se prendem os animais pela cabeça ou pescoço.
Palavra Relacionada: cabeçalho.
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- Correntesa ou correnteza
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sábado, 14 de junho de 2014
sexta-feira, 13 de junho de 2014
CONFORTO AOS QUE SÃO ALVO DE TENTAÇÃO – C. H. SPURGEON Sermão proferido por Charles H. Spurgeon no Metropolin Tabernacle, em Newington, numa quinta-feira à noite, dia 27 de setembro de 1883 com base em 1 Co 10.13
CONFORTO AOS QUE SÃO ALVO DE TENTAÇÃO – C. H. SPURGEON
Sermão proferido por Charles H. Spurgeon no Metropolin Tabernacle, em Newington, numa quinta-feira à noite, dia 27 de setembro de 1883 com base em 1 Co 10.13
“Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana. Mas Deus é fiel e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir. Pelo contrário, juntamente com a tentação providenciará uma saída, para que a possais suportar”. (1 Co 10.13).
TODOS OS FILHOS DE DEUS são sujeitos à tentação. Alguns são tentados mais que outros, mas, tirando os que, de tão jovens, não têm consciência do mal, estou convencido de que não há nenhum que entrará no céu sem ter sofrido tentação. Se há alguém que escapou, certamente foi “o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). Mas você deve se lembrar de como ele foi levado pelo Espírito para o deserto, diretamente das águas do batismo, para ser tentado pelo Diabo. O apóstolo Paulo informa também que, “à nossa semelhança, foi tentado em todas as coisas, porém sem pecado” (Hb 4.15). O Senhor Jesus pode verdadeiramente dizer a nós, que somos seus seguidores: “Se eu, seu mestre, fui tentado, você não pode pensar que escapará da tentação, porque o discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo acima de seu Senhor”.
O fato de sermos tentados deveria nos quebrantar, pois é uma triste evidência de que o pecado ainda permanece em nós. Tenho idade suficiente para lembrar-se do tempo em que esfregávamos uma pederneira contra um pedaço de aço para obter fogo pela manhã. E recordo que sempre parava de tentar produzir faísca quando descobria que não havia mecha na minha caixa de apetrechos. Acredito que o Diabo não é tolo, e, se o homem estivesse sem mecha em sua caixinha de fogo - ou seja, sem corrupção em sua natureza -, Satanás não continuaria a tentá-lo por muito tempo. Não desperdiçaria tempo num exercício inútil desses. O homem que acredita ser perfeito nunca poderá fazer a Oração do Senhor. Terá de criar a própria oração, pois nunca desejará dizer: “... não nos deixes entrar em tentação” (Mt 6.13). No entanto, amados, como o Diabo acredita valer a pena gastar tempo em nos tentar, podemos concluir que há algo em nós que é propenso à tentação – que o pecado ainda habita em nós, apesar de a graça de Deus nos ter renovado o coração.
O fato de sermos tentados também deve nos lembrar de nossa fraqueza. Acabei de fazer referência ao modelo de oração de nosso Senhor Jesus Cristo, em que temos a frase “não nos deixes entrar em tentação” (Mt 6.13). A razão para apresentar uma petição dessas é certamente o fato de sermos tão fracos e frágeis. Pedimos que não sejamos sobrecarregados porque temos costas fracas. Suplicamos que o pecado não seja colocado diante de nós em nenhuma se suas formas atraentes, pois muitas vezes a carne toma emprestada a força do mundo e até mesmo do Diabo, e essas potências aliadas passam a ser demasiadamente grandes para nós, a menos que a onipotência de Deus seja exercida a nosso favor, sustentando-nos para nos impedir de cair.
Alguns filhos de Deus que conheço ficam muito atribulados pelo fato de serem tentados. Acreditam que poderiam suportar a provação caso ela viesse desacompanhada do pecado. Mas não vejo como, via de regra, podemos separar provação de tentação, uma vez que cada prova que vem sobre nós tem em si um tipo ou outro de tentação, tanto no que se refere à descrença ou à murmuração quanto no que diz respeito ao uso de meios errados para escapar de provação. Somos tentados, no sentido de sermos testados, tanto pelas misericórdias recebidas quanto pelos infortúnios sofridos. Mas, para o filho de Deus, o mais grave é que, às vezes, ele é tentado a fazer ou a dizer coisas que absolutamente odeia. O filho de Deus vê diante de si, com aspecto agradável, pecados completamente abomináveis para ele, pecados cujo próprio nome nem sequer pode suportar. No entanto, Satanás vem e coloca diante dele as carnes impuras em que ele se recusa a tocar. E sei que o Diabo tenta o povo de Deus injetando na mente pensamentos blasfemo, arremessando-os em seus ouvidos como um furacão. Ah, mesmo quando você está em oração, pode acontecer que pensamentos exatamente contrários àquele momento devocional invadam sua mente. Um pequeno barulho na rua o afastará da comunhão com Deus; e, antes mesmo que tome consciência disso, seus pensamentos, como cavalos selvagens, terão galopado por montes e vales, e você mal saberá como reuni-los novamente. Ora, tentações como essas terrivelmente dolorosas para o filho de Deus. Ele não pode suportar o hálito envenenado do pecado e, quando descobre que o pecado está batendo à porta, gritando debaixo de sua janela, perturbando-o dia e noite, como tem acontecido a alguns – espero que não a muitos -, sente-se extremamente perseguido e gravemente atribulado. Talvez ajude se eu lembrar essa pessoa que não há pecado em ser tentada. O pecado é do tentador, não do tentado. Se você resistir a tentação, terá uma atitude louvável. Mas não há nada louvável na tentação. Ela é má, e nada mais que isso. No entanto, você não tentou a si mesmo, e aquele que o tentou é que deve ser culpado de tentação. Evidentemente, você não é culpado por pensamentos que o afligem. Eles podem comprovar que o pecado ainda permanece em você, mas não há pecado em ser tentado. O pecado está em ceder à tentação, e você será abençoado se conseguir se afastar dela. Se conseguir vencê-la, se seu espírito não se render a ela, você deve até mesmo ser abençoado por meio dela. “Bem-aventurado o varão que sofre a tentação” (Tg 1.12, RC). Há uma bem-aventurança mesmo na tentação, e, apesar de no presente ela não parecer agradável, mas opressiva, produzirá depois um fruto abençoado para os que por ela são exercitados.
Além disso, há coisas piores neste mundo que sermos atacados com tentações dolorosas. É muito pior ser alvo de uma tentação agradável – ser delicadamente sugado para a boca do destruidor -, ser arrastado pela corrente suave para depois ser arremessada catarata abaixo. Isso é terrível! Mas lutar contra a tentação, isso é bom. Digo mais uma vez que existem coisas muito piores que ser provado com uma tentação que desperta toda indignação de seu próprio espírito. Um antigo teólogo costumava dizer que tinha mais medo de um demônio do sono que de um rugidor. E há grande verdade nessa observação; pois, quando você é deixado completamente em paz e nenhuma tentação o assalta, você tende a ficar carnalmente seguro e a dizer, com orgulho: “Eu nunca serei abalado”. Acho que nenhum homem está em perigo tão iminente como aquele que pensa que nenhum perigo lhe possa suceder. Assim, o que nos mantém na torre de vigia, mesmo sendo algo mau em si mesmo, é suplantado pelo bem. A parte mais perigosa da estrada para o céu não é o vale da sombra da morte. Não achamos que Cristão, o protagonista do peregrino, dormiria com todos aqueles duendes, nem no momento em que achou difícil sentir o caminho e se manter nele, mas, sim, quando ele e Esperançoso chegaram ao Solo Enfeitiçado, “onde o ar naturalmente deixa os homens sonolentos”. Era nesse ponto que os peregrinos entravam em grande perigo, até que Cristão lembrou a seus companheiros de viagem que haviam sido avisados pelos pastores para não dormir quando chegassem a essa parte enganosa do caminho. Creio, portanto, que ser assaltado com tentações dolorosas – as que incitam o espírito quase à loucura -, por pior que seja a prova ou por mais difícil que seja de suportá-la, talvez não seja o pior que nos possa acontecer espiritualmente. De todos os males que o cercam, sempre escolha o menor. E, como essas não são as tentações mais prejudiciais, não entre em total desespero caso lhe caiba ser tentado como foram muitos antes de você.
Isso é o suficiente como introdução a uma pequena conversa sobre tentação, com o propósito de confortar qualquer pessoa extremamente tentada por Satanás. Sei que estou falando a muitos nessa condição e por isso gostaria de repetir as palavras da nossa passagem: “Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana. Mas Deus é fiel e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir. Pelo contrário, juntamente com a tentação providenciará uma saída, para que possais suportar” (1 Co 10.13). Querido amigo sob tentação, lembre-se de que você não deve se sentar em desespero e dizer: “Estou sendo profundamente tentado agora e temo ser tentado de forma cada vez pior, até que meus pés deslizem, e eu caia, e pereça completamente”. Não fale como Davi quando foi caçado como uma perdiz nos montes – “Algum dia ainda morrerei pela mão de Saul” (1 Sm 27.1) -, mas creia que o Senhor, que lhe permite ser tentado, lhe dará livramento em seu próprio e bom tempo.
I. Aqui está seu primeiro conforto:
HOUVE UM LIMITE EM TODAS AS SUAS PROVAÇÕES ANTERIORES.
“Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana...”.
Por vezes, a tentação tem se apoderado de você, como um estrangular pega um homem pela garganta, de repente. Tem se apoderado de você – talvez esse seja o verbo mais precioso que eu possa usar. Ela tem se apoderado de você de surpresa, amarrando-o e imobilizando-o com rapidez. E, ainda assim, as tentações que você suportou até agora não vão além das que acometem a todos os homens.
Em primeiro lugar, são como aquelas enfrentadas por seus companheiros cristãos. Sei que você é tentado a pensar que é um viajante solitário em uma estrada que ninguém jamais atravessou; mas, se examinar cuidadosamente a trilha, descobrirá as pegadas de alguns dos melhores servos de Deus que passaram ao longo desse caminho enfadonho. É uma vida muito escura, você diz, que pode realmente ser chamada “Viela Mortal”. Ah! Mas você vai descobrir que os apóstolos percorreram esse caminho, os que confessaram sua fé passaram por esse caminho, mártires andaram por esse caminho e o melhor dos santos de Deus foi tentado assim como você está sendo agora. “Ah!”, dirá alguém, “mas estou sendo tentando =, como você disse há pouco, como pensamentos blasfemos e horríveis”. Assim foi com o mestre John Bunyan. Leia Grace abounding to the chief of sinners [Graça abundante ao principal dos pecadores] e veja as coisas pelas quais ele teve de passar. Muitos outros tiveram experiência similar, e entre eles estão alguns de nós que estamos vivos para lhe dizer que sabemos tudo sobre essa forma especial de tentação, embora o Senhor tenha nos livrado dela. “Ah!”, diria outra alma tentada, “mas tenho sido tentado até mesmo no que se refere a me autodestruir”. Essa também não tem sido uma tentação incomum até mesmo aos santos mais queridos de Deus, e, embora ele os tenha preservado e mantido vivos, ainda assim muitas vezes eles se sentiram como Jó, quando disse:“Prefiro ser estrangulado, e sofrer a morte, a este meu sofrimento” (7.15). “Ah!”, exclama outro, “sou tentado ao pior dos pecados, ao mais vis pecados, e não deveria me atrever nem sequer a mencionar as abominações que Satanás me tenta a cometer”. Você não precisa me dizer, e confio que você será preservado contra elas pelo poder onipotente do Espírito Santo de Deus. Mas posso garantir que mesmo os santos no céu, se lhe pudessem falar neste momento, diriam que alguns deles foram grandemente afligidos – mesmo alguns dos mais valorosos dentre eles, que andaram mais próximos a Deus, foram duramente atormentados por tentações que não teriam mencionado a seus companheiros, tamanha perturbação sofrida por eles. Talvez ainda outro amigo diga: “Na verdade, tenho sido tentado à autojustiça, que é a maior tentação que pode acontecer a um homem cuja confiança está totalmente em Cristo”. Bem, foi o que aconteceu ao mestre John Knox, o grande pregador da justificação pela fé. Quando estava morrendo, foi tentando a gloriar-se em sua própria coragem por Cristo, mas lutou contra esse mau pensamento e o superou, assim como você pode superá-lo.
Você acha que, quando um homem é muito paciente, ele não é tentado à impaciência. Irmão, o Espírito de Deus diz, pela pena do apóstolo Tiago: “Ouvires sobre a paciência de Jó” (5.11). Sugiro a você esta pergunta: “Você não ouviu falar da impaciência de Jó?”. Você já ouviu falar, sem dúvida, da grande fé de Pedro. Nunca ouviu falar da incredulidade de Pedro? Os membros do povo de Deus costumam falar precisamente naquilo em que são mais famosos, e, no que diz respeito às biografias bíblicas, o homem que tem maior notoriedade por toda a obra do Espírito de Deus em sua vida geralmente é o que falhou exatamente onde pensava ser mais forte. “Já li sobre a vida de homens bons”, você diz, “eu não sou como eles”. Devo dizer por quê? Porque a vida deles não foi inteiramente escrita; mas, quando o Espírito Santo escreve sobre a vida de um homem, ele diz tudo. Quando biógrafos escrevem sobre a vida de homens bons, é claro que não expressam suas lutas internas e medos, amenos que seja o caso de um homem como Martinho Lutero, cuja vida se caracterizou por uma continua luta interior e que, embora parecesse corajoso por fora, não raro tremia por dentro. Quando escreverem sobre minha vida, vão contar que tive uma fé forte, mas não vão contar tudo sobre o outro lado dela. E então você vai talvez ficar pensando: “Ah, não consigo chegar à altura que Spurgeon atingiu!”. Isso é porque lhe falta o conhecimento do interior do ser humano, pois, se você conhecesse o interior e o exterior do homem que caminha mais próximo a Deus – se for sincero e honesto, há de contar -, saberia que as tentações pelas quais você tem de passar são as mesmas tentações pelas quais ele teve de passar. E ele sabe que as terá muitas outras vezes e sabe que, como diz o apóstolo: “Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana...”.
Então repito: nenhuma tentação o assaltou que seja diferente daquelas com que os homens em geral são testados em determinado processo de provação. Esse momento não é o da vitória final, irmão. É a hora da batalha, e as armas usadas contra nós são as mesmas empregadas contra os exércitos dos fieis em todas as épocas. Você e eu nunca fomos tentados como os anjos que mantiveram seu primeiro estado e venceram a tentação. Não posso dizer como príncipe das trevas foi tentado ou como tentou sues companheiros, servos da lealdade ao grande Rei; mas de uma coisa tenho certeza: você nunca foi assaltado com a tentação própria de um anjo. Sua tentação só foi àquela adequada a um homem e aquele que outros homens como você superaram. Outros lutaram bravamente contra tentações semelhantes à sua, e você deve fazer o mesmo. Sim, você deve fazer o mesmo pelo poder do Espírito de Deus que repousa sobre você. Costuma-se dizer, nos assuntos da vida comum, que o que o homem fez o homem pode fazer, e isso vale também em relação à vida espiritual. As tentações vencidas por outros homens podem ser vencidas por você, se você procurar a mesma fonte de força e se a buscar no mesmo nome em que eles buscaram. A força para vencer a tentação vem de Deus somente, e o nome da vitória é o nome de Jesus Cristo; portanto, avance nessa força e nesse nome contra todas as suas tentações. Mãos à obra, pois já foram derrotados muito tempo atrás, e você deve derrota-las novamente. Não estremeça por seguir de luta em luta e de vitória em vitória, como aconteceu a outros que vieram antes de você e agora entraram em seu descanso.
Outros já estiveram de luto aqui na terra
e molharam de lágrimas seus leitos;
lutaram arduamente, como nós, agora,
com pecados, e dúvidas, e medos.
Se você pudesse perguntar a eles de onde veio à vitória, eles a atribuiriam aos recursos que estão disponíveis a você quanto estiveram a eles – precisamente radiosa obra e Deus, ao Espírito Santo e ao sangue e à justiça do Senhor Jesus Cristo. Nenhuma tentação aconteceu a você diferente daquelas com as quais os seres humanos podem lidar e conseguem superar com a ajuda de Deus.
Repito: até agora nenhuma tentação lhe sucedeu além das que são comuns ao homem, e a todas Cristo enfrentou. O grande de cabeça da humanidade, o representante dos homens, sofreu a mesma tentação que agora está afligindo você. “Em toda a angústia deles” – ou seja, a aflição de seu povo no deserto, que é exatamente igual à sua, se você está no deserto -, “em toda a angústia deles, ele também ficou angustiado, e o anjo da sua presença os salvou” (Is 63.9). Ele estava rodeado por enfermidades, “homem de dores e experimentado nos sofrimentos” (Is 63.9). Repetindo o texto que já citei e que é tão adequado aqui, ele, “à nossa semelhança, foi tentado em todas as coisas” (Hb 4.15). “Por essa razão era necessário que em tudo se tornasse semelhante a seus irmãos, para que viesse a ser um sumo sacerdote misericordioso e fiel nas coisas que dizem respeito a Deus, a fim de fazer propiciação pelos pecados do povo. Porque, naquilo que ele mesmo sofreu, ao ser tentado, pode socorrer os que estão sendo tentados”. Ele sabe tudo sobre o problema de cada um de nós e sabe como lidar com ele e como sustentar-nos em meio à luta.
Portanto, queridos amigos, nenhuma tentação lhes sucedeu exceto a que é comum aos homens, no sentido de ter sido enfrentada por homens como vocês, tendo sido superada por homens como vocês e tendo sido enfrentada e vencida por seu Representante bendito, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Venha então, amado, e deixe que dissipe todo o mistério em relação a suas tentações. O mistério dá margem à espada da provação. Talvez a mão que escreveu na parede não teria amedrontado Belsazaer, se ele pudesse ter visto o corpo ao qual pertencia aquela mão. Afinal, não há mistério sobre seu problema. Embora você o tenha qualificado como sem dúvida o maior que já sucedeu a qualquer ser humano antes, isso não é a verdade; você não é um imperador no reino da desventura. Não pode verdadeiramente dizer: “Eu sou o homem que viu a aflição mais que todos os outros”, pois seu Senhor suportou muito mais que você já suportou, e muitos de seus santos, que passaram da fogueira à coroa, devem ter sofrido muito mais do que você tem sido chamado a sofrer até o momento.
II. Voltemo-nos ao segundo conforto revelado em nossa passagem:
A FIDELIDADE DE DEUS.
“Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana. Mas Deus é fiel...”.
Ah, que palavra abençoada esta: Deus é fiel! Portanto, ele é fiel à sua promessa. Mesmo Balaão disse: “Deus é homem para que minta, nem filho do homem, para que se arrependa. Por acaso, tendo ele dito, não o fará? Ou, havendo falado, não o cumprirá?” (Nm 23.19). Uma das promessas de Deus é:“Nunca te deixarei, jamais te desampararei” (Hb 13.5). “Deus é fiel”; então vai cumprir essa promessa. Aqui está uma das promessas de Cristo, e Cristo é Deus: “... minhas ovelhas. Estas ouvem a minha voz, eu as conheço, e elas me seguem. Dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão; e ninguém as arrancará da minha mão” (Jo 10. 26-28). “Deus é fiel”, então essa promessa será cumprida. Você certamente já ouviu esta promessa muitas vezes: “... a tua força seja como os teus dias” (Dt 32.25). Você acredita nisso ou vai fazer de Deus um mentiroso? Se acredita, então varra de sua mente todos os pressentimentos sombrios como esta pequena frase abençoada: “Deus é fiel”.
Observe, em seguida, que não apenas Deus é fiel, mas também é o Senhor da situação, para que possa cumprir sua promessa. Note que o texto diz: “e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir” (1 Co 10.13). Assim, você não poderia ter sido tentado se Deus não tivesse permitido que isso acontecesse. Deus é muito mais poderoso que Satanás. O diabo não pôde tocar Jó, exceto por permissão divina, nem ele pode tentar e provar você a menos que Deus permita. Ele precisa de autorização do Rei dos reis antes que possa tentar um único santo. Por quê? Satanás não tem permissão para manter a chave da própria casa, pois as chaves da morte e do inferno estão presas ao cinto de Cristo, e, sem a permissão de Deus, o cão do inferno não pode sequer abrir a boca para latir a um filho de Deus, muito menos para vir e preocupar qualquer uma das ovelhas a quem o Senhor, por sua graça, chamou a seu aprisco. Por isso, amado, você tem grande razão de consolo pelo fato de a tentação que o prova ainda estar sob o controle do Criador fiel que “não deixará que sejais tentados além do que podereis resistir”.
Essa é uma segunda razão para o conforto; saboreie-a debaixo da língua como um pedaço de doce.
III. O terceiro conforto está na:
RESTRIÇÃO QUE DEUS IMPÕE À TENTAÇÃO.
“... não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir”.
A maré da provação deverá subir ao mais alto nível da água, e então Deus dirá: “Até aqui virás, mas não avançarás; e aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas” (Jó 38.11).
Ele “não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir”. Isso pode aplicar-se, às vezes, ao período em que a tentação sobrevém. Tenho observado cuidadosamente como Deus controla o tempo da prova de seu povo. Se tal e tal provação tivesse vindo a um de seus filhos quando jovem, acredito que ele não teria suportado; ou, se a pessoa tivesse perdido algum amigo querido enquanto ela mesma estivesse doente, o problema em dobro a teria esmagado. Mas Deus envia nossas provações na hora certa e, se coloca um peso extra de uma forma, tirar algum peso de outra forma. “Tu [...] os expulsaste com o vento forte, na época do vento oriental” (Is 27.). Trata-se de algo muito simples, mas verdadeiro: se o vento sopra do Norte, não sopra ao mesmo tempo do Sul; e, se uma série de problemas vem a um homem cristão, outra série de problemas geralmente se afasta dele. John Bradford, o famoso mártir, sofria muitas vezes de reumatismo e depressão de espírito, algo com que posso muito me identificar. Mas, quando foi aprisionado em um calabouço sujo e úmido e soube que nunca sairia dali a não ser para morrer, escreveu: “É singular o fato de que, desde que estou nesta prisão, já tendo outras provas para suportar, meu reumatismo e minha depressão de espírito não tenham nem sequer tocado em mim”. Isso nem se quer é uma grande bênção? E você vai descobrir que normalmente é assim; você não será tentado além do que é capaz de suportar, porque Deus vai permitir que a prova venha em um momento em que você seja mais capaz de suportá-la.
Há também grande bondade da parte de Deu quanto à duração da provação. Se algumas das nossas provas durassem muito mais tempo, se tornariam muito pesados para suportar. Com respeito à destruição de Jerusalém, nosso Senhor disse: “E se aqueles dias não fossem abreviados, ninguém seria salvo; mas por causa dos escolhidos eles serão abreviados” (Mt 24.22). Não tenho dúvida de que muitas vezes Deus opera de imediato nas provações de seus filhos, porque, se continuassem por mais tempo, elas não teriam um efeito bom, mas ruim sobre nós. Se uma criança precisa ser corrigida, não deixe a punição durar como se ela fosse um criminoso que deve ser condenado por longo período; dê-lhe o castigo merecido e encerre a questão. Assim acontece muitas vezes na disciplina da casa de Deus. Entretanto, existem provas que são prolongadas ano após ano, porque a provação é um ingrediente eficiente e, se fosse encurtada, talvez não nos abençoasse. Em todos os casos, há uma sabedoria infinita que torna nossos problemas tão longos quanto necessário, e não mais que isso.
O mesmo se aplica ao número de provações. Bendito seja Deus,
Se ele ordena o número dez,
Nunca pode ser onze.
Se ele planeja que seus servos passem pelo fogo e não pela água, o próprio Satanás não pode fazê-los passar pela água. Deus conta as gotas do tônico amargo que dá a seus santos enfermos, e eles não poderão receber nenhuma gota a mais do que ele determinou. Então, queridos filhos de Deus que hoje experimentam a tentação, as tentações que enfrentarão, bem como o número delas, não serão maiores do que podem suportar.
O mesmo também acontece quanto à força em que a tentação sobrevém. Você nunca viu uma grande árvore sob impacto de uma tremenda tempestade? Ela balança para lá e para cá e parece pouco capas de recuperar-se dos golpes poderosos da tempestade; no entanto, as raízes a sustentam. De repente, vem outro tornado, e parece que a árvore será lançada para fora da terra, mas a tensão cessa justamente a tempo de o velho carvalho balançar com fúria de volta a seu lugar. Entretanto, se quase um quilo de força a mais fosse exercido naquela tremenda explosão, a árvore cairia prostrada sobre a grama. Assim Deus, no caso de seu povo, em todas as circunstâncias, só para no ponto certo. Você pode ser tentado até não ter nem um pingo a mais de forças. Às vezes, o Senhor prova seu povo até parecer que mais um sopro dele certamente faria com que todos naufragassem. É nesse momento então que ele estende sob eles seus braços eternos, e nenhuma outra prova lhes é infligida. Isso é uma bênção para todos vocês que têm problemas de qualquer tipo, e vocês, que pertencem ao povo de Deus, podem ver texto e descansar completamente nele: “Deus é fiel e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir”. Quando aos que não são seu povo, sinto muito por vocês. Estou expondo essas verdades preciosas, mas elas não são para vocês. A Palavra de Deus declara: “O ímpio tem muitas aflições” (Sl 32.10). Se você não tem um Deus em quem buscar refúgio, o que fará quando as tempestades açoitarem seu barco? Para quem ou para onde você pode fugir? O cristão pode cantar:
Ó bondoso Salvador,
Sê tu meu amparador;
Negras ondas de aflição,
Fortes ventos perto estão.
Deste espanto e do terror
Vem salvar-me, ó bom Senhor;
e no porto faze entrar
minha barca sem quebrar.
(Charles Wesley, Salmos e hinos, 169)
Mas, pobre alma querida que não ama a Cristo, onde você pode encontrar conforto nos momentos de tristeza e provação? Você, que perdeu a esposa e os filhos, você, que é oprimido pela pobreza, você, que está atormentado pela doença, você, que ainda não tem o Salvador, o que pode fazer? Pobres sem teto em uma tempestade de neve, o que podem fazer sem ter nem sequer um arbusto para abriga-los? Esse é exatamente o seu estado, e lamento por vocês, e imploro que não permaneçam nessa condição tão deplorável nem por um momento mais.
Venham, almas culpadas, e voem
como pombas às chagas de Jesus;
este é o dia das boas-vindas do evangelho,
em que à graça livre ele conduz.
IV. O próximo conforto que extraímos da nossa passagem relaciona-se com:
A PROVISÃO QUE O SENHOR DÁ ÀQUELE QUE É TENTADO.
“Mas Deus é fiel e [...] justamente com a tentação providenciará uma saída...”.
No original grego, o versículo diz: “juntamente com a tentação providenciará uma saída”, pois há uma maneira correta de escapar da tentação. Há vinte maneiras improprias, e ai do homem que faça uso de qualquer uma delas. Mas há apenas uma maneira adequada de escapar à prova, e esse é o caminho reto, o caminho que Deus providenciou para seu povo trilhar. Deus abriu em meio a todas as provas o caminho por onde seus servos poderiam sair corretamente. Quando os corajosos jovens judeus foram provados por Nabucodonosor, havia um caminho pelo qual poderiam ser preservados da fornalha de fogo ardente. Tinham apenas de dobrar os joelhos diante da grande imagem quando a flauta, a harpa, a cítara e o saltério soassem. Aquela forma de escape nunca teria funcionado, pois não era o caminho certo. O caminho para eles eram serem jogados dentro da fornalha e lá terem a presença do Filho de Deus passeando com eles no meio do fogo, o qual não podia atingir. Da mesma forma, sempre que você for exposto a qualquer provação, tenha em mente não tentar da maneira errada.
Observe especialmente que o caminho certo é sempre o que Deus planeja; portanto, quem estiver exposto agora à tentação ou à provação não crie sua própria forma de escape. Deus, e somente Deus, tem de fazer isso por você. Por isso, não tente escapar por si mesmo. Conheci um homem que estava com problemas de falta de dinheiro, e a solução que buscou foi usar o dinheiro de alguém de quem ele era o depositário fiel. Esse não era o caminho de escape de Deus para ele; por isso, só mergulhou em provação pior que a de antes. Conheço um homem de negócios que estava em grande dificuldade. Tudo estava dando errado para ele; então ele especulou, apostou e arruinou seu negócio e seu caráter pessoal. Aquele não era o caminho de Deus para ele escapar de seus problemas. Às vezes, a melhor coisa que um homem com problemas pode fazer é não fazer simplesmente nada, mas deixar tudo nas mãos de Deus. “Acalmai-vos e vede o livramento que o Senhor vos trará” (Êx 14.13). Quando os israelitas saíram do Egito, Deus os guiou de uma forma que poderia muito bem ter provocado murmurações. Não havia nada diante deles a não ser o mar, e trás deles vinha o faraó com toda a sua fúria, gritando:“perseguirei, alcançarei, repartirei os despojos; o meu desejo se fartará deles; arrancarei a minha espada, a minha mão os destruirá” (Êx 15.9). Qual seria agora o caminho de Deus para o escape deles? Exatamente através do mar vermelho. E do outro lado eles cantaram, quando os egípcios morreram afogados: “Cantarei ao Senhor, pois trinfou gloriosamente; lançou no mar o cavalo e o seu cavaleiro” (Êx. 15.1). Teria sido lamentável se tivessem tentado escapar usando métodos próprios ou se tivessem tentado voltar para lutar contra o faraó. Tais alternativas não teriam tido êxito, mas o Senhor preparara para seu povo o melhor caminho de escape que pode haver.
Observe também que o Senhor provê o caminho de escape “juntamente com a tentação”. Ele permitiu a prova e, ao mesmo tempo, preparou o caminho para escapar dela. Deus planejou tudo, meu irmão. Não só que você, o campeão dele, sairá e lutará bravamente na força do Senhor, mas também que ele será seu escudo e sua grande recompensa. Ele o guiará ao fogo perigoso; no entanto, providenciará o escape da mesma forma que proveu os meios para você entrar nessa situação. Por isso, vai leva-lo em segurança. Não foi o salmista quem cantou: “àquele que conduziu o seu povo pelo deserto, pois seu amor dura para sempre” (Sl 136.16)? Não só os guiou para o deserto, mas os guiou através dele. Bendito seja seu santo nome! E, se o Senhor o levou para o deserto da angústia e da aflição, preparou o caminho para a saída ao mesmo tempo em que criou a aflição. “Confia no Senhor e faze o bem; assim habitarás na terra e te alimentarás em segurança. Agrada-te também do Senhor, ele satisfará o desejo do teu coração. Entrega teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele tudo fará. Fará tua justiça sobressair como a luz, e teu direito, como o meio-dia. Descansa no Senhor e espera nele; não te aborreças por causa daquele que prospera em seu caminho, por causa do que trama o mal” (Sl 37. 3-7). Busque “primeiro o seu reino e a sua justiça” (Mt 6.33), e tudo o mais precisar lhe será dado. Mantenha-se afastado do pecado da tentação e não precisará temer o sofrimento da tentação. Se as provas não o levam a seus próprios expedientes de escape, mas o levam aos joelhos, elas serão, afinal, bênção para você.
Esse é o quarto conforto, que Deus preparou o caminho para seu povo escapar das provações. “Bem”, dirá alguém, “então vou escapar dessa provação”.Espere um momento, meu amigo, e ouça as palavras de encerramento da passagem bíblica com as quais vou concluir meu discurso.
V. Este é o último conforto:
O SUSTENTO QUE DEUS DÁ NA PROVA.
“para que a possais suporta”.
O caminho traçado por Deus para o livramento da provação não deve ser evitado pelo povo de Deus, de modo que ela não tenha de trilhá-lo. Antes, constitui um escape que faz o povo de Deus atravessar o problema até a saída na outra extremidade. Não foi uma fuga do mar vermelho, mas uma fuga através do mar vermelho que evitou uma provação ainda maior. Se você, amado, está exposto à prova ou à tentação, ele o capacitará a suportá-la. Todavia, ore antes de sair deste prédio, para que essa última palavra, sobre a qual não tenho tempo de me alongar, possa ser cumprida em sua experiência: “para que possais suportar”.
Suponhamos que você tenha de ser pobre. Bem, se Deus assim designou, você será pobre; por isso, ore para que seja capaz de suportar tal situação. Como diligência honesta e com integridade inflexível, lute para chegar a uma posição melhor, mas, se todos seus esforços falharem, então diga ao Senhor:“todavia, não seja feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22.42). Talvez seu querido filho esteja morrendo ou sua esposa esteja enferma; você se apavora com o pensamento de perdê-los e estaria disposto a dar a vida por eles, se pudesse. Bem, faça todo o possível para a recuperação deles, pois a vida é preciosa, e todo o dinheiro gasto para salvá-los será bem gasto; mas, se a saúde não lhes for concedida, ore para que possa ser capaz de suportar até mesmo essa prova tão pesada. É maravilhoso como Deus verdadeiramente ajuda seu povo a passar por problemas que seriam para eles absolutamente esmagadores. Tenho visto mulheres pobres e frágeis que pensei fossem morrer em seu luto, mas se tornaram corajosas e fortes, e vi homens antes covardes diante dos problemas bendizerem ao Senhor pela provação quando o golpe realmente lhes sobreveio. E você pode fazer o mesmo.
Suponhamos que você tenha de ficar doente. Bem, essa uma dura provação, e eu, pessoalmente, faria qualquer coisa que pudesse para escapar da aflição que muitas vezes me atinge; mas, se não tem de se assim, então preciso mudar minha lista de oração e pedir que eu seja capaz de suportar o sofrimento. Recebi uma carta de um homem de Deus esta manhã que me sustentou muito. Ele diz: “Meu querido irmão, senti muito por ouvir que você estava de novo com dores e com o espírito deprimido, entre outras coisas; mas, quando me lembrei de como Deus o tem abençoado de muitas formas, pensei comigo mesmo: “Talvez o sr. Spurgeon não continuasse a pregar as doutrinas da graça e não fosse tão capaz de confortar os fracos filhos de Deus, se não sofresse essas dores agudas de vez em quando”. Por isso quero parabeniza-lo por tais provações”. Aceitei as congratulações. Você não vai fazer o mesmo, meu irmão ou irmã em aflição? Ore: “Meu Pai, se possível, afasta de mim este cálice” (Mt 26.39), mas se ele não afastar, então aqui está aquela outra forma de conforto: “para que possais suportar”.
E lembrem-se, queridos amigos, embora eu os incentive a fazer dessa passagem uma oração, ela é, de fato, uma promessa, e não há oração melhor que uma promessa que se transforma, por assim dizer, em oração. Deus mesmo disse, por seu inspirado apóstolo, que ele “não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir. Pelo contrário, juntamente com a tentação providenciará uma saída, para que possais suportar”. Hasteiem as bandeiras, então! Em frente, seja o que for que obstrua o caminho! Catemos, com o bom e velho John Ryland:
Em meio a inundações e chamas, se Jesus guiar,
eu o seguirei por onde quer que for.
“Não me impeça” deve ser meu exclamar,
Embora a terra e o inferno venham a se opor.
A vida imortal dentro de nós nunca pode ser destruída; a natureza divina que Deus Espírito Santo implantou nunca será pisoteada. “Não te alegres a meu respeito, inimiga minha; quando eu cair, me levantarei; quando eu estiver em trevas, o Senhor será a minha luz” (Mq 7.8).
Mas, ah, sinto muito, muito, muito, muito, do fundo da minha alma, por você que não conhece o Senhor, pois esse conforto não é para você! Busque-o, rogo-lhe, busque-o como seu Salvador. Olhe para ele e confie nele; então, todas as bênçãos da aliança eterna serão suas, pois o Pai concedeu a ele ser o Líder e o Comandante sobre seu povo, e os que olham para ele e o seguem viverão para sempre e sempre. Deus o abençoe, por amor de Cristo! Amém.
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