A natureza do bem – Santo Agostinho
A natureza do bem
O texto sobre a natureza[1] do bem[2] é um texto essencialmente sistemático, que procura ser uma resposta (mais uma resposta) ao maniqueísmo[3] que ainda proliferava no “império”. Aliás, logo no § 2, Agostinho estabelece bem a diferença entre o que é verdadeiro, o mal como inclinação, ou melhor dito, a corrupção de bens melhores (como veremos) daquela visão do mal como substância que era central no maniqueísmo.
Agostinho parte da premissa (§ 1) de que deus equivale ao Supremo bem, imutável[4], eterno imortal, donde todas as coisas são derivadas (isto é, criadas a partir do nada), sendo que estas criaturas “não são o que ele é”[5], logo mutáveis[6], mortais e temporais. As criaturas são naturalmente boas (“toda a natureza é boa”[7]), ainda que criados e mutáveis, ainda que uns mais afastados que outros do próprio deus. Assim, o espírito ou a alma são bens melhores que, por exemplo, o corpo. Logo o espírito está mais próximo de deus do que o corpo, ainda que este, como todas as coisas, venha de Deus, e aquele seja como todas as coisas, mutável: “todo o espírito é também mutável e todo o corpo provém de Deus”[8].
Deus criou todos os bens, grandes ou pequenos, melhores ou menos bons, de acordo com a natureza que Agostinho define em modo, espécie e ordem (“onde não existem, nenhum bem existe”[9], porque não há nenhuma natureza). Todas as naturezas são boas (veja-se esquema explicativo abaixo), e só por corrupção, isto é, só na ausência de modo, espécie e ordem, poderá surgir algum mal.
O Bem Supremo, isto é, Deus, não pode ser corrompido. Tudo o resto, porque ordenado pela natureza, pode ser corruptível, apesar de ser um bem. Afinal, sustenta Agostinho, só um bem é corruptível. Aliás, mesmo enquanto natureza corrompida, é ao mesmo tempo boa e má: boa enquanto natureza, má enquanto corrompida: “diz-se má a natureza que está corrompida, pois que a natureza incorrupta é boa. Mas, mesmo a natureza corrompida, enquanto natureza, é boa, só enquanto corrompida é que é má”[10], ou “em nenhuma natureza existe o mal, mas apenas uma diminuição no bem”[11].
Ora, apesar de deus criar tudo o que existe, criou-os com características diferentes, e por isso mesmo, com consequências diferentes no que diz respeito à corrupção, isto é, à manutenção do bem ou à sua diminuição. Assim, as coisas não racionais[12], que são um bem em si mesmas, mantêm-se no bem pela ordem e só a corrupção da ordem, que não depende da vontade, causa o mal[13].
Por outro lado, os espíritos superiores, foram criados com a graça de não poderem ser corrompidos contra a sua vontade. Ora este é um ponto fundamental na crítica ao maniqueísmo, pois este, ao apresentar o mal como uma substância não criada que age por si mesmo, afasta do homem a culpa do mal, e por isso mesmo, o pecado. Para Agostinho, nesta sequência, se o homem se corrompe, isto é, se os espíritos superiores se corrompem, é por sua vontade livre, por sua culpa. É o mau uso dos bens, que provêm de deus, que leva ao pecado. Sem bens, diga-se outra vez, não há natureza. E que bens são estes? Agostinho elenca a vida, o poder, a saúde, a memória, a inteligência, a tranquilidade, a virtude, a abundância, a sensibilidade, a luz, a harmonia, a medida, a beleza e a paz, e todas aquelas que derivarem destas, sejam elas grandes ou pequenas, sejam espirituais ou corpóreas.
A saída do pecado, da culpa, poderá ser uma de duas: a melhor, em que o homem se confessa pecador e se converte, é perdoado pela bondade de deus; a segunda, necessariamente pior aos olhos do homem, mas não menos justa da perspectiva de deus, é o juízo divino que imporá um castigo de qualidade e intensidade que o espírito do homem não pode, de facto, compreender. Se do ponto de vista do homem pode parecer o castigo divino uma injustiça, já que é ele que sofre o castigo, do ponto de vista de deus é apenas justiça[14], para mais porque a natureza está melhor ordenada para que o homem “sofra justamente [o castigo de deus, por sua culpa,] do que goze impunemente no pecado”[15]. De qualquer modo, seja na conversão e no perdão ou no castigo divino, há sempre qualquer coisa de natureza que permanece, e por isso, há sempre algum bem.
Não é demais voltar a sublinhar, que nesta visão que Agostinho apresenta no De natura boni liber, nunca há qualquer coisa que seja puramente mal. Há sim, uma diminuição de bem que implica sempre que há qualquer coisa de natureza que se mantém. Se tivermos o desaparecimento de bem, isto é, de natureza, não poderíamos ter qualquer mal, pois nada teríamos.
Agostinho também passa pela questão da dor, visto estar sempre associada ao mal. Veja-se o esquema abaixo:
A dor é, assim, para Agostinho uma das “naturezas boas”[16] e, quando impele a resistência para o melhor, acaba por tornar o mal num bem.
[1] Ou essência. Cf. Carvalho, Mário Santiago de – “Introdução”. In: Medievalia: textos e estudos, nº 1 (1992), p. 9.
[2] Usamos a edição portuguesa de Mário Santiago de Carvalho, que tem a vantagem, para nós, de ser uma edição bilingue: Agostinho – “A natureza do bem”. In: Medievalia: textos e estudos, nº 1 (1992), pp. 36 – 97. Utilizaremos a sígla NB neste capítulo para designar esta obra, seguida do número da página. Em alguns aspectos mais concretos utilizaremos também a numeração do parágrafo.
[3] Dividida em quatro partes (Tema §1-2; Ordem da razão §3-23; Ordem da autoridade §24-47; Epílogo §48 – veja-se Carvalho, Mário Santiago de – “Introodução”. In: Medievalia: textos e estudos, nº 1 (1992), pp. 33 – 34.), é sobretudo a partir do §40 que Agostinho se dedica, quase exclusivamente à crítica aos maniqueus. No entanto, não nos é necessária aqui a exposição dos elementos maniqueios, quee expusemos atrás, nem nos parece interessante reler esses parágrafos, a não ser que forneçam alguma luz à teoria de Agostinho sobre a natureza do Bem. De facto, é claramente perceptível pela exposição, que Agostinho difere dos Maniqueus em praticamente tudo.
[4] Para Agostinho a mudança permite passar do ser ao não ser e isso seria impossível em Deus. Cf. NB, § 19, p. 55.
[5] NB, p. 37.
[6] Esta mutabilidade vem do ser criado a partir do nada Cf. NB, §10, p. 47.
[7] NB, p. 41.
[8] NB, p. 39.
[9] NB, p. 41.
[10] NB, p. 43. Não nos parece que Agostinho tenha tirado todas as ilacções deste pensamento. O pensamento completo seria: não existe mal quando não há natureza (modo, espécie e ordem), a natureza só corrompida é má, e ainda assim mantém, porque natureza, a sua parte de bem,
[11] NB, p. 51.
[12] A corrupção do corpo (que em Cristo não se dá) é dita por Agostinho como putrefacção, que aumenta com a diminuição do que é bom. Se essa putrefacção absorvesse tudo deixaria de haver natureza, isto é, a corrupção tem de se dar em algo onde existe algum bem (Cf. NB, § 20, p. 57).
A questão da forma informe, da ὕλη grega, Agostinho trata-a à parte (§ 18) tentando demonstrar que é boa porque tem a capacidade da forma, isto é, de ser outra coisa. Por exemplo, o mármore tem a capacidade da forma de um David (exemplo nosso). Em comparação com um bem superior, a Sabedoria, Agostinho dirá: “porque assim como a sabedoria é um bem ninguém duvida que um ser capaz de sabedoria seja bom” (NB, p. 53). É portanto pela capacidade que a ὕλη é algo de bom.
[13] Agostinho comparará o homem ao símio: a natureza do homem é maior do que a natureza do símio, e se olharmos para a questão da forma poderemos dizer que o homem é perfeito e o símio disforme, quando comparado com a perfeição do homem. No entanto, tanto é um bem a forma perfeita do homem, como a forma aos nossos olhos disforme do símio, pois esta é bela na sua proporção e corruptível (logo um bem). NB, §14, pp. 49-50.
[14] No fundo, o castigo da justiça propriamente humana, segue o mesmo princípio.
[15] NB, p. 47.
[16] NB, § 20, p. 55.
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