Não deixa de ser um paradoxo que justamente as pessoas reflexivas, profundamente preocupadas com o aprimoramento intelectual e moral, portanto, com o agir bem, o que supõe ser melhor para si e para o próximo; não deixa de ser um paradoxo que sua jornada se acompanhe de um pendor à solidão. Acredito, porém, que este é um labirinto com saída.
Todos os homens estão submetidos ao império da necessidade. Somos seres de carne e osso atrelados à ordem da natureza e, consequentemente, sujeitos ao plano da necessidade. Temos fome. Temos frio. Temos medo. Temos doenças e dores lancinantes. Somos seres de natureza limitada, permanentemente sujeitos à ordem que nos abrange. Daí que boa parte de nossa vida consista em responder ao império das necessidades.
Sucede-nos, contudo, não estar reduzidos a essa dimensão. Algo dentro de nós reivindica nossa atenção e, mesmo invisível, revela-se profundamente forte, a ponto de capacitar-nos a recusar, por livre e espontânea vontade, o plano das necessidades. Temos desejo. Mas somos capazes de conter o pendor ao desejo. Sentimos muita sede, mas temos a capacidade de nos abster de água para ceder a vez a alguém mais frágil e menos capaz de conter-se. Temos medo, um profundo medo de tudo o que nos ameaça, mas encontramos força dentro de nós para confrontar temores e afastá-los. Somos seres sujeitos ao império da necessidade aptos, por outro lado, a nos libertar dos grilhões desse domínio. Somos seres capazes de educar a vontade, contendo o ímpeto de corresponder ativamente a cada desejo que surge.
Parte considerável dos seres-humanos passa a maior parte de seu tempo presa ao impulso infinito de corresponder aos reclames do desejo. Reagir à dimensão da necessidade, mesclando sua percepção de fantasias a respeito da extensão do que se julga “necessidades”.
Há, contudo, seres humanos incrivelmente comprometidos com a educação da vontade, passo fundamental para a conquista do voo livre, essa habilidade propriamente humana de sobrevoar a existência e tocar a eternidade do mundo, ainda que por clarões descontínuos e com os auxílios de mentes privilegiadas, cuja obra, sólida sombra de sua alma, guardou-lhe o vigor de ciceronear almas menores pelo paraíso do conhecimento. Há entre nós pessoas que amam a liberdade, experiência máxima da força peculiar ao espírito, sede da consciência.
Todos os homens estão submetidos ao império da necessidade. Há pessoas que amam a liberdade intrínseca ao estudo e à reflexão.
Não é difícil aferir, no final das contas, porque os amantes da liberdade, os cultores da consciência e da reflexão profunda, sentem-se solitários a maior parte do tempo: não experimentam cumplicidade com aqueles que, entretidos o tempo inteiro com a dimensão do desejo, parecem presos a uma superfície e ineptos a vislumbrar a beleza panorâmica da paisagem, aquela visível apenas a quem conquistou a arte do voo livre – a arte de aproximar-se da alma, como disse Platão.
Breve, em seu voo livre, aptos a ser melhores para todos ao seu redor, acabam, paradoxalmente, afastados desse derredor.
A saída do paradoxo? Um gesto que chamo silêncio compreensivo. Não o inventei. Observei-o no olhar dos monges em convivência com seu rebanho. Sendo monges, têm uma experiência de Deus incrivelmente mais profunda e complexa que qualquer boa alma que o siga. Mas é justamente por eles que cultiva essa proximidade, razão pela qual seria absurdo perder com eles a cumplicidade típica do universo amoroso, cujo horizonte maior é a caridade. Então mantém-se atentos ao seu coração, sem perder contato com o do próximo. Uma contemplação compreensiva da essência humana se torna a ponte entre o coração sóbrio e o desesperado. Eis o exemplo que me parece apropriado a toda pessoa às voltas com o paradoxo do aprimoramento moral.
Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2022
fonte: https://revistaesmeril.com.br/bruna-torlay%E4%B8%A8o-paradoxo-do-aprimoramento-moral/
Obrigado pela visita, volte sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário