A ESCRITA E AS OUTRAS LINGUAGENS [1]
Maria Sílvia Cintra MARTINS [2]
■ RESUMO: O presente artigo tem como objetivo propor uma ampliação da reflexão em torno do acesso à linguagem escrita. Nosso enfoque centra-se em crianças que se encontram no limiar da idade escolar e se baseia em algumas idéias centrais defendidas por psicólogos pertencentes à Escola de Vigotski a respeito da escrita e da exploração pedagógica do faz-de-conta infantil. A partir delas e do ponto de vista da Lingüística, propomos entender a linguagem presente no faz-de-conta infantil como uma dentre outras linguagens que devem ser exploradas quando se tem como meta a aquisição da linguagem escrita. Simultaneamente, propomos que a escrita seja mais enfaticamente enfocada como uma linguagem, e não como transcrição da língua falada, ou, mesmo, como uma representação de segundo grau, apenas. Nesse sentido, compreendemos, na linha da Teoria da Enunciação desenvolvida pelo lingüista francês Antoine Culioli (1990), que o ser da linguagem abrange outras dimensões, além da representação propriamente dita.
■ PALAVRAS-CHAVE: Aquisição; linguagem; escrita; oralidade; internalização; faz-de- conta; escolaridade.
Pretendemos desenvolver uma reflexão em torno das relações entre pensamento e linguagem, e entre linguagem e escrita, de modo a ampliar o escopo da conceituação que se formou, nos últimos trinta anos, a respeito do processo de alfabetização.
É com base no construtivismo piagetiano, adotado por Emilia Ferreiro em pesquisas desenvolvidas na Argentina e no México (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985), que se costuma desenvolver a linha de trabalho que leva em consideração as diversas etapas de formação de hipóteses, por parte das crianças, a respeito do processo de alfabetização. Nesse sentido, é comum que se levantem duas perguntas básicas a serem respondidas, quando se busca compreender como se dá a alfabetização, de tal modo a interferir em sua aquisição de forma competente.
“O que a escrita representa?” Esta primeira pergunta visa chamar a atenção para o fato de que a escrita é um simbolismo de segundo grau, ou seja, a escrita não representa diretamente o mundo da realidade objetal; em vez disso, representa a linguagem oral que já é, por si mesma, uma forma de representação.
“Qual a estrutura do modo de representação da escrita?” Com base nesta segunda pergunta, trata-se de apontar para as diversas hipóteses pelas quais a criança passa antes de atingir o grau alfabético próprio da linguagem escrita adulta.
Nesse sentido, cabe observar que a criança passa, num primeiro momento, por um período de indecisão entre o desenho e a escrita propriamente dita, uma vez que parte de representações icônicas e, apenas gradativamente, o predomínio do desenho vai cedendo espaço para o simbolismo gráfico de base alfabética. Este estágio é denominado pré-silábico.
À medida que avança em suas hipóteses a respeito do que a escrita representa, a criança transita para estágios às vezes híbridos em que, num primeiro momento, as letras passam a representar sílabas, de modo que, por exemplo, para representar a escrita de “gato”, a criança escreverá “AO”: neste caso, cada unidade gráfica diz respeito a uma unidade percebida pela pronúncia de uma sílaba.
O nível alfabético desponta como uma fase final de um longo percurso no qual o professor poderá exercer influência, desde que se dê conta de todo esse trajeto e de seu significado em termos cognitivos.
É nesse âmbito, aliás, que se insere a proposta de um rico “ambiente alfabetizador”: é necessário pôr a criança, seguidamente, em contato com o mundo letrado, motivá-la, ajudá-la na construção de suas hipóteses, de forma a evitar estagnações em determinados estágios e, ainda, com as devidas cautelas, provocar acelerações. Compreende-se, dessa maneira, que o educando deva sentir “necessidade” de se alfabetizar: vê-se a “necessidade” como mola propulsora do processo de aprendizagem, no sentido da necessidade que o educando passa a sentir de se inserir no mundo letrado.
É interessante notar, de toda a maneira, que, embora, via de regra, se proponha o acesso da criança a recursos diversificados, com a exploração de jogos e do trabalho em torno de projetos, o enfoque centraliza-se, na maioria dos casos, na aquisição da linguagem escrita, sem muita ênfase nas demais linguagens, e, de resto, sem a compreensão adequada da escrita enquanto linguagem, e não como transcrição ou representação da fala, apenas. Cabe, ainda, observar um universo cognitivo que se centra, preferencialmente, no aspecto intelectivo, ou seja, na formação de hipóteses racionais a respeito da escrita.
Nesse sentido, o Sujeito piagetiano a quem Emilia Ferreiro se refere é fundamentalmente um sujeito cognoscente:
[...] o sujeito cognoscente, o sujeito que busca adquirir conhecimento, o sujeito que a teoria de Piaget nos ensinou a descobrir. O que quer isto dizer? O sujeito que conhecemos através da teoria de Piaget é um sujeito que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia, e trata de resolver as interrogações que este mundo provoca (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985, p.26).
Essa tendência evidencia-se, por exemplo, quando se aponta para um trabalho pedagógico em que o educador convoca suas crianças para a lousa onde lhes pede que escrevam certas palavras e mostrem “com o dedinho” que seqüências representam quais sonoridades. Muitas vezes, as próprias crianças se dão conta de certas contradições e se corrigem, quando, por exemplo, o percurso do “dedinho” fica aquém ou além dos símbolos gráficos. Outras vezes, é o educador quem as provoca, através de perguntas que trazem à tona as inadequações entre a linha da fala e a da escrita.
Admite-se, de toda a maneira, na linha de trabalho baseado no construtivismo, assim como no que vem se denominando o pós-construtivismo, que o trabalho pedagógico com as crianças em fase de alfabetização não se restringe a isso, aludindo-se a toda uma outra amplitude – e é esta que, de alguma forma, vamos tentar explorar, dentro da certeza dos acertos presentes na teorização que vimos expondo, porém na convicção de que é necessário ampliar a reflexão em torno das perguntas propostas, de forma a fornecer base teórica consistente para a necessidade da inserção do trabalho com a linguagem escrita dentro do âmbito das múltiplas linguagens infantis.
Já nos chegam ecos das “Cem Linguagens da Criança”, fruto da experiência italiana em Reggio Emília (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999), que leva em consideração, não só o construtivismo piagetiano, mas, também, as conceituações do psicólogo russo L.S.Vigotski e do educador francês Célestin Freinet. Compreendemos, no entanto, que cabe explicitar os fundamentos teóricos que estão por trás da necessidade da exploração dessas múltiplas linguagens, e extrair deles todas as suas conseqüências, para que não aportem em nossas praias como mais um dos múltiplos modismos em educação que, muitas vezes por serem mal compreendidos, não podem ser aplicados com a necessária eficiência. Além disso, a falta de fundamentação teórica explícita costuma conduzir a uma colagem muitas vezes inadequada de conceituações contraditórias: forma-se uma colcha de retalhos em que fiapos de teorização vigotskiana convivem, sem conflito, com o construtivismo piagetiano, para fornecer um exemplo apenas.
A nova edição para a língua portuguesa, datada do ano de 2001, da obra principal de L.S.Vigotski, agora com o título “A Construção do Pensamento e da Linguagem”, traz uma versão mais detalhada e completa do pensamento do psicólogo russo. No entanto, sem a necessária percepção da complexidade teórica desse pensamento, esta versão mais prolixa terá pouco a acrescentar. É certo que uma edição mais bem cuidada é sempre proveitosa para o pesquisador atento e disposto a ingressar num mundo teórico que envolve uma lógica de pensamento diferente da racionalidade a que está acostumado; mas também é certo que, sem a percepção dessa lógica de base, poucos avanços poderão ser feitos no sentido de superarmos a visão mais superficial que assimilamos a respeito desse pensamento.
Normalmente, o que temos feito é adicionar ao construtivismo piagetiano uma visada voltada para a socialização, para a interação, enfatizando a aprendizagem coletiva e compartilhada: “ninguém aprende sozinho” é um lema presente em qualquer manual que se queira moderno. [3]
Vamos propor um aprofundamento na teorização vigotskiana, primeiro no sentido de compreender melhor o que são as tais etapas de alfabetização à luz desse pensamento; num segundo momento, no sentido de ampliar nossa compreensão da escrita enquanto linguagem.
Vimos que a conceituação provinda da escola piagetiana prevê a travessia de um percurso que envolve diferentes hipóteses com relação à representação escrita e compreendemos que a constatação da existência dessas etapas de aprendizagem decorreu da observação de como as crianças aprendem a escrever. Adquirimos, com isso, a valorização de diferentes formas de representação, que deixam de ser consideradas simplesmente discrepantes, para serem compreendidas como passos construtivos, rumo à etapa final do nível alfabético de escrita.
Embora fique clara a existência dessas etapas, percebemos, no entanto, que falta, ainda, uma explicitação de por que, afinal, as coisas se dão assim e não de outra maneira, de modo a termos uma visão mais global do universo cognitivo infantil, que sirva como pano de fundo explicativo, tanto para as etapas que a criança atravessa no processo de sua alfabetização, como para a elaboração geral de sua linguagem.
Piaget (1959) faz referência ao pensamento sincrético infantil, de caráter sintético, e à evolução gradual, primeiro para o pensamento por complexos, depois para a elaboração de operações formais, fato que já dá, em parte, conta do que se passa no universo cognitivo infantil na passagem da idade pré-escolar para a escolar, e nos ajuda a compreender, também em parte, a ocorrência primeira do nível silábico de representação gráfica, a ser substituído pelo nível alfabético, analítico por natureza. Ou seja, essa manifestação gráfica que se revela na escrita e faz com que a criança pareie uma expressão sonora de base silábica com uma letra apenas, para somente mais tarde ser capaz de parear fonema com grafema, tem a ver com sua transição cognitiva global, a partir de um pensamento sintético para um pensamento analítico.
Se comparamos, no entanto, essa forma de ver as coisas dentro do enfoque piagetiano com seu contraponto vigotskiano, deparamo-nos com uma complexidade muito maior a envolver os fatos e a interligá-los, o que traz à tona o caráter relativamente discreto e analítico da visão piagetiana, que prevê uma certa linearidade no transcurso das etapas e não põe em cena a inter-relação complexa entre as diferentes linguagens. Quando a criança que já ensaia transitar para o nível alfabético apresenta um tipo de retrocesso rumo ao nível silábico, isso á chamado apenas de hesitação – o que denuncia o fato de que são enfocados elementos de superfície, sem serem devidamente compreendidos os mecanismos lingüísticos e cognitivos subjacentes.
Vigotski (2001), em contrapartida, aponta para a relação complexa, dialética e processual, que se dá entre linguagem e pensamento. Já prestamos atenção suficiente para os momentos em que afirma que, em princípio, pensamento e linguagem são processos independentes, cujas linhas de desenvolvimento se cruzam e voltam a se separar? Já prestamos atenção suficiente, quando postula uma dialética entre termos antagônicos, que apresentam trajetória diferenciada e se complementam dentro desse antagonismo? Já nos detivemos para ler e reler e tentar compreender o trecho em que afirma que a criança faz uso da linguagem, num primeiro momento, dentro de uma compreensão global, e que só paulatinamente vai tendo uma compreensão mais analítica das partes? Já abrimos suficientemente os olhos quando passamos pelo trecho em que afirma que justamente por serem antagônicos é que os processos que envolvem pensamento e linguagem se dialetizam: o pensamento atravessa um percurso que vai do particular para o geral, enquanto que a linguagem atravessa o percurso oposto, do geral para o particular?
É muito difícil, na verdade, captar toda a complexidade desse pensamento e as inúmeras conseqüências que envolve, daí nos determos, com freqüência, em aspectos mais palpáveis dessa conceituação, como naquele que diz respeito à socialização. No entanto, é aí, nesse movimento processual e dinâmico entre pensamento e linguagem e entre o todo e suas partes que reside o pano de fundo para aquilo que a criança manifesta na superfície do papel no processo de aquisição da escrita.
Mas que diferença faz saber ou não saber disso, se na prática estamos diante de letras que reproduzem sílabas antes de representarem fonemas?
Faz diferença, porque aponta para um processo global, que não diz somente respeito à escrita e que, portanto, não precisa, necessariamente, ser ativado através da escrita. Em outros termos: o percurso que tem como ponto final a aquisição da escrita alfabética não passa única, nem necessariamente pela escrita. É possível chegar-se a ele sem todos esses grafismos que temos convencionado incentivar. É possível chegar-se a ele – e, ainda, de forma mais completa e mais competente - sem ter o lápis e o papel direcionados explicitamente para esse lado.
Nesse sentido, a constatação das fases de alfabetização pode se dar, eventualmente, de forma diagnóstica, e não com a insistência conferida a um procedimento pedagógico. Não será, ao final das contas, igualmente exaustivo e enfadonho dedicar-se a traçar letras e acompanhá-las “com o dedinho”, quanto exercitar-se nas “ondinhas” e em outros procedimentos de coordenação refutados pela pedagogia moderna?
É certo que avançamos quando abrimos mão dos exercícios caligráficos em busca de razões mais profundas para o ato de escrever, mas precisamos – assim nos parece – avançar mais, em busca de algo como o que Célestin Freinet (1977) denominou seu “Método Natural”. Não nos parece natural incentivar as crianças nos exercícios de coordenação, mas, tampouco, incentivá-las a arriscar hipóteses seguidas sobre a escrita. E, é claro, nossa motivação em busca de outro enfoque, ou de um enfoque mais amplo para o trabalho com alfabetização, dá-se, além disso, em face de um quadro ainda reconhecidamente insatisfatório nos índices efetivos de alfabetização.
Nesse sentido, além da convicção de que podemos e devemos motivar a escrita por caminhos que conduzam, igualmente, a um desenvolvimento do universo cognitivo e categorial infantil, cabe, ainda, compreender melhor de que forma se dão e se relacionam as diferentes linguagens, mesmo porque, apresentando-se a escrita como uma dentre as diversas linguagens, podemos imaginar um caminho bem sucedido rumo à escrita alfabética pelo recurso consciente e metódico às outras linguagens.
Podemos, hoje, dizer que o enfoque piagetiano coaduna-se com um modelo epistemológico descontínuo, enquanto que Vigotski adota um modelo contínuo de abordagem dos fatos. Essa constatação traz à tona uma diferença muito mais marcante entre os dois pesquisadores, do que supusemos no passado. É assim que as linhas de Piaget falam de uma evolução progressiva em que as etapas vão sendo vencidas e substituídas por outras, o mesmo se dando com relação ao universo semiótico, no qual a criança transitaria da imitação, para a fala oral, para o desenho e para a escrita. Não se postula, de forma mais decisiva, uma inter-relação entre essas linguagens, nem se cogita, com a ênfase necessária, em fatores de retenção na passagem de uma para outra linguagem.
Conhecemos bem a divergência de Vigotski (2001) com relação à maneira como Piaget encara a linguagem egocêntrica, embora nem sempre tenhamos prestado suficiente atenção para o fato de que, enquanto Piaget (1959) fala da superação do egocentrismo à medida que a criança se socializa, Vigotski (2001) contrapõe-se, dizendo que o percurso é contrário, do social para o individual, o que tem a ver com um dos princípios básicos de sua Escola: a postulação de que tudo o que somos individualmente vivemos antes no âmbito social, ou seja, os processos intra-psicológicos têm fundamento inter-psicológico.
Dessa maneira, se Piaget (1959) fala na progressiva superação da fala egocêntrica e na sua substituição pela fala internalizada (ou pensamento verbal), Vigotski (2001) aponta, não para a substituição, mas para um desenvolvimento complexo em que, mais uma vez, elementos complementares se antagonizam.
A fala egocêntrica já não é vista de forma compartimentada, estanque, como um tipo de excrescência a ser expelida e superada, mas como a mediação necessária entre a fala social e o pensamento verbalizado individual. Superficialmente, pode parecer que é tudo a mesma coisa, porém, mais uma vez, estamos diante de processos cognitivos significativos, que vale a pena conhecer melhor, para saber lidar com eles com mais eficácia.
Um primeiro aspecto que se destaca, quando vemos a fala egocêntrica como algo que vai, progressivamente, sendo internalizado, é o fato de que ela precisa existir, precisa se diferenciar, para poder, gradativamente, silenciar-se. Outro aspecto para o qual Vigotski (2001) nos alerta, com base em suas pesquisas com crianças em idade pré-escolar, é o fato de que a fala egocêntrica também evolui, apresentando-se, primeiro, de forma muito semelhante a sua manifestação oral de caráter social, para, paulatinamente, ir adquirindo caráter sintético e predicativo, o que aponta para a construção simultânea e também paulatina do seu contraponto cerebral: ou seja, algo vai se construindo internamente, de tal forma que, externamente, a linguagem oral já pode carecer de certos elementos anteriormente verbalizados.
Restam as perguntas: como fica essa elaboração mental em crianças que não tenham o incentivo devido à fala egocêntrica? Como se manifesta a própria fala egocêntrica na ausência de maior socialização? Em que medida o incentivo à oralidade pode contribuir para o desenvolvimento do universo cognitivo infantil?
É diante dessas perguntas, que se delineia uma possível relação, também complexa e processual, entre oralidade e escrita: será que crianças que manifestem elaboração oral precária não terão o acesso à escrita dificultado?
Conhecemos a tese polêmica de Bernstein (1972), do “déficit cultural”, veementemente criticada. Para o autor, classes sociais diferentes apresentariam códigos lingüísticos diferenciados, mais ou menos elaborados, o que pode resultar em diferenças no desenvolvimento cognitivo.
Mary Kato (1987, p.124), por outro lado, faz referência ao estudo de Kroll, na Inglaterra, segundo o qual a elaboração lingüística oral de crianças em idade pré-escolar tem pouca relevância para o acesso à escrita, o que levou o autor a apontar para outros aspectos relevantes, como a consciência da escrita que a criança traz para a escola. Emilia Ferreiro posiciona-se de forma semelhante, quando defende que o importante é levar a criança à consciência do que faz com a linguagem quando fala: “ajudá-la a tomar consciência de algo que ela sabe fazer, ajudá-la a passar de um ‘saber fazer’ a um ‘saber acerca de’, a um saber conceitual” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985, p.281).
O certo é que a Psicolingüística contemporânea comporta o ingrediente inatista que herdou, por um lado, da teoria psicogenética piagetiana, por outro, da teoria lingüística chomskiana (CHOMSKY, 1965), os dois componentes básicos de que se formou. Nesse sentido, essa questão de uma interferência na linguagem oral com vistas a proporcionar avanços cognitivos e facilitar o acesso à escrita foi-lhe sempre irrelevante: a aquisição da língua materna manifestava-se na dependência de processos de maturação, acreditando-se na existência de uma faculdade de linguagem geneticamente determinada, sujeita a um desenvolvimento relativamente espontâneo. Por sua vez, sendo a escrita considerada um sistema de representação de segunda ordem, e não propriamente uma outra linguagem, uma linguagem diferenciada, parecia que as mesmas expectativas de maturação pudessem ser transferidas para a aquisição da escrita, conforme podemos sentir pelo seguinte trecho de Kato:
Posso supor, assim, que um mesmo equipamento inato que permite à criança interagir com os dados da língua oral lhe dê as condições mínimas para desenvolver sua percepção inicial sobre a escrita. O desenvolvimento para além dessa percepção inicial seria uma função das necessidades e estimulação ambientais, e os vários estágios do desenvolvimento seriam marcados por uma consciência progressiva por parte do aprendiz de seu saber e seus comportamentos (KATO, 1987, p.138).
A teorização de Vigotski (2001), no entanto, nos conduz a outras conclusões. Alerta-nos para a necessidade de se abordar os fatos de forma mais indireta, ou seja: a escrita alfabética envolve o pensamento analítico que, por sua vez, tem a ver com um grau de categorização mais complexo. Não basta entender que é uma representação de segundo grau, no sentido de que não representa diretamente o mundo objetal e, sim, os sons da fala. É necessário entender que, tal qual a moeda corrente, ela necessita ter lastro, um lastro de base cognitiva que, entre outros caminhos, pode ser propiciado pelo incentivo adequado da linguagem oral, como também por um trabalho dirigido com o desenho e com o faz-de-conta infantil.
Acreditamos que caiba ao lingüista comprometido com a educação infantil esta tarefa, de, ampliando os conceitos de linguagem e de aquisição de linguagem, apontar para a inter-relação entre as diferentes linguagens e para a maneira como elas se alimentam reciprocamente. Apontar, também, para a forma com que a aquisição de uma linguagem, por assim dizer, mais genuína, menos asfixiada pela linguagem do outro, passa, necessariamente, pelo incentivo a cada linguagem em seu tempo devido, de tal forma que a irrupção de uma nova linguagem dê-se na medida do esgotamento de sua manifestação anterior. Nesse sentido, a aquisição da escrita passa a ser vista como apropriação de uma linguagem, e não, meramente, como transcrição fonética, uma vez que, assim nos parece, mesmo aqueles que postulam ser a língua escrita uma “representação de segundo grau”, justamente porque não transcendem essa dimensão lingüística da representação, também não conseguem se distanciar o suficiente da visão mais tradicional que vê na escrita apenas a transcrição da fala.
Este fato contém implicações pedagógicas, uma vez que aponta para a necessidade de se incentivar a fala para si mesma, a “fala egocêntrica” da criança que tem por volta dos três anos de idade. Nesse sentido, cabe proporcionar espaços e materiais para que possa, eventualmente, estar só com seus brinquedos e objetos, desenvolvendo aquela sua fala, só aparentemente autista. Dos quatro aos seis anos, essa fala continuará existindo, e o educador atento poderá observar a maneira como vai se tornando progressivamente lacunar ou reticente. Paralelamente, a criança manifestará uma nova linguagem, a linguagem presente no jogo de “faz-de-conta”, o qual tem sido reconhecido do ponto de vista da brincadeira, do jogo, mas urge chamar a atenção, e muito enfaticamente, para o papel e o estatuto de linguagem que se desenvolve no interior dessa brincadeira: linguagem que cabe ao educador incentivar, seja fornecendo à criança espaços e materiais motivadores, seja participando, de forma comedida e discreta, no jogo de seu faz-de-conta.
Esse aparente desvario infantil, em que vemos as crianças como que no ar, sem os pés no chão, no mundo da lua, é de fundamental importância para a ascensão a patamares mais complexos de categorização, o que, entre outros aspectos, significa o incentivo à elaboração progressiva de seu pensamento abstrato. As vozes de fora vão se internalizando para poderem, depois, se externar, num processo complexo e vital, dinâmico, primordial para a aquisição, não só da linguagem, mas da própria personalidade em que coexistem, se imbricam e se antagonizam as vozes do “eu” e do “outro”.
É certo que, se postulamos, com a Escola de Vigotski, a internalização da linguagem verbalizada exterior, cabe, sempre, conversar muito com as crianças e favorecer para que elas conversem entre si. O princípio da imitação, num sentido muito peculiar e complexo, está sempre presente: porém, é necessário vislumbrá-lo de uma forma problemática, em que, se há assimilação, há também rejeição; se há internalização, há a luta e a necessidade de externalização.
Voltamos, com isso, à palavra “necessidade”, agora dentro de outro enfoque. Já não é uma “necessidade” provinda apenas de apelos externos: é uma necessidade que se confronta com o mundo. Veja-se: não se adapta, confronta-se com o mundo – eis aqui uma divergência básica entre os pensamentos de Piaget (1959) e de Vigotski.(2001). Neste, vemos confronto, conflito, problematização, e não movimentos adaptativos ou assimilativos.
É necessário, ainda, diferenciar leitura de escrita, para compreender melhor a profundidade dos mecanismos e anseios psicológicos que estão em jogo. Normalmente, fazemos uma referência global à lecto-escritura, como se constituíssem um único e mesmo processo, mas cabe perceber – algo aparentemente banal – que a leitura vem, preponderantemente, de fora para dentro (mesmo que reconheçamos um movimento processual e construtivo envolvido nela), enquanto que a escrita deve, em princípio, brotar de dentro para fora, como necessidade íntima de manifestação, como linguagem. Freinet (1977), à sua maneira, tinha essa clareza, ao propor o incentivo à correspondência como forma de mobilizar a necessidade afetiva pela escrita.
Falamos que a criança aprende a falar, mas não falamos que aprende a escutar, pois isso parece óbvio demais, parece que esteve lá desde sempre, não foi necessário aprender. Por outro lado, referimo-nos à lecto-escritura, como se leitura e escrita constituíssem um único e mesmo processo. Falar envolve uma certa individualidade, a manifestação de uma personalidade. Atribuímos especial importância às primeiras palavras da criança, porque é justamente nesse momento, quando aprende a falar, que a criança se humaniza, se manifesta mais claramente como “ser humano”. Não percebemos, no entanto, que a escrita merece esse mesmo estatuto de humanização, que ela envolve um novo patamar de humanização.
Nesse sentido, apesar de pretender responder à pergunta “o que a escrita representa”, fugindo a uma prática anterior muito voltada à caligrafia, aos grafismos, ainda a escrita que se tem praticado dentro da escola piagetiana, exatamente por não levar em conta a dialética complexa que envolve o interno e o externo, o eu e o outro, é uma escrita na superfície do papel, que não se coloca enquanto linguagem propriamente dita. Daí as matizes que comporta e que enfatizam a inserção no mundo letrado, e não propriamente o acesso a uma linguagem diferenciada, enquanto possibilidade de manifestação individual. A escrita pode, sim, reproduzir a fala do outro, mas alfabetizar não pode, nem deve se reduzir a essa dimensão pequena da escrita. Nesse sentido, assim como Deleuze (1988) se refere à concepção lingüística estruturalista, com suas oposições binárias diferenciais e negativas, como sendo uma abordagem do “pequeno lado da linguagem”, da mesma maneira, reduzir a escrita a uma representação de segundo grau significa vislumbrar apenas o “lado pequeno” da escrita. [4]
A escrita é uma das manifestações lingüísticas a que temos acesso, e não é fortuito o fato de despontar exatamente no momento da ontogênese do pensamento e da linguagem infantis em que a criança gradativamente abandona, tanto a fala egocêntrica, quanto os jogos de faz-de-conta.
Só temos acesso à parte traduzida do russo dos escritos da Escola de Vigotski, ali onde há referência à transmutação paulatina da fala egocêntrica em pensamento verbalizado, como também à importância dos jogos protagonizados – o faz-de-conta infantil – para a ascensão a patamares superiores de categorização. Sabemos, também, da forma como Vigotski (1991) atribui a pré-história da escrita ao desenho infantil, e da maneira como Leontiev (2001) aponta para a necessidade de pesquisa no sentido de mostrar a inter-relação entre processos afetivos e intelectivos, aos quais atribui igual importância na formação do universo cognitivo. Conhecemos, ainda, a forma como Luria (1986) explora a indicação de Vigotski de que o significado das palavras evolui, desde uma relação mais íntima com o mundo objetal, até vir a fazer parte de um universo auto-suficiente de inter-relações semânticas.
Foi com base nessas indicações que avançamos em nossa pesquisa de base teórica e prática, em contato com crianças em idade pré-escolar, até vir a concluir pela inter-relação, não só da fala egocêntrica com o pensamento verbalizado, mas das diversas linguagens entre si e com o pensamento verbalizado progressivamente abstrato. Compreendemos, nesse percurso, que a escrita pressupõe a internalização, não só da fala verbalizada, mas das pessoas, dos co-enunciadores, de tal forma que o pensamento abstrato que envolve comporta e pressupõe o embutimento do diálogo.
O pensamento não é monológico. As lacunas e o próprio caráter predicativo que lhe é inerente denunciam a presença de um outro; e é esse pensamento dialógico que fornece o pano de fundo para a escrita. Para sua constituição, foi necessário que se internalizasse, de forma problemática e contraditória, a fala egocêntrica que o precedeu; mas foi fundamental, também, que se internalizasse a duplicidade, ou mesmo, a pluralidade de vozes presente no jogo do faz-de-conta infantil.
Através dessa ótica, queremos, entre outros motivos, atribuir ao jogo de faz-de-conta uma dimensão muito mais ampla do que a de uma mera brincadeira, na interpretação lúdica e descomprometida da palavra. Dentro dessa brincadeira, não só se constroem personalidades no sentido alternante de um eu e de um outro. Constroem-se personalidades complexas, que envolvem, problematicamente, o eu e o outro.
E isto não é tudo: cabe ainda falar das palavras propriamente ditas, pois é dentro do faz-de-conta que elas adquirem duplicidade e polissemia. É dentro do faz-de-conta que a vassoura é vassoura, mas é também cavalo; o caixote é caixote, mas é também um barco, e assim por diante. De um sentido monossêmico, as palavras se transformam, como que num passe de mágica, em cabides, em entradas para múltiplas significações.
Vale lembrar, a esse respeito, que, apesar dos avanços mais recentes nos estudos lingüísticos, no sentido de se tentar superar o paradigma estruturalista dominante no decorrer do século XX, ainda prevalece, como que intocado, o eixo fundamental que envolve a conceituação do signo lingüístico enquanto união de um significante e um significado centrada no princípio da arbitrariedade e da exclusão do universo extra-lingüístico. Foi no início do século XX, nos cursos proferidos para os estudantes na Universidade de Genebra, que Ferdinand de Saussure, considerado o fundador da Lingüística contemporânea, estabeleceu uma conceituação algébrica em que os signos lingüísticos adquirem significado – ou valor – através de um jogo de relações recíprocas que atingem, tanto o lado material – o significante -, quanto o aspecto conceitual – o significado do signo -, ficando, de toda forma, excluído do universo da linguagem o mundo objetal das coisas reais.
Essa conceituação constituiu a base da Lingüística estruturalista, que se deteve, preferencialmente, no estudo dos significantes, isto é, das relações entre os fonemas enquanto feixe de oposições distintivas, estruturas binárias elementares, e se estendeu, posteriormente, para as estruturas sintáticas. O interesse pela área da Semântica sobreveio na segunda metade do século, particularmente através da “Semântica Estrutural”, de A. J. Greimas (1973), em que, agora, na linha de pensamento de Hjelmslev, o significado é que passou a ser alvo de análise componencial, porém sempre dentro da exigência básica de se excluir o mundo das coisas reais do campo da investigação e ver a linguagem como um universo estruturado de relações intrínsecas. Ou seja, na sua base, no seu eixo, ainda a conceituação saussureana do início do século é que continuou dominante.
A Lingüística de viés cognitivo vem ensaiando algumas tentativas no sentido de questionar essa tendência analítica, descontínua, e propor, em vez disso, modelos contínuos de investigação. O certo, porém, é que, como o enfoque, via de regra, recai sobre o desempenho lingüístico do adulto, certas discrepâncias e exigências próprias à aquisição da linguagem no universo cognitivo infantil não costumam vir à tona. Assim, embora tenhamos tido acesso a considerações mais complexas, em que se propõem relações transcategoriais que envolvem os eixos semântico, sintático, morfológico e pragmático, sem separá-los, como antes, em compartimentos estanques, e embora se acene para o âmbito cognitivo como parte, também, do universo lingüístico, ainda assim mantém-se o mundo objetal a certa distância confortável, dentro de uma exigência epistemológica de que haja um corte nítido entre o mundo da realidade e o mundo da representação.
Lingüistas cognitivistas, como Culioli (1990) e Fauconnier (1997), apontam para relações semânticas complexas, que fazem com que o item lexical já não possa ser visto de forma isolada, mas envolva um “pacote de relações” ou implique a “integração conceitual”. Ainda assim, como o foco da investigação costuma se centrar na modalidade lingüística adulta, certos elementos característicos da ontogênese da linguagem infantil são desconsiderados.
Já no campo da Psicologia da Educação, Luria (1986) desenvolve o pressuposto vigotskiano de que os significados das palavras evoluem qualitativamente e pondera a respeito da longa história que se dá no processo de aquisição da linguagem infantil. Dentro desse processo evolutivo, as primeiras palavras estão estreitamente ligadas à ação da criança e à sua comunicação com os adultos. Nesse contexto inicial, o significado da palavra depende da situação, da entonação e dos gestos que a acompanham.
Apenas progressivamente, a palavra vai adquirindo autonomia. Assim, até por volta dos dois anos de idade, as palavras possuem caráter difuso e estão fortemente enlaçadas com a prática. É por essa época que a criança começa a adquirir a morfologia elementar da palavra, adicionando, por exemplo, um sufixo que passa a determinar o uso daquela palavra com o valor de substantivo. Nesse mesmo momento, há uma súbita expansão vocabular: “o significado da palavra se reduz e o vocabulário se amplia.” (LURIA, 1986, p.31).
Nesse sentido, Luria pondera:
[...] a observação da ontogênese facilita-nos fatos complementares que permitem considerar que a palavra nasce de um contato simpráxico, separando-se progressivamente da prática, e converte-se em um signo autônomo, que designa um objeto, uma ação ou uma qualidade (e mais adiante uma relação). É neste momento que ocorre o verdadeiro nascimento da palavra diferenciada como elemento do complexo sistema de códigos da língua (LURIA, 1986, p.31).
Conclui, a partir disso e em confirmação da tese de Vigotski, que o significado da palavra se desenvolve, uma vez que, apesar de conservar a mesma referência objetal, a palavra adquire novas estruturas semânticas, ou seja, há uma alteração no sistema de enlaces e generalizações nela encerrados. Junto com esse fato e como decorrência dele, há uma mudança na estrutura sistêmica da palavra: “Ou seja, por trás do significado da palavra, em cada etapa, estão presentes diferentes processos psíquicos” (LURIA, 1986, p.51)
Estes dois aspectos estão intimamente relacionados. No que diz respeito ao que Luria (1986) denomina a estrutura do significado, temos uma progressão desde as etapas iniciais do desenvolvimento infantil, em que o significado da palavra ainda é amorfo, difuso, genérico e não possui uma firme referência objetal: “[...] o significado é muito difuso e, mesmo designando um determinado traço, faz referência a distintos objetos que apresentam este traço comum e se inserem na situação correspondente” (LURIA, 1986, p.49). Nessa etapa, a palavra conserva um estreito vínculo com a situação prática. A partir do momento em que já começa a adquirir uma referência objetal mais estável, há, de toda maneira, uma continuidade na evolução de sua estrutura de significado, no que concerne à sua função generalizadora e analítica.
Junto com a evolução na estrutura do significado, há uma mudança nos sistemas de processos psíquicos que estão por trás da palavra. Assim, na criança pequena, predomina o laço afetivo; na idade pré-escolar, predomina a memória de uma imagem concreta imediata:
Conseqüentemente, no estágio dos conceitos concretos, o papel decisivo cabe aos enlaces situacionais diretos, reais dos objetos e no estágio dos conceitos abstratos, o papel decisivo cabe aos enlaces lógico-verbais, hierarquicamente constituídos. Portanto, o significado muda não só em sua estrutura, mas também nos sistemas de processos psíquicos que a realizam (LURIA, 1986, p.54).
Luria (1986) retoma, também, a concepção de Vigotski segundo a qual a organização do ato voluntário da criança fundamenta-se em seu desenvolvimento lingüístico. A criança passa por uma primeira etapa de desenvolvimento, na qual a mãe dirige-se a ela e orienta sua atenção através de uma série de instruções, como: “pega o balão”, “levanta a mão”, “onde está a boneca?”. Nessa primeira etapa, a criança cumpre instruções verbais para então, na etapa seguinte, começar a dar ordens a si mesma, a princípio em linguagem externa, depois através da linguagem interior. Dessa maneira, a origem do ato voluntário na criança é atribuída à comunicação da criança com o adulto:
No início, a criança deve se subordinar à instrução verbal do adulto para, nas etapas seguintes, estar em condições de transformar esta atividade ‘interpsicológica’ em um processo interno ‘intrapsíquico’ de auto-regulação (LURIA, 1986, p.95, ênfase do autor).
Com base nesse reconhecimento de que a ação voluntária da criança tem origem social e é mediada pela linguagem (e não resultado de desenvolvimento biológico), Luria (1986) aponta para a função pragmática ou reguladora da linguagem. Ou seja, além da função cognoscitiva, a palavra emerge como meio de regulação da conduta. De nossa parte, enquanto lingüistas, é interessante notar que Antoine Culioli (1990) aponta para as três diferentes operações inerentes à linguagem: a representação, a referenciação e a regulação. É sempre difícil ponderar em que medida certa terminologia tem ou não o mesmo estatuto em diferentes autores, mas o que importa, no caso, é acentuar o fato de que a linguagem não se reduz à representação, comportando outros aspectos, outras funções. Nesse âmbito, a função da regulação diz respeito ao aspecto pragmático, àquele aspecto que concerne às pessoas, aos interlocutores e aos papéis que eles comportam. Compreendemos, nesse sentido, que, ao lado da reflexão a respeito da dimensão representativa da escrita, cabe compreender que papéis, que pessoas estão em jogo nessa nova linguagem.
As ponderações de Vigotski (2001) a respeito do inter-relacionamento entre as diferentes linguagens infantis forneceram-nos um pano de fundo para uma reflexão subseqüente a respeito da linguagem que se manifesta no jogo de faz-de-conta infantil, e a respeito dos papéis sociais que comporta e que estarão pressupostos na aquisição da escrita. De forma inédita, Vigotski (2001) estabelece comparações entre a linguagem exterior socializada, a linguagem egocêntrica, a linguagem interior e a escrita, obtendo esclarecimentos num jogo de espelhos dialético em que cada forma de linguagem se faz melhor compreender através do paralelo estabelecido com a outra forma, que, em princípio, pareceria absolutamente díspar, carecendo de qualquer possibilidade de comparação. Além disso, mostra as influências recíprocas entre essas diversas linguagens. É assim que, por exemplo, pondera:
O importante é que, em certas circunstâncias, todas essas peculiaridades podem surgir na linguagem exterior; é importante que isso seja geralmente possível, que as tendências para a predicatividade, para a redução do aspecto físico da linguagem, para a prevalência do sentido sobre o significado da palavra, para a aglutinação das unidades semânticas, para a influência dos sentidos, para o idiomatismo do discurso possam ser observadas também na linguagem exterior, o que, conseqüentemente, a natureza e as leis da palavra admitem e tornam possível. E isto, reiteremos, é para nós a melhor confirmação da nossa hipótese de que a linguagem interior surgiu por intermédio da diferenciação das linguagens egocêntrica e social da criança (VIGOTSKI, 2001, p.473).
Através dessas comparações entre as diferentes formas ou funções da linguagem e da demonstração de sua influência recíproca, Vigotski (2001) combate a teorização tradicional que vê na linguagem exterior uma simples “expressão do pensamento”, uma vez que são, na verdade, funções absolutamente específicas e díspares, fato que não invalida, nem compromete a relação dialética que entre elas se estabelece, mas, ao contrário, é condição fundamental para que se dê essa relação processual. É assim que passa a ser vislumbrado um processo complexo de transformação da linguagem interior em linguagem exterior, que implica
[...] a reestruturação da linguagem, a transformação de uma sintaxe absolutamente original, da estrutura semântica e sonora da linguagem interior em outras formas estruturais inerentes à linguagem exterior. Como a linguagem interior não é uma fala menos som, a linguagem exterior não é linguagem interior mais som. A passagem da linguagem interior para a exterior é uma complexa transformação dinâmica – uma transformação da linguagem predicativa e idiomática em uma linguagem sintaticamente decomposta e compreensível para todos (VIGOTSKI, 2001, p.474).
O autor chama a atenção para o fato de que, aos três anos de idade, há ainda um certo equilíbrio entre a linguagem egocêntrica e a linguagem socializada, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo. Aos poucos, e até atingir os sete anos de idade, vão se modificando as características próprias da linguagem egocêntrica, que vai se tornando, progressivamente, concisa, predicativa e pouco inteligível para os demais. De fato, o que se vislumbra, nesse caso, já são os sinais de germinação de uma nova forma de linguagem, uma vez que essas mesmas características – a tendência à concisão, à predicatividade – são aspectos próprios da linguagem interior.
Dessa forma, em lugar da tese piagetiana para explicar a linguagem egocêntrica com base na teoria da insuficiência de socialização – a criança ainda não teria desenvolvido suficientemente sua fala social e, assim que o faz, a linguagem egocêntrica se extingue - , Vigotski (2001) propõe vê-la como isolamento insuficiente da linguagem para si em relação à linguagem para os outros. Mais uma vez, é a visão dialética, dinâmica, processual que vem à tona:
[...] a linguagem interior não deve ser vista como fala menos som, mas como uma função discursiva absolutamente específica e original por sua estrutura e seu funcionamento, que, em razão de ser organizada em um plano inteiramente diverso do plano da linguagem exterior, mantém com esta uma indissolúvel unidade dinâmica de transições de um plano a outro (VIGOTSKI, 2001, p.445).
É nessa mesma linha de pensamento que propomos enfocar o jogo de faz-de-conta infantil, que se intensifica na faixa etária dos quatro aos seis anos, como uma atividade processual e produtiva, que não se extingue, simplesmente, por volta dos sete anos, dando lugar a outras formas de jogos, mas, ao deixar de se manifestar externamente, mantém, ainda, marcas na linguagem infantil que se internaliza. Nesse sentido, se vale a pena ver a linguagem egocêntrica em sua transição dialética, com transformações qualitativas, rumo à constituição da linguagem interior, sem com isso significar, simplesmente, o silenciamento da voz externa, também valerá a pena compreender melhor a estrutura lingüística presente no jogo de faz-de-conta infantil, assim como suas formas de desdobramento desde seu aparecimento até o limiar da idade escolar, para dar conta, principalmente, do elemento dialógico que, conforme acreditamos, permanece na linguagem interior, fornecendo subsídios para a aquisição da escrita.
Com vista a um aprofundamento futuro desses aspectos, queremos apontar para o fato de que são certas semelhanças estruturais entre a linguagem que as crianças praticam no decorrer dos jogos de faz-de-conta e a estrutura da linguagem sinsemântica apontada por Luria (1986) que nos levam a ver nessa função da linguagem infantil uma fase importante para o acesso à linguagem conceitual adulta, passando, através de transições complexas, pela constituição da linguagem interna. Trata-se de enfocar o jogo de faz-de-conta infantil do ponto de vista da linguagem que comporta e de estabelecer paralelos entre essa manifestação e a transformação progressiva da linguagem infantil: tanto exterior, quanto interior; tanto verbalizada, quanto escrita.
Um primeiro aspecto que se apresenta para comparação está na forma como sentido e significado se manifestam. Leontiev (2001, p.128) destaca a maneira como, dentro do faz-de-conta, uma vara, enquanto passa a adquirir outro sentido, mantém seu significado de base: a vara continua a ser vara, dentro de uma conformação simpráxica, enquanto adquire, simultaneamente, um sentido no jogo, passando a ser um cavalo. É dentro da ação do jogo, que envolve objetos e interlocutores, que essa transfiguração se dá, como que por magia, sem que decorra, é claro, de nenhum tipo de ausência ou de alucinação.
Fica nítido, para nós, nessa forma de linguagem, o caráter de transição da estrutura do significado até então dominante, e que se vincula mais diretamente com o mundo objetal, estando na sua dependência, para a estrutura de significado própria da manifestação lingüística adulta, em que as palavras soltam-se do mundo das coisas, adquirindo certa autonomia e independência.
Cabe, ainda, lembrar aspectos reconhecíveis dentro do desenvolvimento progressivo do faz-de-conta infantil, desde a faixa etária dos três anos de idade, até o início da idade escolar, que apontam para uma progressão estrutural reencontrável nas outras formas de linguagem, seja na linguagem exterior, seja na interior, de modo que seria necessário incluir a linguagem que se desenvolve no jogo de faz-de-conta, ao lado das outras linguagens, a fim de detectar com mais clareza a relação dialética complexa e processual aí implicada.
Segundo Elkonin (1998), o aspecto evolutivo mais importante dos jogos é o desenvolvimento do argumento, intimamente relacionado ao papel. Aos três anos de idade, a criança já apresenta um jogo de caráter temático, em intenso desenvolvimento até os sete anos, concomitantemente à aprendizagem gradual do papel que a criança representa numa comunidade infantil. Há, assim, uma passagem gradual (com base no tema e no papel) de ações domésticas (como cozinhar, lavar etc.) para significações histriônicas baseadas nessas ações (“eu sou a mamãe”, “eu sou a cozinheira” etc.).[5] Ao lado dessas ações protagonizadas, aparecem as relações entre as personagens e, finalmente, surge o papel propriamente dito: “A experiência dos jogos demonstra como neles vão surgindo as perspectivas e os planos no lugar das ações casuais e informes [...]” (ELKONIN, 1998, p.239).
As crianças pequenas (três ou quatro anos) examinam, escolhem certos objetos ou brinquedos e passam a manipulá-los individualmente, repetindo ações monótonas e sem se interessar pelo que faz a outra criança. Todo o andamento do jogo resume-se a uma série de ações repetitivas com brinquedos, embora, ao serem perguntadas, costumam atribuir certo sentido a seu jogo, certo argumento, certos papéis (“Estou brincando de jardim da infância”, “Sou a diretora” etc. - ELKONIN, 1998, p.244).
Já as crianças mais velhas costumam entrar em acordo quanto aos papéis a serem executados, seguindo, depois, uma ordem determinada na realização do jogo. O grau de complexidade dos argumentos dependerá dos elementos presentes no jogo e da relação existente entre eles.
Estabelece-se, assim, uma dinâmica complexa que une ações, objetos e palavras, e que sofre uma profunda mudança justamente na idade pré-escolar. Dentro dessa estrutura dinâmica e como pré-requisito para poder inserir-se nela, a palavra impregna-se de todas as possíveis ações com objetos e passa a ser agente desse sistema de ações com objetos. Em jogos com crianças em idade pré-escolar, percebeu-se que, só depois de se impregnar desse sistema de ações, é que a palavra pôde substituir o objeto.
Provavelmente, foram os pesquisadores russos que, na linha de pensamento de Vigotski, levaram mais a fundo a investigação a respeito do faz-de-conta infantil e de sua utilização pedagógica, tendo em vista a formação dos atos mentais e dos conceitos. No entanto, apesar do apelo que fazem ao uso da palavra (que ganha destaque nos jogos, diferentemente do que acontece na linha piagetiana), ainda, ao que nos parece, esta não adquire o lugar central que lhe deveria ser reservado, numa dialética complexa que envolveria papel, ações e palavras.
Compreendemos que cabe ao lingüista essa função, de dar o destaque necessário à linguagem e esclarecer o papel que desempenha nos jogos e no desenvolvimento psíquico da criança, particularmente no momento da transição da idade pré-escolar para a idade escolar; de esclarecer como se relacionam as diferentes linguagens e de chamar a atenção para o estatuto lingüístico da escrita, arrancando-a daquela dimensão pequena, que a vê meramente como transcrição dos sons da fala, e explicitando, ao lado da função representativa, a função pragmática que lhe é inerente.
■ ABSTRACT: This paper enlightens the debate over the way children access writing. The approach focuses on pre-school children, and it is based on the Vigotskian claims on both writing and the use of role-playing for pedagogical purposes. From the point of view of Linguistics, it is claimed that children’s language as practiced when role-playing is one, among other languages, that must be explored when the writing acquisition is at stake. Simultaneously, it is also claimed that writing must be considered a particular language, not the written counterpart of speech, or a parasitic second grade representation. It is emphasized, according to Culioli’s Enunciation Theory (1990), that the essence of language comprises further dimensions other than representation itself.
■ KEYWORDS: Acquisition; language; writing; oral; internalization; role-play; schooling.
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[1] Este artigo foi originalmente publicado na Revista Alfa: Revista de Lingüística, vol.47 (2), 2003. Publicamos aqui com algumas modificações.
[2] Pós-doutora em Lingüística Aplicada no IEL/UNICAMP. Pesquisadora vinculada aos Grupos de Pesquisa “Formação do Professor: Processos de retextualização e práticas de letramento” (IEL/UNICAMP) e “Estudos Marxistas em Educação” (UNESP/Araraquara).
[3] O professor Newton Duarte alerta-nos contra esse perigo de apenas adicionar “uma pitada social no construtivismo”: “[...] não se trata de passar a um construtivismo social ou de trazer o social para o construtivismo, pois entendemos que o construtivismo piagetiano já contém um modelo do social e esse modelo se respalda no modelo biológico da interação entre organismo e meio ambiente. Não se trata de que PIAGET tenha desconsiderado o social, mas de como ele o considerou” (DUARTE, 1996, p.88).
[4] “Quando interpretamos as diferenças como negativas e sob a categoria da oposição, já não estamos do lado daquele que escuta e mesmo que ouviu mal, que hesita entre várias versões atuais possíveis, que tenta ‘reconhecer-se’ pelo estabelecimento de oposições, o pequeno lado da linguagem, não o lado daquele que fala e que atribui o sentido? Não traímos assim a natureza do jogo da linguagem, isto é, o sentido dessa combinatória, desses imperativos ou desses lances de dados lingüísticos que, como os gritos de Artaud, só podem ser apreendidos por aquele que fala no exercício transcendente? ( DELEUZE, 1988, p.329-330).
[5] Não cremos ser mera coincidência o fato de que é por volta do mesmo momento detectado pelos psicólogos russos, aos dois anos de idade, quando subitamente se amplia o vocabulário infantil, que também emerge o uso do pronome pessoal eu para se referir às ações do Sujeito (“eu quero”, em lugar de, por exemplo, “Vinícius quer”).
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