O Brasil é indiscutivelmente um país de contrastes. No momento em que almeja um salto na qualidade de ensino, planeja informatizar todas as escolas até 2010 e investe na formação e na capacitação de professores, cinco mil das 168,2 mil escolas de Educação Básica não possuem acesso a luz elétrica e outras duas mil passam sem água potável.
"As condições estruturais dos prédios escolares é lamentável. Temos escola com infiltração, sem luz, com janelas quebradas, muros caídos, sem laboratórios ou bibliotecas", ataca o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Franklin de Leão. O que poderia ser um discurso mais ácido de um líder de categoria reflete, na verdade, o que uma série de pesquisas realizadas ao longo de 2008 vem acusando. Se os romanos ensinaram há séculos que uma mente sadia precisa de um corpo são, as escolas brasileiras também precisam cuidar do próprio esqueleto, se não quiserem que a busca de melhores resultados acadêmicos esbarre nas limitações estruturais.
Um estudo internacional revelador foi publicado neste ano pela Unesco. Denominada Um olhar para o interior das escolas primárias, a pesquisa comparou dados de diversos países, entre eles os relacionados às condições de ensino. Segundo o informe, em quase 12% das escolas não há lugares suficientes para os alunos se sentarem. O estudo diz textualmente que, no Brasil, praticamente 50% das crianças do 1º ao 5º ano que estudam em escolas da zona rural e quase 25% das escolas urbanas têm aulas em edificações consideradas ruins. Outros 5,5% ficam em escolas que não têm luz. Em um país com quase 56 milhões de matrículas na Educação Básica, sendo 33,2 milhões no ensino fundamental, nenhuma porcentagem é desprezível.
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"Uma escola necessariamente precisa ter luz, água, biblioteca operante", diz a pesquisadora Maria Malta, da Fundação Carlos Chagas |
Básico do básico
Qualquer que seja o ângulo pelo qual se olhe, as escolas brasileiras sofrem, em diferentes graus, pelo abandono. Basta uma consulta ao sistema de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para descobrir que 11.088 estabelecimentos de ensino fundamental simplesmente carecem de sanitário. Dados como esse incomodam, cada vez mais, os educadores. Outro estudo de 2008, desta vez realizado pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e Fundação SM, mostrou que cerca de metade dos professores brasileiros estão insatisfeitos com as instalações, equipamentos e materiais com os quais a escola conta, bem como com o pessoal de suporte. "Não precisaríamos nem estar conversando sobre esse tema; uma escola necessariamente precisa ter luz, água, biblioteca operante", critica a pesquisadora Maria Malta, da Fundação Carlos Chagas e presidente da ONG Ação Educativa. "Trata-se antes de tudo de uma questão de dignidade humana", diz.
É um abacaxi difícil de descascar, pois envolve muitas dimensões diferentes. Pode-se pensar na infra-estrutura predial. A maior parte das escolas brasileiras foi construída nas décadas de 70 e 80, e assim chegam aos 30 anos de uso contínuo e desgastante. Isso faz com que muitas sequer tenham uma malha elétrica com capacidade suficiente para, por exemplo, receber computadores. Para onde se olha, há necessidade de investimentos, como é o caso da falta de acessibilidade para portadores de deficiências. Segundo a Unesco, em quase 95% da rede pública não há rampas ou vias de acesso para alunos e professores com mobilidade reduzida.
A falta de cuidados necessários com a infra-estrutura da escola é produto de um histórico descaso - que gerou as famosas escolas de lata, em São Paulo, eliminadas apenas neste ano -, mas também deriva de distorções, como a valorização absoluta da responsabilidade do professor, em detrimento de suas condições de trabalho. Claro, ninguém em sã consciência discute ainda o papel decisivo do professor na qualidade de ensino. Contudo, muitos estudos realizados, por exemplo, nos Estados Unidos, chegaram a apresentar como inócuos investimentos em recursos materiais. Mas daí a desconsiderar a importância das condições físicas vai um longo passo.
Os estudos que defendem a importância menor dos aspectos materiais não levam em conta a realidade do contexto social em que vivem os alunos. "Uma coisa é você introduzir mais computadores em escolas organizadas, que já utilizam a tecnologia; outra muito diferente é colocar 10 micros em uma escola que não tinha nenhum", coloca o pesquisador Sergei Soares, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea).
No início de 2008, Sergei empreendeu, com a pesquisadora Natália Sátyro, uma investigação para tentar comprovar o impacto dos recursos de infra-estrutura na qualidade de ensino. Utilizando como índice de qualidade a defasagem idade-série e isolando diferentes fatores para a análise, a pesquisa concluiu que a infra-estrutura representa efetivamente um impacto forte. "Uma melhoria de infra-estrutura pode reduzir a defasagem idade-série em 5,7%", diz. Para escolas com grandes defasagens, essa redução pode ser bastante significativa. "Acho que se subestima imensamente, por exemplo, o impacto das bibliotecas, especialmente porque sempre se fala da existência ou não do espaço, mas nunca de como é utilizado", acredita Sergei Soares. A defasagem idade-série média no Brasil, com dados de 2006, é de 28,5% na 4a série, 33,8% na 8a série e 41,3% no ensino médio.
O caso das bibliotecas é mesmo emblemático. Afinal, desde a Antigüidade esses espaços vêm sendo reverenciados como lócus da cultura, da valorização do saber e do prazer em exercitar a imaginação e a curiosidade. Mas, segundo um estudo preparado em dezembro do ano passado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, hoje quase 18 milhões de alunos do ensino fundamental (53,9% do total) e quase 2,7 milhões de jovens (30,2%) do ensino médio simplesmente não têm acesso a bibliotecas. Pior, os dados não levam em conta milhares de escolas que possuem bibliotecas fechadas, por falta de pessoal.
Trabalho em equipe | A Espanha realizou, a partir do início da década de 90, uma reforma educacional que muito influenciou a educação brasileira, especialmente pelas implicações pedagógicas. Segundo Álvaro Marchesi, pesquisador e ex-vice-ministro da Educação da Espanha e um dos responsáveis pela implantação da reforma, um dos seus pontos importantes foi a introdução do apoio de orientadores educacionais e outros profissionais para ampliar o atendimento aos alunos, especialmente aqueles com dificuldades de aprendizagem, e auxiliar os professores a trabalhar com a diversidade cultural. A Espanha é um dos países europeus que vem absorvendo grande número de imigrantes africanos, latino-americanos e das ex-repúblicas soviéticas. "Os orientadores trabalham como equipes interdisciplinares para atender várias escolas ou em departamentos de orientação, nas escolas de educação secundária", explica. Esse é mais um detalhe de um sistema bastante completo. Para que se tenha idéia, uma escola pública de ensino médio espanhola tem, além do diretor, chefe de estudo (e adjuntos), orientadores pedagógicos e conselhos de professores e pais, cujo objetivo é estimular a participação da comunidade. No organograma pedagógico, estão também previstos chefes de departamento e bibliotecários. | |
O dilema rural
No contexto crítico da infra-estrutura, um setor merece especial atenção. Os piores indicadores se concentram nas chamadas escolas rurais. Segundo o Censo Escolas 2006, são quase 91,5 mil escolas de ensino fundamental e médio, municipais, estaduais e, em menor proporção, federais, espalhadas fora dos centros urbanos e concentrando mais de 13% dos alunos - ou 7,4 milhões de crianças e jovens, que estudam em condições bastante precárias. Basta ver que menos de 600 escolas rurais de ensino fundamental possuem laboratórios de ciências e apenas 5,6 mil contam com bibliotecas.
Não por acaso, o Brasil está entre os países da América Latina e Caribe que apresentam maiores diferenças de resultados entre os alunos de escolas urbanas e rurais, ao lado do Peru e do México, segundo um estudo realizado pela Unesco.
"A questão rural é dramática", diz José Marcelino Rezende, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, movimento que articula diversas entidades não-governamentais com propostas de melhoria no ensino público.
Ex-diretor do Departamento de Disseminação de Informações Educacionais do Inep, Marcelino Rezende foi um dos idealizadores, com Denise Carreira, de um parâmetro de investimento em educação que vem dando o que falar. Trata-se do Custo-Aluno Qualidade Inicial (CAQi), uma fórmula de cálculo do custo por aluno que parte não do que é efetivamente gasto, mas do que seria necessário investir para oferecer aos estudantes condições mínimas de aprendizagem.
O índice foi construído ao longo de cinco anos, por dezenas de educadores, a partir das demandas das escolas e, principalmente, do que já está proposto no Plano Nacional de Educação, a Lei 10.172, aprovada em 2001. Recebida como uma conquista da sociedade civil, a lei tarda a sair do papel. Completa e detalhada, prevê até que as escolas devem ter máquinas xerográficas, entre outros equipamentos.
A partir dessas referências, os pesquisadores identificaram o que seria o "kit básico" de operação de uma escola - como quadras esportivas cobertas, salas de professores, laboratório de informática, de ciências, biblioteca com bibliotecário, entre outros itens -, bem como a remuneração mínima de professores e recursos para investimento em projetos de caráter pedagógico, como feiras de ciências, hortas, saídas de estudo do meio, entre outros itens. "Não se trata de condições ideais, mas mínimas", ressalta Rezende.
O resultado dessa conta não chega a impressionar. Em síntese, sugere que as diversas instâncias do poder público deveriam dobrar o gasto por aluno. Enquanto o mínimo previsto pelo Fundeb foi de R$ 946 por aluno em 2007, pelo CAQi esse valor passaria a ser de R$ 1.876 por aluno-ano, não considerando as despesas com alimentação escolar. As maiores diferenças se dão justamente nas áreas mais carentes. Para Marcelino Rezende, cada aluno das escolas rurais deveria custar ao governo perto de R$ 2,3 mil, valor que possibilitaria a recuperação da infra-estrutura e salários diferenciados para professores que se dispusessem a trabalhar em regiões mais distantes.
Depois de criar o índice, o passo seguinte vem sendo tentar convencer as autoridades a aceitar o indicador como um parâmetro de investimento. Um passo importante foi dado no final de setembro, quando o Conselho Nacional de Educação aceitou discutir o índice para, posteriormente, indicá-lo como referência para o financiamento da educação pública.
Mãos à obra
Em meio a esse cenário de decadência, uma boa novidade está em curso na administração pública brasileira. Governo federal, estados e municípios parecem estar, enfim, despertando para a urgência do problema.
No caso do Ministério da Educação, por exemplo, foi retomado um processo denominado LSE (Levantamento da Situação da Escola). Conforme Romeu Caputo, diretor de articulação e apoio aos sistemas do MEC, hoje há perto de 1.000 técnicos e engenheiros das universidades e escolas técnicas federais visitando escolas em todo o país para averiguar o estado físico dos prédios, escrever laudos e elaborar projetos de reforma. Telhados, esquadrias, piso, carteiras, cantinas, enfim, todos os itens vêm sendo analisados. Ainda não há um balanço das vistorias, mas até o final do ano, Caputo espera que todos os dados sobre as demandas das escolas possam ser consultados on-line por qualquer cidadão.
Nos dois últimos anos, o MEC liberou R$ 2 bilhões para infra-estrutura. Está previsto um aumento de investimento, que depende do balanço do LSE. "Sabemos de antemão que boa parte das escolas precisa de melhorias", diz Caputo. Afinal, as escolas estão entre os equipamentos sociais que mais sofrem desgaste pelo uso, pois é um espaço utilizado por centenas de crianças, jovens e adultos, por até 18 horas por dia, e com pouco pessoal de manutenção. "Imagine o que acontece com uma carteira utilizada por 15 horas diárias, ao longo de anos", diz.
"A garantia das condições de aprendizagem passa pelo espaço da escola", ressalta a diretora do MEC e ex-presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Cleuza Repulho. A boa nova, acredita, é que a preocupação das prefeituras com o tema tem aumentado, inclusive para adaptar a escola aos portadores de deficiência. Outro movimento que já se iniciou é a construção de escolas de educação infantil, onde há uma grande demanda sem cobertura.
Preocupação semelhante se verifica no Estado de São Paulo, onde foi criado, em maio, um sistema de manutenção escolar denominado "Sempre", para tornar mais ágil a contratação de empresas para obras escolares. Num processo denominado "Ata de preço", as empreiteiras são pré-contratadas e ficam à espera de ordens de serviço. "Temos já preço para muro, telhado, hidráulica, elétrica, para que não haja atraso", diz a secretária de Estado da Educação, Maria Helena Guimarães Castro.
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Caputo, do MEC: dados sobre as demandas das escolas devem estar apurados até o final do ano |
Embora não haja discordância sobre a necessidade de se reestruturar o sucateado parque de escolas públicas, os especialistas concordam que é preciso ir mais longe. A escola ainda padece da falta de recursos humanos, reduzida a uma estrutura que na maior parte das vezes se restringe a um diretor, um vice-diretor, professores e alunos. Isso faz, segundo as entidades sindicais, com que os diretores se desdobrem em funções administrativas. No site do Sindicato dos Especialistas em Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo (Udemo), os três primeiros itens de um decálogo de instruções de pressão contra as deficiências da infra-estrutura relacionam-se à falta de merendeira, de secretários e de bibliotecários. "Tem diretor que faz merenda, trabalho de secretaria, preenche papéis, tudo menos acompanhar o processo pedagógico", reclama o presidente da entidade, Luiz Gonzaga de Oliveira Pinto.
"A literatura é clara para mostrar que profissionais de apoio são importantes. A pior filosofia que se pode defender na escola é a de Pero Vaz de Caminha, segundo a qual 'em se plantando, tudo dá"', argumenta o pesquisador do Ipea Sergei Soares. "Ou seja, não basta jogar o professor e os alunos dentro da sala de aula e esperar que tudo dê certo", conclui.
Para Cleuza Repulho, do MEC, as escolas brasileiras ainda precisam amadurecer a discussão sobre o quadro mínimo que a escola precisa ter para atender aos seus objetivos. "Não se discute a questão de que a escola precisa de mais gente, mas é preciso saber quem", diz. Segundo ela, o MEC é indutor de políticas, e não pode interferir nas definições de estados e municípios. As redes pretendem fazer novas contratações para os quadros escolares, mas em muitos lugares esbarram na lei de responsabilidade fiscal.
Gente, gênero de primeira necessidade
Segundo a pesquisadora Elena Martin, diretora-geral do Ministério da Educação da Espanha entre 1985 e 1996, as escolas públicas espanholas possuem quadros que incluem, além do diretor, um chefe de estudos, orientador pedagógico, professores de apoio para o trabalho com alunos portadores de deficiências ou com dificuldades de aprendizagem. Além disso, em geral, as escolas possuem uma oficina para realizar os reparos urgentes para manter a boa conservação. No quadro de pessoal, segundo Elena, as escolas possuem também o que chamam de "cuidador", ou seja, um funcionário dedicado especialmente a ajudar as pessoas com mobilidade reduzida, a ter acesso a todos os espaços escolares.
No caso brasileiro, as escolas ainda lutam com problemas como a reposição de professores faltosos e a rotatividade de profissionais. Esse é um dos males antigos que ainda provocam estragos no processo de aprendizagem. Um estudo sobre infra-estrutura recente realizado pelas pesquisadoras Roberta Loboda Biondi e Fabiana de Felício, no Inep, comparou o desempenho dos alunos no Saeb ao longo de quatro anos, e mostrou que as turmas de 4ª série e de 8ª série que não sofreram com a troca de professores ficaram em uma vantagem equivalente a três meses a mais de estudo, em relação a colegas de escolas com alta rotatividade de docentes.
Não é apenas no quadro pedagógico que há lacunas a serem preenchidas. "Temos uma estrutura capenga, os módulos são incompletos e faltam inspetores de alunos, bem como funcionários para a higiene e manutenção, o que cria uma situação muito difícil", reclama Roberto Leão, da CNTE. Segundo o dirigente, a sociedade não percebeu, mas as reivindicações dos professores deixaram de ser voltadas para o aspecto salarial. "Hoje, temos de lutar pela melhoria das condições de funcionamento do ponto de vista da infra-estrutura, do número de pessoas que são necessárias para tocar uma escola e da melhoria geral das condições de trabalho", finaliza.
Infra-estrutura na rede pública |
Ensino fundamental |
Percentual de alunos que estudam em escolas sem biblioteca | 53,9% |
Percentual de alunos que estudam em escolas sem quadras de esporte | 45,0% |
Ensino médio |
Percentual de alunos que estudam em escolas sem laboratório de ciências | 49,6% |
Percentual de alunos que estudam sem biblioteca | 30,2% |
Percentual de alunos que estudam em escolas públicas sem laboratório de informática | 34,8% |
Infra-estrutura na américa latina |
Pais | Eletricidade | Lousa | Lugar para sentar | Acesso à internet |
Argentina | 98,7 | 98,9 | 88 | 22,9 |
Brasil | 94,5 | 99,4 | 88,3 | 22,8 |
Chile | 99,4 | 99,5 | 98,6 | 90,2 |
Paraguai | 96,6 | 99 | 87,4 | 6,5 |
Peru | 76,4 | 98 | 68,4 | 22,1 |
Uruguai | 100 | 99,7 | 85,3 | 36,8 |
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