construcionismo
(draft)
Carlos Nogueira Fino
Universidade da Madeira
2004
As concepções de Vygotsky têm sido frequentemente contrastadas com as de
Piaget, geralmente consideradas bastante atractivas por membros
particularmente inovadores da comunidade educativa. Só que, vista de uma
perspectiva vygotskiana, a concepção piagetiana de aquisição de
conhecimento apresenta sérias deficiências, devendo, por isso, ser
considerada inapropriada para servir de fundo a qualquer intuito de reforma
educacional, a não ser que devidamente supridas. Entre essas deficiências, os
piagetianos são criticados por não darem a devida atenção ao papel dos pares
mais aptos numa determinada cultura, aos artefactos culturais que medeiam a
interacção entre os indivíduos e o seu envolvimento físico e cultural, e ao
contexto histórico-social dos processos de ensino-aprendizagem. Além disso,
os vygotskianos têm vindo a criticar o romantismo que intuem perpassar o
construtivismo centrado na criança dos piagetianos, muitas vezes sem
diferenciarem claramente o que entendem por transmissão de conhecimento.
Como resultado dessa falta de clarificação, a assim considerada concepção
vygotskiana da aquisição de conhecimento por meio de instrução tem vindo a
estabelecer-se de uma forma caricatural, que se pode sintetizar da seguinte
maneira (Hatano, 1993):
- O conhecimento a ser adquirido pelo aprendiz (membro imaturo da
sociedade) está na posse do professor (membro mais maduro),
geralmente sob a forma de um conjunto de habilidades ou de
estratégias de resolução de problemas, tendo a sociedade encarregado
o professor da transmissão do conhecimento.
- O aprendiz é trazido para dentro da situação de instrução para resolver
alguns tipos de problemas em conjunto com o professor. O professor
comunica o conhecimento de uma forma codificada verbalmente (como
um conjunto de comandos ou pares de condição-acção) e demonstra
como se resolvem os problemas usando aquela forma codificada de
conhecimento.
- O professor encarrega o aluno da execução dos passos da resolução
do problema de que é capaz, sendo os restantes executados por si,
tornando-se o papel de suporte do professor menos importante à
medida que o aprendiz vai adquirindo conhecimento.
- Quando o aprendiz se torna apto a resolver os problemas sem ajuda
do professor, considera-se que o conhecimento foi transmitido com
sucesso.
Esta “concepção vygotskiana” não passa, no entanto, de uma concepção
possível entre outras que se podem fundar sobre a ênfase que Vygotsky
1
coloca na origem social da cognição individual, com especial realce para a
ZDP. Até porque o ponto de vista contido nos quatros pontos anteriores se
baseia em assunções empiricistas implícitas e difíceis de sustentar, como as
seguintes:
- o aprendiz tem uma natureza passiva;
- o aprendiz não precisa de compreender o significado das habilidades
ensinadas, nem o conhecimento que lhes subjaz;
- só a interacção com o professor, que é sempre mais capaz que o
aprendiz, facilita a aquisição;
- o professor é a única fonte de informação e de avaliação.
Como é óbvio, estas assunções implícitas não são aceitáveis por serem pouco
plausíveis à luz da evidência que tem vindo a ser acumulada pela investigação
em educação. De facto, a investigação tem mostrado que as crianças, e as
pessoas em geral, são geralmente activas e competentes na sua vida diária e
podem beneficiar de uma variedade de interacções com outras pessoas, em
contextos naturais ou artificiais. Impõe-se, portanto, uma revisão daquela
“concepção vygotskiana”, mesmo no interior de uma perspectiva de
transmissão de conhecimento ou de habilidades. Essa revisão conduz ao que
se poderá denominar de extensão moderada da concepção vygotskiana de
aprendizagem e instrução. Uma tentativa mais ambiciosa será a de expandir
aquela concepção de modo a que ela possa incluir a aquisição de
conhecimento conceptual, expressão utilizada para significar a habilidade dos
aprendizes usarem flexivelmente as habilidades adquiridas e a inventarem
habilidades novas, sendo esse o processo de se tornarem especialistas em
adaptação. A essa tentativa atribui Hatano (1993) a designação de extensão
radical da concepção de Vygotsky, e parte do pressuposto de que, uma vez
que o conhecimento é construído pelos próprios aprendizes, confrontados com
uma variedade de constrangimentos sócio-culturais, os educadores devem
sentir-se encorajados a procurar alternativas à didáctica.
Para substituir as assunções implícitas sobre a natureza do aprendiz, contidas
na “concepção vygotskiana” acima indicadas, o mesmo autor contrapõe as
seguintes, que entende corresponderem a uma concepção vygotskiana
construtivista:
- os aprendizes são activos e gostam de ter iniciativa e escolher entre
várias alternativas;
- os aprendizes são tão competentes como activos na tarefa da
compreensão, sendo possível que construam conhecimento baseado na
sua própria compreensão, ultrapassando esse conhecimento a
informação disponibilizada pelo professor, ou indo mesmo além da
própria compreensão do professor;
- a construção de conhecimento pelo aprendiz é facilitado pelas
interacções horizontais e pelas interacções verticais;
- a disponibilidade de múltiplas fontes de informação potencia a
construção de conhecimento.
Quanto à questão da socio-génese da cognição individual sob um ponto de
vista cognitivista, um bom ponto de partida pode ser a proposta de Resnick
(1987, p. 47), para quem “the environment and the culture provide the ‘material’
2
upon which constructive mental processes will work”1, desde que a natureza
desse material proporcionado pelo envolvimento e pela cultura tenha em
atenção as seguintes especificações:
- o conhecimento é frequentemente construído quando o aprendiz
interage com o professor (ou membro mais capaz), pares, ou artefactos
impregnados com as vozes2 de outros, criando juntamente com eles o
contexto para a interacção;
- através da interacção qualquer coisa é produzida colectivamente e
partilhada entre os participantes. Esta qualquer coisa pode ser um
sistema cooperativo de resolução de problemas, significados e
compreensões discutidos e negociados, senso comum e normas
definindo situações e regulando comportamentos, envolvendo o
processo também componentes sócio-emocionais;
- o aprendiz incorpora essa qualquer coisa gerando, elaborando ou
revisitando o conhecimento;
- o pequeno sistema de interacção face a face, onde decorre o descrito
nas três alíneas anteriores, está mergulhado num sistema mais vasto,
que pode ser uma instituição ou uma comunidade.
E desta forma se sugere uma perspectiva de harmonização e de confluência
entre a teoria sócio-cultural de Vygotsky e o construtivismo construcionista de
Seymour Papert.
É oportuno relembrar que é comum entre os construtivistas a ideia de que o
conhecimento é construído activamente pelos aprendizes, e que educar
consiste em proporcionar-lhes oportunidades de se ocuparem em actividades
criativas, que alimentem aquele processo de construção de conhecimento.
Parafraseando Papert, os aprendizes não aprendem melhor pelo facto do
professor ter encontrado melhores maneiras de os instruir, mas por lhes ter
proporcionado melhores oportunidades de construir. Como já se referiu, a esta
visão da educação deu Papert o nome de construcionismo, teoria segundo a
qual a aprendizagem acontece quando os aprendizes se ocupam na
construção de qualquer coisa cheia de significado para si próprios, quer essa
coisa seja um castelo de areia, uma máquina, um poema, uma história, uma
canção, um programa de computador. Desse modo, o construcionismo envolve
dois tipos de construção: construção das coisas (objectos, artefactos) que o
aprendiz efectua a partir de materiais (cognitivos) recolhidos do mundo
(exterior) que o rodeia, e construção (interior) do conhecimento que está
relacionado com aquelas coisas.
1 A este respeito Papert em Mindstorms escreve o seguinte: “(...) todo o apoio à criança
enquanto ela constrói as suas estruturas intelectuais com materiais obtidos na cultura que a
circunda. Nesse modelo, a intervenção educacional significa mudanças na cultura, a introdução
de novos elementos construtivos e a eliminação dos elementos perniciosos” (Papert, 1980, pp.
49-50).
2 Segundo Bodero et al.(1997), a ideia de vozes é retirada dos trabalhos de Bakhtin e baseia-se
na ideia que a experiência humana não fala por si própria mas precisa de vozes originais que a
interpretem. As vozes são produzidas numa situação social, e gradualmente reconhecidas pela
sociedade, até se tornarem num modo partilhado de falar da experiência humana. Funcionam
como vozes que pertencem a pessoas reais com as quais se estabelece um diálogo que pode
ser mantido para além do tempo e do espaço, sendo continuamente regeneradas em resposta
a situações em mudança, não sendo, portanto, ecos mumificados para serem ouvidas
passivamente, mas ferramentas vivas de interpretação da experiência humana em mudança.
3
E será também conveniente referir que Hatano não é uma voz isolada a
reclamar a não contradição entre a teoria de Vygotsky e o construtivismo,
sobre o qual Papert, que foi colaborador de Piaget, baseou em grande medida
a sua posição construcionista. Cole e Wertsch (1996), negam, pura e
simplesmente, a validade do estereótipo que é geralmente referido como o
fulcro de uma hipotética antinomia entre Piaget e Vygotsky. Esse estereótipo
consiste, basicamente, na ideia que a criança individual, em Piaget, constrói
conhecimento através das suas acções no mundo (compreender é inventar),
enquanto que Vygotsky reivindica a origem social da compreensão.
De acordo com Cole e Wertsch, existem duas dificuldades relacionadas com
esse estereótipo. A primeira tem que ver com o facto de, segundo afirmam,
não constar que Piaget tenha alguma vez negado o papel igualmente
importante do mundo social na construção do conhecimento, sendo possível
encontrar, nos seus escritos, referências suficientes considerando o individual
e o social igualmente importantes. A segunda tem que ver com o facto de
Vygotsky ter insistido na centralidade da construção activa do conhecimento,
sendo essa insistência ilustrada por passagens como a seguinte, que,
ironicamente, foi escrita como parte de uma revisão crítica do discurso
egocêntrico de Piaget:
“Activity and practice: these are the new concepts that have allowed us
to consider the function of egocentric speech from a new perspective, to
consider it in its completeness... But we have seen that where the child’s
egocentric speech is linked to his practical activity, where it is linked to
his thinking, things do operate on his mind and influence it. By the word
things, we mean reality. However, what we have in mind is not reality as
it is passively reflected in perception or abstractly cognized. We mean
reality as it is encountered in practice”.3
Ainda segundo Hatano, existem cinco características da aquisição de
conhecimento que corroboram e complementam a conciliação entre o
construtivismo e a teoria histórico-cultural:
- O conhecimento é adquirido através de construção e não apenas por
transmissão. Evidências sobre esse facto são fornecidas por trabalhos
sobre erros de procedimento e sobre falsas noções, cuja aquisição
através de ensino directo é improvável. Por exemplo, as crianças mais
jovens enganam-se frequentemente na subtracção, sendo o seu erro
mais comum subtraírem sempre o dígito mais pequeno do maior,
independentemente da sua posição. Outro equívoco bastante
generalizado consiste na crença de que a divisão só pode originar
quocientes menores que os dividendos. Quer num caso, quer noutro,
parece ser bastante improvável que algum professor possa “ensinar”
coisas semelhantes.
- As crianças não pensam como adultos incompletos ou em miniatura, e
qualquer aquisição de conhecimento envolve reestruturação, de modo
que uma nova aquisição não resulta apenas em aumento do
conhecimento, mas implica a reorganização do conhecimento anterior.
Por exemplo, na atribuição de propriedades desconhecidas a objectos
animados, Hatano verificou que as crianças mais jovens fazem
3 Vygotsky (1987). The collected works of L. S. Vygotsky: Vol.1, Problems of general
psychology. Including the volume Thinking and speech. New York: Plenum. (N. Minick, Trans.).
4
inferências de semelhança, enquanto que os adultos e as crianças
maiores inferem com base em categorias. Daí considerar que os
estudos sobre mudança conceptual, seja na história da ciência ou no
desenvolvimento cognitivo, são especialmente significativos, porque a
mudança nas concepções fundamentais é, talvez, a forma mais radical
de reestruturação.
- O processo de aquisição de conhecimento é condicionado,
internamente, pelo conhecimento já acumulado e, externamente, por
artefactos culturais partilhados (como a linguagem). Isto explica, em
parte, porque é que indivíduos diferentes adquirem conhecimento
semelhante, mas não idêntico.
- O conhecimento é específico e, para a resolução de problemas, cada
indivíduo apenas necessita de ter acesso ao conhecimento relevante.
No entanto, o que se adquire num determinado domínio pode ser
transferido para outro (por analogia, por exemplo), ou generalizado para
uma variedade de domínios (através de um processo de abstracção).
- A aquisição de conhecimento é um fenómeno “situado”. Reflecte o
modo como foi adquirido e a maneira como tem sido utilizado. Assim,
está longe de consistir apenas em regras, leis, ou fórmulas abstractas,
sendo também composto de experiência pessoal. Mas quando um
aprendiz se converte em especialista, sobretudo em campos de índole
marcadamente abstracta (como, por exemplo, a matemática e a física),
essa conversão pode constituir um fenómeno de “des-situação” de
conhecimento, que passa a ser menos dependente de laços contextuais
e menos ligado às características superficiais (Hatano, 1996).
Referências:
Boero, P., Pedemonte, B. e Robott,i E. (1997). “Approaching theoretical
knowledge through voices and echoes: a Vygotskian perspective”. PME XXI
(pp. 81-88). Lathi, Finland.
Cole, M. e Wertsch, J. (1996). “Beyond the Individual-Social Antimony in
Discussions of Piaget and Vygotsky”:
http://www.massey.ac.nz/~ALock/virtual/colevyg.htm.
Hatano, G. (1993). “Time to Merge Vygotskian and Constructivist Conceptions
of Knowledge Acquisition”. In Ellice A. Forman, Norris Minick e C. Addison
Stone (Ed.), Contexts for Learning - Sociocultural Dynamics in Children´s
Development (pp. 153-166). New York: Oxford University Press.
Hatano, G. (1996). “A Conception of Knowledge Acquisition and Its Implications
for Mathematics Education”. In Steffe e Nesher (Ed.), Theories of Mathematical
Learning (pp. 197-217). Hillsdale NJ: Lawrence Erlbaum Associates.
Papert, S. (1980). Mindstorms - Children, Computers and Powerful Ideas. New
York: Basic Books, Inc.
5
Resnick, L. (1987). “Constructing knowledge in school”. In L. S. Liesben (Ed.),
Development and learning: conflict or congruence? (pp. 19-50). Hillsdale NJ:
Lawrence Erlbaum Associates.
Vygotsky (1987). The collected works of L. S. Vygotsky: Vol.1, Problems of
general psychology. Including the volume Thinking and speech. New York:
Plenum.
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