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segunda-feira, 5 de abril de 2010

Convergência entre a teoria de Vygotsky e o construtivismo/ construcionismo




Convergência entre a teoria de Vygotsky e o construtivismo/


construcionismo

(draft)

Carlos Nogueira Fino

Universidade da Madeira


2004
As concepções de Vygotsky têm sido frequentemente contrastadas com as de

Piaget, geralmente consideradas bastante atractivas por membros

particularmente inovadores da comunidade educativa. Só que, vista de uma

perspectiva vygotskiana, a concepção piagetiana de aquisição de

conhecimento apresenta sérias deficiências, devendo, por isso, ser

considerada inapropriada para servir de fundo a qualquer intuito de reforma

educacional, a não ser que devidamente supridas. Entre essas deficiências, os

piagetianos são criticados por não darem a devida atenção ao papel dos pares

mais aptos numa determinada cultura, aos artefactos culturais que medeiam a

interacção entre os indivíduos e o seu envolvimento físico e cultural, e ao

contexto histórico-social dos processos de ensino-aprendizagem. Além disso,

os vygotskianos têm vindo a criticar o romantismo que intuem perpassar o

construtivismo centrado na criança dos piagetianos, muitas vezes sem

diferenciarem claramente o que entendem por transmissão de conhecimento.

Como resultado dessa falta de clarificação, a assim considerada concepção

vygotskiana da aquisição de conhecimento por meio de instrução tem vindo a

estabelecer-se de uma forma caricatural, que se pode sintetizar da seguinte

maneira (Hatano, 1993):

- O conhecimento a ser adquirido pelo aprendiz (membro imaturo da

sociedade) está na posse do professor (membro mais maduro),

geralmente sob a forma de um conjunto de habilidades ou de

estratégias de resolução de problemas, tendo a sociedade encarregado

o professor da transmissão do conhecimento.

- O aprendiz é trazido para dentro da situação de instrução para resolver

alguns tipos de problemas em conjunto com o professor. O professor

comunica o conhecimento de uma forma codificada verbalmente (como

um conjunto de comandos ou pares de condição-acção) e demonstra

como se resolvem os problemas usando aquela forma codificada de

conhecimento.

- O professor encarrega o aluno da execução dos passos da resolução

do problema de que é capaz, sendo os restantes executados por si,

tornando-se o papel de suporte do professor menos importante à

medida que o aprendiz vai adquirindo conhecimento.

- Quando o aprendiz se torna apto a resolver os problemas sem ajuda

do professor, considera-se que o conhecimento foi transmitido com

sucesso.

Esta “concepção vygotskiana” não passa, no entanto, de uma concepção

possível entre outras que se podem fundar sobre a ênfase que Vygotsky

1

coloca na origem social da cognição individual, com especial realce para a

ZDP. Até porque o ponto de vista contido nos quatros pontos anteriores se

baseia em assunções empiricistas implícitas e difíceis de sustentar, como as

seguintes:

- o aprendiz tem uma natureza passiva;

- o aprendiz não precisa de compreender o significado das habilidades

ensinadas, nem o conhecimento que lhes subjaz;

- só a interacção com o professor, que é sempre mais capaz que o

aprendiz, facilita a aquisição;

- o professor é a única fonte de informação e de avaliação.

Como é óbvio, estas assunções implícitas não são aceitáveis por serem pouco

plausíveis à luz da evidência que tem vindo a ser acumulada pela investigação

em educação. De facto, a investigação tem mostrado que as crianças, e as

pessoas em geral, são geralmente activas e competentes na sua vida diária e

podem beneficiar de uma variedade de interacções com outras pessoas, em

contextos naturais ou artificiais. Impõe-se, portanto, uma revisão daquela

“concepção vygotskiana”, mesmo no interior de uma perspectiva de

transmissão de conhecimento ou de habilidades. Essa revisão conduz ao que

se poderá denominar de extensão moderada da concepção vygotskiana de

aprendizagem e instrução. Uma tentativa mais ambiciosa será a de expandir

aquela concepção de modo a que ela possa incluir a aquisição de

conhecimento conceptual, expressão utilizada para significar a habilidade dos

aprendizes usarem flexivelmente as habilidades adquiridas e a inventarem

habilidades novas, sendo esse o processo de se tornarem especialistas em

adaptação. A essa tentativa atribui Hatano (1993) a designação de extensão

radical da concepção de Vygotsky, e parte do pressuposto de que, uma vez

que o conhecimento é construído pelos próprios aprendizes, confrontados com

uma variedade de constrangimentos sócio-culturais, os educadores devem

sentir-se encorajados a procurar alternativas à didáctica.

Para substituir as assunções implícitas sobre a natureza do aprendiz, contidas

na “concepção vygotskiana” acima indicadas, o mesmo autor contrapõe as

seguintes, que entende corresponderem a uma concepção vygotskiana

construtivista:

- os aprendizes são activos e gostam de ter iniciativa e escolher entre

várias alternativas;

- os aprendizes são tão competentes como activos na tarefa da

compreensão, sendo possível que construam conhecimento baseado na

sua própria compreensão, ultrapassando esse conhecimento a

informação disponibilizada pelo professor, ou indo mesmo além da

própria compreensão do professor;

- a construção de conhecimento pelo aprendiz é facilitado pelas

interacções horizontais e pelas interacções verticais;

- a disponibilidade de múltiplas fontes de informação potencia a

construção de conhecimento.

Quanto à questão da socio-génese da cognição individual sob um ponto de

vista cognitivista, um bom ponto de partida pode ser a proposta de Resnick

(1987, p. 47), para quem “the environment and the culture provide the ‘material’

2

upon which constructive mental processes will work1, desde que a natureza

desse material proporcionado pelo envolvimento e pela cultura tenha em

atenção as seguintes especificações:

- o conhecimento é frequentemente construído quando o aprendiz

interage com o professor (ou membro mais capaz), pares, ou artefactos

impregnados com as vozes2 de outros, criando juntamente com eles o

contexto para a interacção;

- através da interacção qualquer coisa é produzida colectivamente e

partilhada entre os participantes. Esta qualquer coisa pode ser um

sistema cooperativo de resolução de problemas, significados e

compreensões discutidos e negociados, senso comum e normas

definindo situações e regulando comportamentos, envolvendo o

processo também componentes sócio-emocionais;

- o aprendiz incorpora essa qualquer coisa gerando, elaborando ou

revisitando o conhecimento;

- o pequeno sistema de interacção face a face, onde decorre o descrito

nas três alíneas anteriores, está mergulhado num sistema mais vasto,

que pode ser uma instituição ou uma comunidade.

E desta forma se sugere uma perspectiva de harmonização e de confluência

entre a teoria sócio-cultural de Vygotsky e o construtivismo construcionista de

Seymour Papert.

É oportuno relembrar que é comum entre os construtivistas a ideia de que o

conhecimento é construído activamente pelos aprendizes, e que educar

consiste em proporcionar-lhes oportunidades de se ocuparem em actividades

criativas, que alimentem aquele processo de construção de conhecimento.

Parafraseando Papert, os aprendizes não aprendem melhor pelo facto do

professor ter encontrado melhores maneiras de os instruir, mas por lhes ter

proporcionado melhores oportunidades de construir. Como já se referiu, a esta

visão da educação deu Papert o nome de construcionismo, teoria segundo a

qual a aprendizagem acontece quando os aprendizes se ocupam na

construção de qualquer coisa cheia de significado para si próprios, quer essa

coisa seja um castelo de areia, uma máquina, um poema, uma história, uma

canção, um programa de computador. Desse modo, o construcionismo envolve

dois tipos de construção: construção das coisas (objectos, artefactos) que o

aprendiz efectua a partir de materiais (cognitivos) recolhidos do mundo

(exterior) que o rodeia, e construção (interior) do conhecimento que está

relacionado com aquelas coisas.

1 A este respeito Papert em Mindstorms escreve o seguinte: “(...) todo o apoio à criança

enquanto ela constrói as suas estruturas intelectuais com materiais obtidos na cultura que a

circunda. Nesse modelo, a intervenção educacional significa mudanças na cultura, a introdução

de novos elementos construtivos e a eliminação dos elementos perniciosos” (Papert, 1980, pp.

49-50).

2 Segundo Bodero et al.(1997), a ideia de vozes é retirada dos trabalhos de Bakhtin e baseia-se

na ideia que a experiência humana não fala por si própria mas precisa de vozes originais que a

interpretem. As vozes são produzidas numa situação social, e gradualmente reconhecidas pela

sociedade, até se tornarem num modo partilhado de falar da experiência humana. Funcionam

como vozes que pertencem a pessoas reais com as quais se estabelece um diálogo que pode

ser mantido para além do tempo e do espaço, sendo continuamente regeneradas em resposta

a situações em mudança, não sendo, portanto, ecos mumificados para serem ouvidas

passivamente, mas ferramentas vivas de interpretação da experiência humana em mudança.

3

E será também conveniente referir que Hatano não é uma voz isolada a

reclamar a não contradição entre a teoria de Vygotsky e o construtivismo,

sobre o qual Papert, que foi colaborador de Piaget, baseou em grande medida

a sua posição construcionista. Cole e Wertsch (1996), negam, pura e

simplesmente, a validade do estereótipo que é geralmente referido como o

fulcro de uma hipotética antinomia entre Piaget e Vygotsky. Esse estereótipo

consiste, basicamente, na ideia que a criança individual, em Piaget, constrói

conhecimento através das suas acções no mundo (compreender é inventar),

enquanto que Vygotsky reivindica a origem social da compreensão.

De acordo com Cole e Wertsch, existem duas dificuldades relacionadas com

esse estereótipo. A primeira tem que ver com o facto de, segundo afirmam,

não constar que Piaget tenha alguma vez negado o papel igualmente

importante do mundo social na construção do conhecimento, sendo possível

encontrar, nos seus escritos, referências suficientes considerando o individual

e o social igualmente importantes. A segunda tem que ver com o facto de

Vygotsky ter insistido na centralidade da construção activa do conhecimento,

sendo essa insistência ilustrada por passagens como a seguinte, que,

ironicamente, foi escrita como parte de uma revisão crítica do discurso

egocêntrico de Piaget:

Activity and practice: these are the new concepts that have allowed us

to consider the function of egocentric speech from a new perspective, to

consider it in its completeness... But we have seen that where the child’s

egocentric speech is linked to his practical activity, where it is linked to

his thinking, things do operate on his mind and influence it. By the word

things, we mean reality. However, what we have in mind is not reality as

it is passively reflected in perception or abstractly cognized. We mean

reality as it is encountered in practice”.3

Ainda segundo Hatano, existem cinco características da aquisição de

conhecimento que corroboram e complementam a conciliação entre o

construtivismo e a teoria histórico-cultural:

- O conhecimento é adquirido através de construção e não apenas por

transmissão. Evidências sobre esse facto são fornecidas por trabalhos

sobre erros de procedimento e sobre falsas noções, cuja aquisição

através de ensino directo é improvável. Por exemplo, as crianças mais

jovens enganam-se frequentemente na subtracção, sendo o seu erro

mais comum subtraírem sempre o dígito mais pequeno do maior,

independentemente da sua posição. Outro equívoco bastante

generalizado consiste na crença de que a divisão só pode originar

quocientes menores que os dividendos. Quer num caso, quer noutro,

parece ser bastante improvável que algum professor possa “ensinar”

coisas semelhantes.

- As crianças não pensam como adultos incompletos ou em miniatura, e

qualquer aquisição de conhecimento envolve reestruturação, de modo

que uma nova aquisição não resulta apenas em aumento do

conhecimento, mas implica a reorganização do conhecimento anterior.

Por exemplo, na atribuição de propriedades desconhecidas a objectos

animados, Hatano verificou que as crianças mais jovens fazem

3 Vygotsky (1987). The collected works of L. S. Vygotsky: Vol.1, Problems of general

psychology. Including the volume Thinking and speech. New York: Plenum. (N. Minick, Trans.).

4

inferências de semelhança, enquanto que os adultos e as crianças

maiores inferem com base em categorias. Daí considerar que os

estudos sobre mudança conceptual, seja na história da ciência ou no

desenvolvimento cognitivo, são especialmente significativos, porque a

mudança nas concepções fundamentais é, talvez, a forma mais radical

de reestruturação.

- O processo de aquisição de conhecimento é condicionado,

internamente, pelo conhecimento já acumulado e, externamente, por

artefactos culturais partilhados (como a linguagem). Isto explica, em

parte, porque é que indivíduos diferentes adquirem conhecimento

semelhante, mas não idêntico.

- O conhecimento é específico e, para a resolução de problemas, cada

indivíduo apenas necessita de ter acesso ao conhecimento relevante.

No entanto, o que se adquire num determinado domínio pode ser

transferido para outro (por analogia, por exemplo), ou generalizado para

uma variedade de domínios (através de um processo de abstracção).

- A aquisição de conhecimento é um fenómeno “situado”. Reflecte o

modo como foi adquirido e a maneira como tem sido utilizado. Assim,

está longe de consistir apenas em regras, leis, ou fórmulas abstractas,

sendo também composto de experiência pessoal. Mas quando um

aprendiz se converte em especialista, sobretudo em campos de índole

marcadamente abstracta (como, por exemplo, a matemática e a física),

essa conversão pode constituir um fenómeno de “des-situação” de

conhecimento, que passa a ser menos dependente de laços contextuais

e menos ligado às características superficiais (Hatano, 1996).

Referências:

Boero, P., Pedemonte, B. e Robott,i E. (1997). “Approaching theoretical

knowledge through voices and echoes: a Vygotskian perspective”. PME XXI

(pp. 81-88). Lathi, Finland.

Cole, M. e Wertsch, J. (1996). “Beyond the Individual-Social Antimony in

Discussions of Piaget and Vygotsky”:

http://www.massey.ac.nz/~ALock/virtual/colevyg.htm.

Hatano, G. (1993). “Time to Merge Vygotskian and Constructivist Conceptions

of Knowledge Acquisition”. In Ellice A. Forman, Norris Minick e C. Addison

Stone (Ed.), Contexts for Learning - Sociocultural Dynamics in Children´s

Development (pp. 153-166). New York: Oxford University Press.

Hatano, G. (1996). “A Conception of Knowledge Acquisition and Its Implications

for Mathematics Education”. In Steffe e Nesher (Ed.), Theories of Mathematical

Learning (pp. 197-217). Hillsdale NJ: Lawrence Erlbaum Associates.

Papert, S. (1980). Mindstorms - Children, Computers and Powerful Ideas. New

York: Basic Books, Inc.

5

Resnick, L. (1987). “Constructing knowledge in school”. In L. S. Liesben (Ed.),

Development and learning: conflict or congruence? (pp. 19-50). Hillsdale NJ:

Lawrence Erlbaum Associates.

Vygotsky (1987). The collected works of L. S. Vygotsky: Vol.1, Problems of

general psychology. Including the volume Thinking and speech. New York:

Plenum.


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