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domingo, 25 de maio de 2008

Disse, tá dizido; prometeu, tá prometado.(Vygotsky)


Disse, tá dizido; prometeu, tá prometado

Começo o trabalho com o um título que retrata a fala de meu irmão quando era ainda criança pequena, reivindicando o passeio prometido por nossa mãe. Apesar de ainda não refletir sobre a forma como dizia o que queria fazer, apesar de ainda não refletir sobre a influência da cultura em sua curta vida, fica-me óbvio, a partir dos referenciais teóricos do sócio-interacionismo e do estruturalismo, o quanto ele já havia “apreendido” da língua e da cultura nas quais estava imerso desde antes do seu nascimento biológico.

O estudo da Psicolingüística abriu-me um campo novo, apesar de muito denso. Tudo era muito novo para mim e os conceitos ainda não estavam conectados (para não negar o meu passado na informática) na minha forma de ver o mundo.

Dor (XXXX) afirma que a visão estruturalista em lingüística surgiu a partir da idéia de Ferdinand de Saussure a respeito da dimensão sincrônica no estudo da língua. Na concepção de Saussure o estudo da língua não pode ser reduzido a uma abordagem puramente história, ou diacrônica, visto que “a história da palavra não permite dar conta de sua significação presente, pois esta significação depende do sistema da língua”. Esse sistema é formado por um certo conjunto de leis de equilíbrio e princípios que estão relacionados diretamente com a sincronia da língua. A língua é uma estrutura, porque além dos elementos supõe leis que governam esses elementos entre si.

Arrivé (1999) traz os conceitos de língua, linguagem e fala de Saussure:

“A língua é um sistema de signos que exprimem idéias, e por isso é comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às fórmulas de polidez, aos sinais militares etc. etc. Ela é apenas o mais importante desses sistemas.
(...)
Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem: ela é apenas uma parte determinada da linguagem, essencial, é verdade. É ao mesmo tempo um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas por um corpo social, para permitir o exercício dessa faculdade entre os indivíduos. Tomada no seu todo, a linguagem é multiforme e heterogênea, situada em vários campos; ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, pertence ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não se sabe como depreender a sua unidade.
A língua, ao contrário, é um todo em si e um princípio de classificação. Logo que lhe damos o primeiro lugar entre os fatos de linguagem, introduzimos uma ordem natural em um conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação.
(...)
A linguagem representa dois fatores: a língua e a fala. A língua é para nós a linguagem menos a fala. Ela é o conjunto dos hábitos lingüísticos que permitem a um sujeito compreender e fazer-se compreender.
(...)
Separando a língua da fala, separam-se ao mesmo tempo: 1) o que é social do que é individual; 2) o que é essencial do que é acessório ou mais ou menos acidental.
(...)
A faculdade da linguagem é um fato distinto da língua, mas que não pode se exercer sem ela. Por fala designa-se o ato do indivíduo que realiza a sua faculdade por meio da convenção social que é a língua.”

Toda a visão estruturalista da língua apresentada por Saussure tem por base o conceito de signo lingüístico. Para ele, não se poderia pensar uma unidade lingüística como uma associação de um termo a uma coisa. O signo lingüístico une um conceito a uma imagem acústica. Dor (XXXX), citando Saussure precisa:

“O signo lingüístico une, não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta última não é o som material, coisa puramente física, mas a marca física desse som, a representação que nos é dada por nossos sentidos; ela é sensorial, e se nos ocorre chamá-la ‘material’, é apenas neste sentido e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato.”

Para Saussure, a língua é um sistema de relações; é uma forma (e não uma substância) que se impõe ao sujeito por coerção social. Não existem idéias pré-formadas, não existem sons pré-formados. Dor (XXXX) esclarece bem esses conceitos:

“As unidades lingüísticas enquanto entidades ‘psíquicas’ participam, assim, do registro da ‘língua’ e não procedem da fala. É por esta razão que a ‘linguagem’ deve ser considerada como a utilização/articulação de uma ‘língua falada’ por um sujeito.”

Na língua, as relações entre as faces do signo lingüístico (conceito/imagem acústica) são, aparentemente, fixas; porém, na linguagem essas relações são possíveis de modificações. Saussure substitui conceito por significado e imagem acústica por significante, onde o signo lingüístico passa a ser a relação de um significado com um significante. A figura abaixo (Figura 1), extraída de Dor (XXXX), ilustra bem o sistema de relações em um signo lingüístico, a partir da concepção de Saussure.

Figura 1 – Signo lingüístico na concepção de Saussure


O signo lingüístico, de acordo com Saussure, apresenta as propriedades de:

· arbitrariedade do signo;
· imutabilidade do signo;
· alteração do signo;
· caráter linear do significante.

A relação entre o significado e o significante é arbitrária, pois parece não existir uma condição pré-existente para unir um conceito e a imagem acústica que o representa. Porém, o lingüista suíço escorrega no seu argumento para comprovar sua afirmação: ressalta que um mesmo conceito é representado por imagens acústicas diferentes de uma língua para outra. Porém, como Arrivé (1999) discute, esse argumento supõe que o conceito de uma determinada imagem acústica em uma língua, em uma certa comunidade, seria exatamente igual ao conceito da língua em uma outra comunidade, diferente da primeira. Citando o próprio Saussure, o autor destaca:

“Se as idéias fossem predeterminadas no espírito humano antes de serem valores de língua, uma das coisas que aconteceria forçosamente é que os termos de uma língua corresponderiam exatamente aos de outra.
francês alemão
cher lieb, theuer (também moral)
Não há correspondência exata.”

Isso, porém, não invalida a propriedade da arbitrariedade do signo lingüístico; o mesmo, apenas, continua não-demonstrado. O arbitrário só vale para o conjunto de uma determinada comunidade lingüística, como esclarece Dor (XXXX), citando Saussure:

“A palavra arbitrário não deve dar a idéia de que o significante depende da livre escolha do sujeito falante. (...) Queremos dizer que ele é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhuma ligação natural na realidade.”

Pensando nessa relação arbitrária, lembrei-me das perguntas das crianças quando estão aprendendo a falar, ou melhor, a apreender o seu mundo, e veio-me ao coração a linda história de Ruth Rocha “Marcelo, marmelo, martelo”, da qual transcrevo um trecho para ilustrar essa propriedade.

“E Marcelo continuou pensando:
‘Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar assim”.

E como o editor de textos Word, da Microsoft, do meu computador não entende de crianças e de poesia, já aponta com um sublinhado vermelho as palavras erradas, mas lógicas, que Marcelo usou para dar um novo nome às coisas. Coisas da língua, coisas da cultura. Linguagem, Marcelo, é outra coisa.

Apesar do significante ser livremente escolhido com relação ao significado que representa numa certa comunidade lingüística, uma vez escolhido, este significante é imposto à massa falante e, então, torna-se imutável.

É através da arbitrariedade do signo que toda uma comunidade é submetida à sua língua, como Saussure, citado por Dor (XXXX), denuncia:

“Não somente um indivíduo seria incapaz, se quisesse, de modificar no que quer que seja a escolha que foi feita, mas também a própria massa não pode exercer soberania sobre uma única palavra; ela está ligada à língua tal como ela é.”

Ludwig Wittgenstein já alertava para a força da linguagem no processo de “assujeitamento” do homem: “Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”.

Já que o signo é arbitrário, para que perdure numa certa comunidade é necessário que seja instalado tradicionalmente nessa comunidade e isso se faz através da ação do tempo. Saussure, citado por Dor (XXXX), observa:

“Existe uma ligação entre dois fatores antinômicos: a convenção arbitrária do signo, em virtude da qual a escolha é livre, e o tempo, graças ao qual o signo é fixado. É por ser arbitrário que o signo não conhece outra lei que a tradição e é por fundar-se na tradição que pode ser arbitrário.”

Porém, o mesmo tempo que fixa um signo, possibilita a sua transformação. Dor (XXXX) aponta para a alteração nas duas faces do signo lingüístico:

“Esta alteração do signo atinge simultaneamente o significante e o significado. No nível do significante, trata-se, sobretudo, de uma alteração fonética; ao passo que ao nível do significado, trata-se de uma modificação do conceito enquanto tal. Dito de outra forma, a alteração do significado será coextensiva a uma modificação da compreensão e da extensão do conceito. De maneira geral, a alteração do signo é sempre da ordem de um deslocamento da relação entre significado e significante (de acordo com Saussure).”

Lembro-me, mais uma vez, do meu irmão que quando criança pedia à sua babá: “Ita!!!!!!!!! Me dá minha buaca.” Depois, esse pedido pôde ser feito de uma outra forma: “Rita!!!!!!!!! Me dá minha cueca.” Ou ainda, da minha enorme frustração ao fazê-lo tentar repetir o meu nome “Patrícia”, ao que ele respondia “Tital”. O tempo se encarregou das modificações necessárias, apesar do significante “Tital”, hoje, ter um significado muito maior do o referente “Patrícia”, associada à minha pessoa como era na nossa infância, já que em nossa família (nossa pequena comunidade lingüística), está relacionado “à nossa infância querida, que os tempos não trazem mais”, para citar Casimiro de Abreu.

Dor (XXXX) discute, mais uma vez, o efeito do tempo na língua, quando aborda o caráter linear do significante:

“Se a alteração do signo está diretamente ligada à prática da língua no tempo, a influência do fator tempo é intrinsecamente dependente da natureza do significante. O significante por si só já é uma seqüência fonética que se desdobra no tempo. A fala, a articulação não é outra coisa senão o ato mesmo que presentifica este desenrolar temporal do significante. Esta extensão temporal do significante dá origem a uma propriedade fundamental da língua. Com efeito, a língua desdobra-se numa direção orientada que chamamos de o eixo das oposições ou eixo sintagmático. É esta seqüência orientada na organização significante que Lacan designa como cadeia significante.”

Além dos seus elementos, os signos lingüísticos, a língua tem os seus princípios; é o conjunto desses dois aspectos que forma a estrutura da língua. Na cadeia de significantes há as concatenações (dimensão sintagmática) significativas e as substituições (dimensão paradigmática), onde as últimas podem intervir em elementos significativos.

Mafra (2000) esclarece as idéias de Saussure quanto a essas duas dimensões:

“No eixo associativo, mais tarde chamado de paradigmático, estar-se-á diante da substituição de um termo em ausência. ‘(...) elas fazem parte desse tesouro interior que constitui a língua de cada indivíduo’. No eixo sintagmático, no entanto, encontramos a noção de contexto e ligação dos termos que estão presentes e que elidem a possibilidade da elocução de dois elementos simultaneamente”.

Dor (XXXX) aponta as duas grandes inovações de Saussure no estudo da língua: os signos lingüísticos e o duplo corte do sistema da linguagem. O autor, assumindo as idéias de Jakobson, ainda esclarece:

“Falar implica efetuar duas séries de operações simultâneas: de um lado selecionar um certo número de unidades lingüísticas no léxico; por outro lado, combinar as unidades lingüísticas escolhidas.
(...)
A seleção, que supõe a escolha de um termo entre outros, implica uma possibilidade de substituição dos termos entre si. Quanto à combinação, ela requer um certo tipo de articulação das unidades lingüísticas, a começar pela configuração de uma certa ordem nas unidades de significação.”

Para que um sujeito fale e seja compreendido pela sua comunidade lingüística é necessário que haja um código comum entre seus participantes (Jakobson, YYYY): “quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com o sistema sintático da língua que utiliza; as frases, por sua vez, são combinadas em enunciados”. Está criado o discurso. Porém, a liberdade para o sujeito criar o seu próprio discurso está limitada a algumas regras e segue um curso, bem descrito por Jakobson (YYYY):

“Existe, pois, na combinação de unidades lingüísticas, uma escala ascendente de liberdade. Na combinação de traços distintivos em fonemas, a liberdade individual do que fala é nula; o código já estabeleceu todas as possibilidades que podem ser utilizadas na língua em questão. A liberdade de combinar fonemas em palavras está circunscrita: está limitada à situação marginal da criação de palavras. Ao formar frases com palavras, o que fala sofre menor coação. E, finalmente, na combinação de frases em enunciados, cessa a ação das regras coercitivas da sintaxe e a liberdade de qualquer indivíduo para criar novos contextos cresce substancialmente, embora não se deva subestimar o número de enunciados estereotipados.”

Jakobson (YYYY), especificando mais o processo de combinação, afirma que:

“Qualquer unidade lingüística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu próprio contexto em unidade lingüística mais complexa”; (...) uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro.
(...)
Os constituintes de um contexto têm um estatuto de contigüidade, enquanto num grupo de substituição os signos estão ligados entre si por diferentes graus de similaridade, que oscilam entre a equivalência dos sinônimos e o fundo comum dos antônimos”.

Jakobson estudou a afasia, uma perturbação da linguagem, classificando-a a partir do sistema – de seleção ou de combinação - que foi deteriorado. Dor (XXXX) esclarece as idéias de Jakobson:

“Quando a deteriorização recai sobre a escolha lexical (seleção), o afásico encontra dificilmente as palavras. Ele utiliza então, freqüentemente, no lugar da palavra procurada uma palavra que se encontra numa relação de contigüidade com esta. Inversamente, quando é a articulação dos termos lexicais (combinação) que está deteriorada, o afásico procede por similitude.”

Para os afásicos com deficiência no processo de seleção, o contexto constitui fator indispensável e decisivo. Palavras-chaves podem ser eliminadas ou trocadas por substitutos anafóricos abstratos. Jakobson (YYYY) afirma que “um afásico desse tipo não pode passar de sua palavra aos seus sinônimos ou circunlocuções equivalentes, nem a seus heterônimos, isto é, expressões equivalentes em outras línguas”. Já nos afásicos com deficiência no contexto, a extensão e a variedade das frases diminuem.

Eis um exemplo de uma construção de linguagem de um afásico (Figura 2), em conseqüência de um acidente vascular cerebral.

Figura 2 - Construção de linguagem de um afásico

Então, todo discurso se constrói segundo os dois eixos básicos: seleções e combinações, onde, no primeiro, ocorrem as operações metafóricas e, no segundo, ocorrem as operações metonímicas. Jakobson, citado por Dor (XXXX), esclarece:

“O desenvolvimento de um discurso pode se dar ao longo de duas linhas semânticas diferentes: um tema leva a outro, quer por similaridade, quer por contigüidade. Sem dúvida, seria melhor falar de processo metafórico no primeiro caso, e de processo metonímico no segundo caso, já que encontram sua expressão mais condensada, um na metáfora, outro na metonímia”.

O quadro abaixo (Figura 3), extraído de Dor (XXXX), resume bem o que vem sendo discutido até aqui, quanto ao corte da linguagem:

Figura 3 – Eixos da linguagem

Um outro conceito introduzido por Saussure (1989) foi o conceito de valor lingüístico.

“A arbitrariedade do signo nos faz compreender melhor que o fato social pode, por si só, criar um sistema lingüístico. A coletividade é necessária para estabelecer os valores cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral: o indivíduo, por si só, é incapaz de fixar um que seja.
(...)
A língua é um sistema em que todos os termos são solidários e o valor de um resulta tão-somente da presença simultânea de outros.”

O esquema da Figura 4, extraído de Saussure (1989) ilustra bem a idéia de valor de um signo lingüístico na relação com outros.

Figura 4 - Valor lingüístico

De acordo com Saussure (1989), um valor é constituído por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser trocada por outra cujo valor resta determinar e por coisas semelhantes que se podem comparar com aquela cujo valor está em causa.

Analisando o valor lingüístico a partir de uma perspectiva conceitual (o significado), Saussure (1989) afirma que:

“A parte conceitual do valor é constituída unicamente por relações e diferenças com os outros termos da língua”.

Porém, Saussure (1989) faz também uma relação com o aspecto material (o significante) do valor lingüístico:

“O que importa na palavra não é o som em si, mas as diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra de todas as outras, pois são elas que levam à significação”.

Considerando o signo lingüístico na sua totalidade, tomando o significado e o significante, Saussure (1989) sintetiza a noção de valor:

“Um sistema lingüístico é uma série de diferenças de sons combinadas com uma série de diferenças de idéias; mas essa confrontação de um certo número de signos acústicos com outras tantas divisões feitas na massa do pensamento engendra um sistema de valores; e é tal sistema que constitui o vínculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de cada signo.”

Lembrando Milton Nascimento, “não existiria som, senão houvesse o silêncio”.

Chego a Vygotsky (ou Vigotski? mais uma vez a língua nos captura!!) apresentando as suas idéias sobre como o social interage com individual, discutidas, principalmente, a partir do seu texto “Pensamento e Palavra” (2000b). Góes (2000) apresenta a idéia de Vygotsky sobre a gênese social do desenvolvimento pela identificação de mecanismos pelos quais o plano intersubjetivo eleva as formas de ação individual. Segundo a autora, para o mestre soviético, “o desenvolvimento é alicerçado sobre o plano das interações; o sujeito faz sua, uma ação que tem um significado compartilhado.”

Para Vygotsky, ‘no princípio não era o Verbo’ e, sim, ‘no princípio era a Ação’. Mas, o que acontece para que a Ação se faça Verbo? Como as funções psicológicas, que emergem da ação entre os sujeitos, transformam-se para constituir o funcionamento interno? Góes (2000) afirma que “longe de ser uma cópia do plano externo, o funcionamento interno resulta de uma apropriação das formas de ação, que é dependente tanto de estratégias e conhecimentos dominados pelo sujeito quanto de ocorrências no contexto interativo.”

Sirgado (2000) aponta para o ponto da psicologia soviética, citando Leontiev, que a diferencia das demais correntes psicológicas:

“A corrente sócio-histórica concebe o psiquismo humano como uma construção social, resultado da apropriação, por parte dos indivíduos, das produções culturais da sociedade pela mediação dessa mesma sociedade.”

O conceito de mediação, tão central nos trabalhos de Vygotsky, está relacionado com qualquer intervenção de um terceiro “elemento” que possibilite a interação entre os “termos” de uma relação.

Vygotsky aponta dois tipos de mediadores externos: os instrumentos, orientados para regular as ações sobre os objetos, e os signos, orientados para regular as ações sobre o psiquismo das pessoas.

Vygotsky aprofundou seus estudos na relação entre o pensamento e o sistema de signos da linguagem.

Oliveira (1992) afirma que o processo de internalização é um processo de constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade:

“A passagem do nível interpsicológico para o nível intrapsicológico envolve, assim, relações interpessoais densas, mediadas simbolicamente, e não trocas mecânicas limitadas a um patamar puramente intelectual.
(...)
A questão de formação da consciência e a questão da constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade nos remetem à mediação simbólica e, conseqüentemente, à importância da linguagem no desenvolvimento psicológico do homem.”

Baquero (2001), citando Vygotsky, discute as funções da linguagem:

“A função inicial da linguagem é comunicativa. A linguagem é antes de tudo um meio de comunicação social, um meio de expressão e de compreensão. Geralmente, na análise por decomposição de elementos, esta função da linguagem também se separa da intelectual e ambas eram atribuídas à linguagem, como se disséssemos, paralela e independentemente uma da outra. Sabe-se que a linguagem combina a função comunicativa com a de pensar, mas não se investigou, nem se investiga que relação existe entre ambas as funções, o que condiciona sua coincidência na linguagem, como se desenvolvem, nem como estão unidas estruturalmente entre si.”

Para Vygotsky, o pensamento e a linguagem têm raízes diversas. Porém, ao longo da evolução desses dois campos vão formando conexões, que também se modificam. Há no desenvolvimento da criança um período pré-lingüístico do pensamento (na utilização de instrumentos e na inteligência prática) e um período pré-intelectual da fala (no alívio emocional e na função social). Só depois, surgem o pensamento verbal e a linguagem racional (transformação do biológico no sócio-histórico).

No desenvolvimento da espécie humana esse encontro se deu devido à necessidade do grupo humano de agir coletivamente, como na caça, por exemplo. Para que isso fosse possível, teve que ser criado um sistema de comunicação que permitisse troca de informações específicas e ação no mundo com base em significados que fossem compartilhados por todos os participantes do grupo que estivessem envolvidos na atividade proposta. No desenvolvimento da criança esse mesmo caminho é percorrido a partir de sua inserção num grupo cultural, onde possa interagir com membros mais maduros dessa cultura, que já utilizem um sistema de linguagem estruturado, fazendo-se necessário o salto qualitativo para o pensamento verbal.

Vygotsky (2000a) afirma que:

“Embora a inteligência prática e o uso de signos possam operar independentemente em crianças pequenas, a unidade dialética desses sistemas no adulto humano constitui a verdadeira essência no comportamento humano complexo. Nossa análise atribui à atividade simbólica uma função organizadora específica que invade o processo do uso de instrumento e produz formas fundamentalmente novas formas de comportamento.”

Essa idéia pode ser demonstrada no esquema abaixo:

Para ele, o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, ou seja, pelos instrumentos lingüísticos do pensamento e pela experiência sócio-cultural da criança, sendo o crescimento intelectual da criança estritamente dependente de seu domínio dos meios sociais de pensamento, isto é, da linguagem. Dessa forma, o próprio desenvolvimento ocorre do biológico para o sócio-histórico.

Vygotsky (2000b) esclarece o seu conceito de pensamento verbal:

“O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala”.

Para Vygotsky a cultura não é um sistema estático ao qual o indivíduo se submete, mas um ‘palco de negociações’, onde seus participantes estão em constante processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados.

O mestre soviético procurou estudar todo esse processo de desenvolvimento da linguagem e do pensamento através do estudo de unidades, entendo que cada unidade conteria as propriedades do todo; a unidade do pensamento verbal escolhida foi o significado das palavras.

Em seu famoso livro Pensamento e Linguagem, Vygotsky (2000b), afirma:

“O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da ‘palavra’, seu componente indispensável. Pareceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala. Mas, do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos do pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento. Daí não decorre, entretanto, que o significado pertença formalmente a duas esferas diferentes da vida psíquica. O significado das palavras é um fenômeno de pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida em que está ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento.”

Os estudos dos pesquisadores soviéticos apontaram para uma descoberta importante para a psicologia: o significado das palavras evolui. As escolas de psicologia da época entendiam que o significado de uma palavra era associado a ela através da repetição simultânea de um determinado som e de um determinado objeto. Vygotsky (2000b) argumenta que:

“Não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera, mas o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma palavra.
(...)
Os significados das palavras são formações dinâmicas, e não estáticas. Modificam-se à medida que a criança se desenvolve e também de acordo com as várias formas pelas quais o pensamento funciona.”

Então, se os significados das palavras se modificam durante o desenvolvimento da criança, as relações entre pensamentos e palavras também se transformam e cada estágio no desenvolvimento do significado de uma palavra tem sua própria relação particular entre o pensamento e a fala.

Vygotsky (2000b) resume assim suas conclusões sobre a relação entre o pensamento e a palavra:

“A relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa, mas um processo, um movimento contínuo de vaivém do pensamento para a palavra e vice-versa. Nesse processo, a relação entre o pensamento e a palavra passa por transformações que, em si mesmas, podem se consideradas um desenvolvimento no sentido funcional. O pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir. Cada pensamento tende a relacionar alguma coisa com outra, a estabelecer uma relação entre as coisas. Cada pensamento se move, amadurece e se desenvolve, desempenha uma função, resolve um problema. Esse fluxo de pensamento ocorre como um movimento interior através de uma série de planos. A análise da interação do pensamento e da palavra deve começar com uma investigação das fases e dos planos diferentes que um pensamento percorre antes de ser expresso em palavras.”

Os dois planos da fala relacionados por Vygotsky são o interior (semântico e significativo) e o exterior (fonético). Apesar dos dois planos formarem uma verdadeira unidade, cada um deles tem leis próprias e um movimento independente.

Na fala exterior, a criança vai da parte para o todo: primeiro fala uma palavra, depois duas, até que consegue formar frases. No plano semântico, a criança parte do todo para as partes, iniciando por seu pensamento indiferenciado (uma frase) até chegar aos significados das palavras, enquanto unidades.

Isso já mostra a diferença entre os aspectos vocal e semântico da fala. Vygotsky (2000b), poeticamente, ilustra essa diferença:

“Exatamente por surgir de um todo indistinto e amorfo, o pensamento da criança deve encontrar expressão em uma única palavra. À medida que o seu pensamento se torna mais diferenciado, a criança perde a capacidade de expressá-lo em uma única palavra, passando a formar um todo composto. Inversamente, o avanço da fala em direção ao todo diferenciado de uma frase auxilia o pensamento da criança a progredir de um todo homogêneo para partes bem definidas. O pensamento e a palavra não provêm de um único modelo.”

Como nos estudos de Piaget, Vygotsky também constatou que as crianças usam formas gramaticais mais sofisticadas, ainda sem as compreenderem logicamente. A gramática precede a lógica (Vygotsky, 2000b). Porém, a divergência entre os aspectos semântico e fonético da fala também é encontrada em adultos. Para o mestre soviético uma correspondência literal entre esses aspectos só é possível de ser encontrada na matemática, pois na fala cotidiana:

“Qualquer parte de uma frase pode tornar-se o predicado psicológico, a parte que carrega a ênfase temática; por outro lado, significados totalmente diferentes podem ocultar-se por trás de uma estrutura gramatical. A harmonia entre a organização sintática e a organização psicológica não é tão predominante quanto se imagina – pelo contrário, é um requisito raramente encontrado.
(...)
Por trás das palavras existe a gramática independente do pensamento, a sintaxe dos significados das palavras. O enunciado mais simples, longe de refletir uma correspondência constante e rígida entre o som e o significado, é na verdade um processo. As expressões verbais não podem surgir plenamente formadas; devem se desenvolver gradativamente. Esse complexo processo de transição do significado para o som deve, ele próprio, ser desenvolvido e aperfeiçoado. A criança deve aprender a distinguir entre a semântica e a fonética e compreender a natureza dessa diferença.”

No início, para a criança a palavra faz parte do objeto que ela nomeia, ou melhor dizendo, conceitua. Nessa fase, elas explicam o nome dos objetos pelo seu atributo. Aqui cabe bem o exemplo de “Marcelo, marmelo, martelo”, de Ruth Rocha, quando diz que cadeira deveria se chamar sentador, devido à função que possui: serve para sentar.

Com o tempo e o seu desenvolvimento, a criança começa a diferenciar os planos vocal e semântico da fala, relacionando-os de forma diferente em cada etapa do seu desenvolvimento. A comunicação da criança com o seu meio, através da linguagem, está diretamente relacionada com a diferenciação dos significados das palavras na sua fala e na sua consciência.

Para explicar como ocorre essa diferenciação, Vygotsky (2000b) afirma que:

“Na estrutura semântica de uma palavra, fazemos uma distinção entre referente e significado; de modo correspondente, distinguimos o nominativo de uma palavra de sua função significativa. Quando comparamos essas relações estruturais e funcionais nos estágios primitivo, intermediário e avançado do desenvolvimento, descobrimos a seguinte regularidade genética: a princípio só existe a função nominativa; e, semanticamente, só existe a referência objetiva; a significação, independente da nomeação e o significado independente da referência surgem posteriormente e se desenvolvem ao longo de trajetórias que tentamos rastrear e descrever.
Só quando esse desenvolvimento se completa é que a criança se torna de fato capaz de formular o seu próprio pensamento e de compreender a fala dos outros. Até então, a sua utilização das palavras coincide com a dos adultos em sua referência objetiva, mas não em seu significado.”

Mais uma vez, prevalece a sabedoria popular: “as aparências enganam”. Não se pode confundir a simples expressão de uma palavra pela criança com a real compreensão do seu significado por ela, como tão bem foi demonstrado pelos estudos dos pesquisadores soviéticos.

Porém, existe um outro plano em que as relações entre pensamento e palavra precisam ser aprofundadas: o da fala interior.
Para Vygotsky (2000b) a fala interior não pode ser confundida com a memória verbal – apesar da memória ser uma de suas características -; também não é apenar o ‘pronunciar’ silencioso de palavras. Para ele, “a fala interior tem uma formação específica, com suas leis próprias, que mantém relações complexas com as outras formas de atividade de fala”. Em seu objetivo básico a fala interior e a fala exterior diferem: a fala interior é para si mesmo e a fala exterior é para os outros. A fala exterior consiste na tradução do pensamento em palavras, na sua materialização e objetivação. Na fala interior o processo é inverso, ou seja, a fala é interiorizada em pensamento.

Mas como investigar o processo de interiorização da fala? Vygotsky encontrou o caminho de investigação através do estudo da fala egocêntrica, a partir das observações de Jean Piaget. Porém, os dois expoentes do estudo do pensamento e da linguagem divergiram quanto à direção do movimento da fala egocêntrica. Vygotsky (2000b), analisando as conclusões de Piaget, diz que:

“Piaget argumenta que a fala egocêntrica da criança é uma expressão direta do egocentrismo do seu pensamento, o qual, por sua vez, é um meio-termo entre o autismo primitivo do seu pensamento e a sua socialização gradual. À medida que a criança cresce, o autismo desaparece e a socialização evolui, levando ao declínio do egocentrismo no seu pensamento e na sua fala.
Segundo a concepção de Piaget, em sua fala egocêntrica a criança não se adapta ao pensamento dos adultos. O seu pensamento permanece totalmente egocêntrico, o que torna a sua conversa incompreensível para os outros. A fala egocêntrica não tem nenhuma função no pensamento ou na atividade realista da criança – limita-se a acompanhá-los.”

Os estudos de Vygotsky apontaram para um caminho no sentido inverso: a fala egocêntrica é um estágio de desenvolvimento que precede a fala interior. Para o soviético:

“A fala egocêntrica é um fenômeno de transição das funções interpsíquicas para as intrapsíquicas, isto é, da atividade social e coletiva da criança para a sua atividade mais individualizada – um padrão de desenvolvimento comum a todas as funções psicológicas superiores. A fala para si mesmo origina-se da fala para os outros. Uma vez que o curso do desenvolvimento da criança caracteriza-se por uma individualização gradual, essa tendência reflete-se na função e na estrutura da fala.
(...)
A função da fala egocêntrica é semelhante à da fala interior: não se limita a acompanhar a atividade da criança; está a serviço da orientação mental, da compreensão consciente; ajuda a superar dificuldades; é uma fala para si mesmo, íntima e convenientemente relacionada com o pensamento da criança.”

O esquema abaixo ilustra o desenvolvimento da fala, de acordo com Vygotsky:

A criança se utiliza da fala egocêntrica para acompanhar sua atividade, realizar uma descarga emocional e planejar a atividade. Nesse planejamento, surge o elo com o processo psíquico superior: o pensamento. A fala é interiorizada psicologicamente antes de ser interiorizada fisicamente.

Se para Piaget a fala egocêntrica desaparece quando a criança supera a sua fase de egocentrismo, para Vygotsky ela se desenvolve numa curva ascendente, transformando-se em fala interior.

Durante o desenvolvimento da criança a freqüência de vocalização da fala egocêntrica diminui; porém, a sua estrutura e a sua função evoluem. Isso indica que o aparente desaparecimento da fala egocêntrica ‘esconde’ o nascimento de uma nova forma de fala, uma fala para si mesmo que não encontra expressão na fala exterior. “A decrescente vocalização da fala egocêntrica indica o desenvolvimento de uma abstração do som, a aquisição de uma nova capacidade: a de ‘pensar as palavras’, ao invés de pronunciá-las.” (Vygotsky, 2000b).

Os pesquisadores soviéticos realizaram diversos estudos de investigação com o objetivo de verificar essa transição da fala exterior para a fala interior, através da fala egocêntrica. Segundo Vygotsky (2000b), todos esses estudos possibilitaram essa conclusão: “Tanto subjetiva como objetivamente, a fala egocêntrica representa uma transição da fala para os outros à fala para si mesmo. Já tem função de fala interior, mas em sua expressão continua semelhante à fala social”.

Porém, as diferenças entre a fala exterior e a fala interior não podem ser resumidas à ausência de vocalização apenas. Há, na última, uma sintaxe especial que, se fosse vocalizada, pareceria desconexa e incompleta. Na fala exterior, freqüentemente, o objetivo é a comunicação com o outro. Então, o que é dito precisa ser explicado nos mínimos detalhes: o que se fala, de quem se fala – sujeito e predicado estão sempre presentes. Como na fala interior o outro é a própria pessoa que está produzindo a ‘fala’, algumas omissões e abreviações são possíveis. Esse fato também é possível na fala exterior quando todos os participantes sabem de quem se fala e/ou do que se fala. Quando os pensamentos dos participantes de um ato de comunicação são os mesmos, a função da fala se reduz ao mínimo, como diriam os poetas, ‘até chegar à linguagem do olhar’.

Mais uma vez, o lado artístico do cientista Vygotsky, assume a liderança na sua forma de ‘falar’ e permite essa construção lingüística que mais parece um texto poético (Vygotsky, 2000b):

“Aqueles que estão acostumados ao pensamento solitário e independente não apreendem com facilidade os pensamentos alheios, e são muito parciais quanto aos seus próprios; mas as pessoas que mantêm um contato mais estreito apreendem os complexos significados que transmitem uma à outra, por meio de uma comunicação ‘lacônica e clara’, que faz uso mínimo de palavras.”

Mas no universo da escrita as propriedades são um pouco diferentes, pois a comunicação escrita se baseia no significado formal das palavras e, já que o interlocutor está ausente, necessita de um número muito maior de palavras, do que a fala oral, para transmitir uma mesma idéia. “Na escrita, como o tom da voz e o conhecimento do assunto são excluídos, somos obrigados a utilizar muito mais palavras, e com maior exatidão. A escrita é a forma de fala mais elaborada.” (Vygotsky, 2000b)

Diria o mestre soviético, (Vygotsky, 2000b):

“A fala interior é uma fala quase sem palavras.
Com a sintaxe e o som reduzidos ao mínimo, o significado passa cada vez mais para o primeiro plano. A fala interior opera com a semântica, e não com a fonética.”

A sintaxe dos significados na fala interior possui três propriedades principais: (1) há o predomínio do sentido de uma palavra sobre o seu significado; (2) há o processo de aglutinação, onde uma palavra é composta para expressar idéias complexas; (3) há uma saturação de sentidos em uma única palavra, pois seriam necessárias muitas palavras para explicá-la na fala exterior.

As relações entre significado e sentido de uma palavra, merecem uma discussão mais aprofundada. Vygotsky (2000b), citando Paulhan, define o sentido de uma palavra como a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta; ou ainda, como um fenômeno complexo, móvel e variável, modificado de acordo com as situações e a mente que o utiliza, sendo quase ilimitado. O sentido de uma palavra é adquirido no contexto em que é empregada; contextos diferentes dar-lhe-ão sentidos diferentes. O significado, visto como uma potencialidade, como uma virtualidade, permanece estável ao longo de todas as suas variações de sentido.

Oliveira (2001) discute ainda a questão do significado e do sentido de uma palavra:

“O significado propriamente dito refere-se ao sistema de relações objetivas que se formou no processo de desenvolvimento da palavra, consistindo num núcleo relativamente estável de compreensão da palavra, compartilhado por todas as pessoas que a utilizam. O sentido, por sua vez, refere-se ao significado da palavra para cada indivíduo, composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e as vivências afetivas do indivíduo.”

Oliveira (1992), citando Vygotsky, discute a questão do significado na linguagem de acordo com o autor soviético:

“O significado é componente essencial da palavra sendo, ao mesmo tempo, um ato de pensamento, na medida em que o significado de uma palavra já é, em si, uma generalização. Isto é, no significado da palavra é que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal.
(...)
É no significado que se encontra a unidade das duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. São os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se no ‘filtro’ através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele.
(...)
Já o sentido da palavra liga seu significado objetivo ao contexto de uso da língua e aos motivos afetivos e pessoais dos seus usuários. Relaciona-se com o fato de que a experiência individual é sempre mais complexa do que a generalização contida nos signos.”

Oliveira (2001) esclarece a função da linguagem de intercâmbio social, como derivada da necessidade do homem de se comunicar com os seus semelhantes; já a função de pensamento generalizante é derivada da necessidade do homem de ordenamento do real, agrupando-se todas as ocorrências de uma mesma classe de objetos, eventos e situações sob uma mesma categoria conceitual. A autora argumenta que é essa função de pensamento generalizante que “torna a linguagem um instrumento de pensamento: a linguagem fornece os conceitos e as formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento”.

Lembro-me da palavra ‘rede’, que já me causou tantas confusões de sentido. Como tenho ‘um pé na informática’, o significado de ‘rede’ para mim, durante um longo tempo, era o de rede de computadores; porém, na minha trajetória profissional, coloquei “um outro pé na educação” e, então, ‘rede’ passou a ser a rede governamental de ensino. Foram muitas as confusões, pois dizer que ‘a rede não funciona’, faz sentido, quase sempre, nos dois contextos. Levei um tempo para perceber que os educadores não utilizavam ‘rede’ como a minha ‘rede’ original!! Além disso, como nordestina que sou, não dispenso uma ‘rede’ para uma boa soneca! Nesse caso, o contexto ajuda a atribuir o sentido da palavra.

Afirma Vygotsky (2000b):

“Esse enriquecimento das palavras que o sentido lhes confere a partir do contexto é a lei fundamental da dinâmica do significado das palavras.
(...)
Uma palavra deriva o seu sentido do parágrafo; o parágrafo, do livro; o livro, do conjunto de obras do autor.
(...)
Paulhan prestou ainda mais um serviço à psicologia ao analisar a relação entre a palavra e o sentido, mostrando que ambos são muito mais independentes entre si do que a palavra e o significado. Há muito se sabe que as palavras podem mudar de sentido. Recentemente ficou demonstrado que o sentido pode modificar as palavras, ou melhor, que as idéias freqüentemente mudam de nome. Da mesma forma que o sentido de uma palavra está relacionado com toda a palavra, e não com os sons isolados, o sentido de uma frase está relacionado com toda a frase, e não com palavras isoladas. Portanto, uma palavra pode às vezes ser substituída por outra sem que haja qualquer alteração de sentido. As palavras e os sentidos são relativamente independentes entre si.
Na fala interior, o predomínio do sentido sobre o significado, da frase sobre a palavra e do contexto sobre a frase constitui a regra.”

Apesar da fala exterior já conter algumas características da fala interior, esta não é o aspecto interior da fala exterior, assim como, a fala exterior não é uma mera vocalização da fala interior. A fala interior é uma função da fala autônoma. Continua sendo fala, visto que é o pensamento ligado por palavras. Se na fala exterior o pensamento é expresso por palavras, na fala interior as palavras morrem à medida que geram o pensamento. A fala interior é, em grande parte, um pensamento que expressa significados puros. (Vygotsky, 2000b).

O pensamento seria o plano mais interiorizado da fala interior, do pensamento verbal. Para Vygotsky (2000b):

“Todos os pensamentos criam uma conexão, preenchem uma função, resolvem um problema. O fluxo do pensamento não é acompanhado por uma manifestação simultânea da fala. (...) O pensamento tem sua própria estrutura, e a transição dele para a fala não é uma coisa fácil.”

Vygotsky (2000b) afirma, assumindo uma postura bastante freudiana, que “todas as frases que dizemos na vida real possuem algum tipo de subtexto, um pensamento oculto por trás delas. (...) Assim, uma frase pode expressar vários pensamentos, um pensamento pode ser expresso por meio de várias frases.”

Como passar da totalidade do pensamento para as unidades separadas e seqüenciadas das palavras em uma frase? Para Vygotsky, essa transição se dá pelo significado. Lembrando, que na fala sempre existe um pensamento oculto, um outro texto, não é possível uma transição direta do pensamento para a palavra. O pensamento passa, então, primeiro pelos significados e, depois, pelas palavras.

Mas o que gera o pensamento? Vygotsky (2000b), mais uma vez poeticamente, traz uma contribuição não muito discutida pelos que estudam a sua obra:

“O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções. Por trás de cada pensamento há uma tendência afetivo-volitiva, que traz em si a resposta ao último ‘por que’ de nossa análise do pensamento. Uma compreensão plena e verdadeira do pensamento de outrem só é possível quando entendemos sua base afetivo-volitiva.”

É exatamente este o trabalho do psicólogo clínico: compreender, a partir da fala exterior, o que pensa o seu cliente e quais as origens desse pensamento. Sempre, um enigma a decifrar. Ou, dito de outra forma (Vygotsky, 2000b):

“Para compreender a fala de outrem não basta entender as suas palavras – temos que compreender o seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente – também é preciso que conheçamos a sua motivação. Nenhuma análise psicológica de um enunciado estará completa antes de se ter atingido esse plano.”

O quadro abaixo resume o fluxo do desenvolvimento do pensamento verbal:

Vygotsky (2000b) reconhece que, na sua época (ainda hoje é assim), “o significado e todo o aspecto interior da linguagem – o aspecto voltado para a pessoa, não para o mundo exterior – tem sido até agora um território desconhecido”.

Oliveira (1992), citando Vygotsky, discute a idéia rejeitada pelo mestre soviético de divisão entre o intelecto e o afeto:

“A separação do intelecto e do afeto, enquanto objetos de estudo, é uma das principais deficiências da psicologia tradicional, uma vez que esta apresenta o processo do pensamento como um fluxo autônomo de ‘pensamentos que pensam a si próprios’, dissociado da plenitude da vida, das necessidades e dos interesses pessoais, das inclinações e dos impulsos daquele que pensa. Esse pensamento sem significado, incapaz de modificar qualquer coisa na vida ou na conduta de uma pessoa, como alguma espécie de força primeva a exercer influência sobre a vida pessoal, de um modo misterioso e inexplicável. Assim, fecham-se as portas à questão da causa e origem de nossos pensamentos, uma vez que a análise determinista exigiria o esclarecimento das forças motrizes que dirigem o pensamento para esse ou aquele canal. Justamente por isso a antiga abordagem impede qualquer estudo fecundo do processo inverso, ou seja, a influência do pensamento sobre o afeto e a volição”.

Oliveira (1992) apresenta como a psicologia soviética explica o processo de formação da consciência, a partir do processo de internalização da fala:

“O processo de internalização, isto é, de construção de um plano intrapsicológico a partir de material interpsicológico, de relações sociais, é o processo mesmo de formação da consciência humana.
(...)
A consciência representaria, assim, um salto qualitativo na filogênese, sendo o componente mais elevado na hierarquia das funções psicológicas humanas. Seria a própria essência da psique humana, constituída por uma inter-relação dinâmica, e em transformação ao longo do desenvolvimento, entre intelecto e afeto, atividade no mundo e representação simbólica, controle dos próprios processos psicológicos, subjetividade e interação social.”

Para o encerramento da discussão de Vygotsky (2000b), um trecho de seu texto científico/poético:

“A relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasce através das palavras. Uma palavra desprovida de pensamento é uma coisa morta e um pensamento não expresso por palavras permanece uma sombra.
(...)
A característica fundamental das palavras é uma reflexão generalizada da realidade. (...) O pensamento e a linguagem refletem a realidade de uma forma diferente daquela da percepção, são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana. As palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência como um todo. Uma palavra é um microcosmo da natureza humana.”

Questões para discussão

Saussure fala em estrutura; Vygotsky em desenvolvimento. Os dois ressaltam a importância da cultura, mais especificamente da linguagem, como forma de mediação do sujeito com o mundo que o cerca. Através da linguagem o sujeito se constitui, ao mesmo tempo em que transforma a realidade na qual está inserido. Porém, Vygotsky reconhece que ainda são necessárias muitas pesquisas para que se possa compreender o processo de constituição da vida intrapsíquica do ser humano, visto que a grande ênfase da sua escola de psicologia é o homem a partir da cultura.

Mas, como conceber os processos maturacionais de todas as crianças como sendo os mesmos, independentes da história de vida de cada uma em particular? Faço a opção da Psicanálise que privilegia a noção de estrutura, assumindo que não há um desenvolvimento igual ao outro, seja físico, social, emocional, ou ainda, espiritual (este último a partir da minha trajetória de vida).

Para a Psicanálise, o processo de desenvolvimento de cada criança necessita da linguagem e da fala para ser acionado. Essa postura é totalmente compatível com as idéias de Vygotsky, discutidas ao longo desse trabalho.

Um outro ponto a ser levantado é que as teorias sobre como as crianças se transformam são construídas por adultos: as crianças são observadas, analisadas e as pesquisas fornecem os resultados a partir do referencial teórico adotado. Porém, cada criança é sempre mais do que qualquer teoria consegue capturar.

Apesar da Psicanálise enfatizar a importância de se dar a palavra à própria criança, para que ela diga o que pensa e sente, não nega a importância do meio no qual a criança está inserida para a sua constituição enquanto sujeito. Mrech (1998) afirma:

“A criança internaliza a palavra dos adultos que convivem com ela. Ela acaba por acreditar na imagem que fazem dela. Assim, como os adultos costumam acreditar que a sua imagem a respeito da criança é a própria criança.”

Fico pensando que o pensamento usa como ‘matéria-prima’ as palavras que conhece, conhecimento esse construído a partir das relações intersubjetivas do sujeito. Então, qual seria a ‘matéria-prima’, ou ainda o ‘banco-de-dados’ de palavras/significados/sentidos, que uma criança disporia, sendo inserida num meio social desfavorável?

Tanto Saussure como Vygotsky reconhecem que a algo de social (língua e significado, respectivamente) e algo de individual (linguagem e sentido, respectivamente) na língua/linguagem.

Para Saussure, o signo lingüístico é a unidade de análise; já para Vygotsky a unidade de análise é a palavra. Ambos consideram a língua como um sistema, visto que possui tanto elementos como princípios que os governam.

A língua como algo vivo, em constante transformação, é apresentada pelas duas abordagens, pois Saussure defende a idéia da mutabilidade do signo lingüístico (tanto na face do significado quanto na do significante) e Vygotsky acredita que os significados das palavras se transformam ao longo do tempo.

Jakobson defende que a liberdade para se criar um discurso não é ilimitada, estando bastante restrita na criação dos fonemas de uma palavra, mais aberta na geração de frases que se libertam na construção de um enunciado. Vygotsky nos traz a idéia do pensamento amorfo no seu início – quando a criança só pronuncia uma palavra – transformando-se em um pensamento estruturado em subunidades – quando a criança já pronuncia frases inteiras, tendo a liberdade de compô-las a partir de seus referenciais. Teriam algumas semelhanças os caminhos sugeridos pelos dois teóricos?

Lembro-me do filme Neil, onde uma criança perde a mãe muito cedo e cresce sozinha numa floresta sem contato com outros seres humanos. Como é belo o seu processo de aquisição da língua!

Toda a beleza das línguas portuguesa e ‘brasileira’ foi tão bem capturada no filme Caramuru – a invenção do Brasil, quando índios (brasileiros) e portugueses começam a estabelecer um processo de comunicação, onde significado e sentido entram num jogo que confunde os interlocutores.

Capra afirma em sua obra que nos falta palavras para especificar as relações provenientes das descobertas da física quântica. Penso nos sem-teto, nos sem-terra, nos sem-comida, nos sem-palavras ...

‘Espelho o que dizem que sou’, diz a Psicanálise. ‘Sou constituído pela linguagem que conheço’, dizem Saussure e Vygotsky. ‘Tudo é linguagem’, diz Fraçoise Dolto.

Referências Bibliográficas

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Jakobson, R. (YYYY). Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: Lingüística e comunicação - São Paulo: Cultrix
La Taille, Y.; Oliveira, M. K.; Dantas, H. (1992). Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. – São Paulo: Summus
Mafra, T. M. (2000). Entre Crátilo e Hermógenes: o voto de Saussure. In: A Estrutura na Obra Lacaniana. – Rio de Janeiro: Companhia de Freud
Mrech, L. M. (1998). Além do sentido e do significado: a concepção psicanalítica da criança e do brincar. In: Kishimoto, T. M. (org.). O brincar e suas teorias. – São Paulo: Pioneira
Oliveira, M. K. (2001). Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento – um processo histórico. – São Paulo: Scipione
Rocha, R. Marcelo, marmelo, martelo. – 54a. ed. - Rio de Janeiro: Salamandra
Saussure, F. (1989). Curso de lingüística geral - São Paulo: Cultrix
Sirgado, A. P. (2000). O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na explicação do psiquismo humano. In: Cadernos Cedes: Pensamento e Linguagem – estudos na perspectiva da psicologia soviética, ano XX, no. 24. Unicamp, SP
Vigotski, L. S. (2000a). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. - 6a. ed. – São Paulo: Martins Fontes
Vigotski, L. S. (2000b). Pensamento e linguagem. - 2a. ed. – São Paulo: Martins Fontes

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