LÍNGUA PORTUGUESA: OBJETO DE ESTUDO
E DE PRAZER
Darcilia Simões (UERJ)
Iniciamos nossa comunicação propondo uma reflexão sobre quais poderiam ser as causas da insatisfação relacionada ao ensino-aprendizagem da língua portuguesa. Professores se queixam da baixa produtividade dos alunos; estes reclamam da falta de clareza dos professores. Afinal, o que poderia estar acontecendo?
Partindo de uma longa prática docente, assumimos o compromisso de buscar meios e modos de otimizar a prática de ensino da língua portuguesa, com vistas a tornar eficiente o processo pedagógico que, a nosso ver, deveria ser um facilitador da melhoria do desempenho do falante como conseqüência da ampliação do seu domínio lingüístico. Em decorrência disto, temos observado que docentes e discentes operam com o código lingüístico sem que o percebam como objeto de análise, uma vez que a tradição normativista parece haver turvado a vista destes usuários e gerado uma obrigação de uso, em lugar de um uso necessário e prazeroso.
Evocamos então palavras de Savan (In Santaella, 2001, 31) como mote para pensar:
Todo conhecimento, desde a adivinhação mais espontânea até a certeza demonstrativa, está fundamentado em evidências; ele é suportado por dados, credenciais, garantias e premissas. Os dados não são em si mesmos evidências para aquilo que eles atestam; eles devem ser interpretados para ser evidências, para dar alguma credibilidade àquilo que suportam.
Observe-se que o relevo dado ao suporte dos dados que garantem a confiabilidade de uma análise seria estímulo para uma série de indagações:
· Se a língua sustenta nossa expressão e disponibiliza recursos para a infinita interpretação da experiência fenomênica, mostrando-se inesgotável em suas potencialidades, por que os dados dessa língua não garantem a confiabilidade na sua aplicabilidade e eficiência?
· Por que se torna tão enfadonha e inócua a análise lingüística praticada na escola?
· De que valem as pressões para incorporação das normas gramaticais se a produção textual e a capacidade de leitura demonstrada nos certames de avaliação em massa tais como Vestibular, Exame Nacional do Ensino Médio, Exame Nacional de Cursos, etc. ainda se mantêm muito aquém do desejável?
O ensino da língua, em regra, continua sustentado por uma visão mecanicista da aquisição da língua. Chamamos de mecanicista a prática irrefletida de modelos textuais extemporâneos aliada à memorização das normas gramaticais como fórmulas únicas para a expressão lingüística, em detrimento não só do respeito à dialetação, como também da maleabilidade estilística de nosso idioma. Não utilizamos aqui a expressão língua mas idioma, porque nos referimos exclusivamente à realização brasileira da língua portuguesa.
Cumpre ressaltar que tal esclarecimento intenta reiterar a necessidade de que os dados (de qualquer que seja o corpus) sejam interpretados cientificamente, para que se tornem evidências e possam, assim, conferir credibilidade àquilo que tentam demonstrar. Desta forma, a descrição dos esquemas gramaticais poderia comprovar não só a flexibilidade da língua, mas, sobretudo, a representação das diferenças subjetivas que se inscrevem na formulação textual.
Por isso, vemos (e temos insistido em demonstrar) a necessidade de encarar-se o código lingüístico como objeto de estudo. Isto impõe uma mudança de atitude por parte do professor e do aluno: ambos devem passar da condição de receptores-repetidores-passivos da normatividade para a de observadores-analistas-testadores das potencialidades do código, submetendo-o às variáveis decorrentes de sua indispensável inserção nas práticas sociais.
A língua vista como veículo de interação precisa ajustar-se aos fins comunicativos. Logo, a adequação da expressão lingüística demanda a prática combinada da movimentação equilibrada do usuário nos eixos paradigmático e sintagmático, com a consciência de que os esquemas sintagmáticos “autorizados” representam apenas uma parcela das possibilidades do código lingüístico, e que a existência do modelo normativo, a princípio, se impõe pela necessidade de que se mantenha uma média de comunicação vernácula inteligível e ajustada ao que se entende como práticas sócio-administrativas, ou seja, práticas de interação lingüística inseridas num contexto político que gerencia as classes sociais.
Observado o exercício lingüístico numa perspectiva plural, torna-se possível verificar que a língua passa a ser vista como objeto científico, e o uso lingüístico nas atividades escolares ganha foros de trabalho experimental. Os dados do código tornam-se alvo da atenção do usuário (professor ou aluno), porque é preciso verificar sua capacidade de expressar esta ou aquela idéia, mediante contextualizações particulares. A partir disto, a variação lingüística torna-se também objeto de apreciação pelo simples fato de requisitar seleção diferenciada de itens léxicos e combinação específica destes, em conformidade com a temática, a finalidade, o ambiente e os interlocutores.
Impõe-se assim um redimensionamento da prática pedagógica da língua portuguesa no Brasil, de modo que as operações de ensino-aprendizagem realizadas com o material lingüístico conquistem a atenção, o interesse e o gosto pela expressão lingüística eficiente.
No que tange aos registros, a adequação da expressão transforma-se numa conseqüência imediata do uso continuado e produtivo do código lingüístico em contextos diversificados, por meio do que se torna possível contrastar formas diversas de representação de uma mesma idéia, assim como idéias distintas submetidas a formas análogas de representação.
Para alcançar essa meta — a de um ensino-aprendizagem do vernáculo produtivo, dinâmico e prazeroso — descobrimos na semiótica e na análise do discurso duas fortes aliadas. Ambas possibilitam um enfoque pragmático da análise lingüística, o qual viabiliza o desenvolvimento de uma atitude científica no trato do idioma, ao mesmo tempo que estimula que se deitem olhos estéticos sobre o material lingüístico, com vistas a testar sua eficiência comunicativa tanto no conteúdo quanto na forma.
Na perspectiva técnico-científica e pedagógica que vimos tentando difundir no seio da linha de pesquisa Ensino da língua portuguesa: história, políticas, sentido social, metodologias e pesquisa — linha 2 do Programa de Pós-graduação em Língua Portuguesa da UERJ—, têm sido desenvolvidos projetos que se ocupam da língua escrita e que, numa visão funcionalista, têm buscado destacar:
· A prática de uma semiótica lingüística de extração peirceana como moldura teórico-metodológica de alta eficiência na interpretação dos dados textuais.
· A semiose (ou geração de sentido) como conseqüência da atualização do sistema em atos de fala, onde se realizam trocas sociais efetivas.
· A rediscussão do signo lingüístico e a conseqüente ampliação da visão dual de Saussure para uma perspectiva triádica no modelo peirciano.
· A importância da estilística como objeto de estudo de altíssima relevância ao lado das gramáticas emergentes de cada uso lingüístico;
· A consideração da aliança indispensável entre a análise do discurso, a semântica e a pragmática, objetivando demonstrar que a formulação textual é condicionante e condicionada a um só tempo em função dos valores ideológicos, lingüísticos e sociais que se inscrevem nos signos e se manifestam nos atos de fala.
· A relativização das regularidades gramaticais em diálogo com as variantes dialetais, com o suporte da Lingüística textual.
· A definição de um lugar operacional para a gramática normativa, garantindo-lhe indispensabilidade e importância sem, contudo, desmerecer qualquer uso lingüístico diferente do uso padrão.
· O reconhecimento da eficiência comunicativa de qualquer registro lingüístico desde que afinado com os objetivos da comunicação pretendida.
· A identificação do diálogo entre os tipos sígnicos por que passam as formas da língua e suas funções orientadoras ou desorientadores na estruturação dos textos, considerado o tipo textual pretendido.
· A necessidade de uma reflexão sobre a distinção dos saberes lingüísticos docente e discente.
· A aquisição de um instrumental técnico-teórico com vistas a construir uma segurança tática indispensável ao trabalho docente.
O elenco de propósitos aqui apresentado não esgota os elementos que permeiam uma prática de ensino eficiente. Entretanto, temos convicção de que o importante é dar a partida num processo novo, diferenciado do que tradicionalmente se vem desenvolvendo, a despeito da sistemática constatação de sua ineficiência.
Para sustentar essa dimensão metodológica, chamamos ao texto palavras de Edgard Morin (2001, 65):
A educação deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria. O que supõe nele o enraizamento de sua identidade nacional.
Veja-se que o estudioso focaliza a educação democrática como base da cidadania, e temos convicção de que o domínio do idioma nacional é condição indispensável para o sucesso de um projeto educacional. Isto porque, tendo domínio do vernáculo, o indivíduo não só estará habilitado para a aquisição sistemática de informações como — e principalmente — para a auto-instrução, o que lhe garantiria a tão apregoada educação permanente. Ainda que não se deva confundir instrução e educação, é patente que a instrução é um significativo caminho para o aprimoramento da educação. Um indivíduo instruído tem horizontes ampliados, logo, seu trânsito social é facilitado e suas necessidades e práticas interacionais concorrem, via de regra, para o aprimoramento de seus hábitos e atitudes, inclusive no que tange à comunicação lingüística (ou verbal).
Ainda baseada nas idéias de Morin (1996: 98), acredito na teoria de que
a organização complexa do todo requer a inscrição do todo em cada uma das suas partes singulares; assim a complexidade organizacional do todo necessita da complexidade organizacional das partes, a qual necessita recorrentemente da complexidade organizacional do todo.
E essa crença se sustenta na tese de que a organização do todo (no caso, a sociedade) demanda a construção de políticas que garantam a difusão organizada do idioma nacional como instrumento de estruturação social, no sentido de promover a permeabilidade dos estratos sociais a partir da formação de cidadãos competentes para lidar com a comunicação em sua variedade, entendendo-a como riqueza cultural, como marca da cor local. Assim, a inscrição da organização complexa do todo nas partes se faria de forma espontânea, uma vez que sinalizaria com hipóteses de progresso individual e social. Quem não se anima com a idéia de melhoria da qualidade de vida?
Sem perder o foco de nossa comunicação que é o ensino da língua nacional, lembramos aqui a importância das políticas públicas no que concerne à oferta de melhores oportunidades de formação sistemática ao cidadão, porque para nós é indiscutível a relação entre domínio da língua e ampliação da visão de mundo. E, para que o efetivo domínio da língua aconteça, é preciso que o indivíduo entenda a língua como expressão humana, nacional, cosmogônica. Por conseguinte, aprender a língua não seria mais uma obrigação, mas uma necessidade, a satisfação de um desejo de realização pessoal e sociocultural.
Ainda na esteira do pensamento de Morin (2000: 35), temos que
O conhecimento os problemas-chave, das informações-chave relativas ao mundo, por mais aleatório e difícil que seja, deve ser tentado sob pena de imperfeição cognitiva, mais ainda quando o contexto atual de qualquer conhecimento político, econômico, antropológico, ecológico... é o próprio mundo. A era planetária necessita situar tudo no contexto e no complexo planetário. O conhecimento do mundo como mundo é necessidade ao mesmo tempo intelectual e vital.
E o problema fundamental do cidadão do novo milênio é o acesso às informações sobre o mundo, e a possibilidade de articulação e de organização das mesmas. Isto demanda domínio de linguagem, mormente da língua nacional.
Quando propomos uma metodologia cruzada de que participam a Semiótica, a Análise de Discurso e a Lingüística Textual como suporte para uma análise eminentemente estilística do produto lingüístico, baseamo-nos na indiscutível necessidade de um enfoque pragmático do texto — o veículo de comunicação lato e estrito sensu. Isto porque a comunicação é a meta principal do homem; por isso a comunicação se insere nas práticas sociais que, a seu turno, são índices de uma visão de mundo particular.
Destarte, aprender uma língua implica a aquisição de valores socioculturais específicos que atuam como transformadores do perfil dos indivíduos, permitindo-lhes a realização como indivíduos e como cidadãos; pois o homem só se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura, e a língua é fato cultural da maior importância (quiçá o mais importante!), logo precisa ser tratada com o necessário relevo, principalmente no que tange a sua difusão.
Para demonstrar o empenho na difusão da idéia de um ensino eficiente do vernáculo e de sua multiplicidade, apresentamos a seguir uma relação das dissertações de mestrado que orientamos:
Elizabeth C. de Albuquerque | O exótico e o vernáculo no léxico de Maíra | 2000 |
Elaine Ferrari Antunes | O falar caipira de Chico Bento | 2000 |
Aira Suzana R. Martins | Uma análise estilístico-semiótica dos sinais de pontuação em Tutaméia. | 2000 |
Manuel Ferreira da Costa | Análise semiótica de promessas religiosas e simpatias | 2000 |
Gláucia Regina da Rocha Francisco Villela | Língua portuguesa: estudos lexicográficos e reflexões sobre o ensino | 2000 |
Suzana Reis da Silva Bastos | O intertexto e a formação do sentido textual | 2001 |
Vera Fontana de Castro | As pedras na poesia de João Cabral de Melo Neto: uma leitura semiótica. | 2001 |
Vera Costa Pereira Bomfim | Como avaliar o texto-resposta em provas de geografia e história | 2001 |
Maria Thereza Santiago da Costa | Os mecanismos coesivos e a produção de textos na graduação em engenharia: um estudo de caso | 2002 |
Tereza Cristina Gama e Silva Assaife | Questões discursivas de história e geografia: um estudo do texto do professor. | 2002 |
Todos os trabalhos listados desenvolveram análises com suporte numa perspectiva metodológica teórica tridimensional: semiótica, lingüística e estilística. Todos contemplaram a língua portuguesa como domínio fundamental e aplicaram-se na descoberta de métodos e técnicas de abordagem dos fatos lingüísticos que aproximassem código e usuário por meio da observação da dinâmica da língua.
Concluo, então, minha exposição retomando o título dado ao presente texto Língua portuguesa: objeto de estudo e de prazer, para deixar claro que o objeto de prazer se constrói como conseqüência da descoberta do potencial do objeto de estudo, uma vez que o código lingüístico é responsável pela representação simbólica da experiência a partir do que o homem se completa enquanto ser de linguagem.
Referências bibliográficas:
MOURIN, Edgard. (1996) O método III. O conhecimento do conhecimento. 2ª ed. Lisboa: Europa-América.
-.-.-.-.-.-.-. (2000) Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez.
-.-.-.-.-.-.-. (2001) A cabeça bem feita - Repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
SANTAELLA, Lucia (2001) Matrizes da Linguagem e pensamento. Sonora, visual e verbal. São Paulo: Iluminuras/FAPESP.