Administração Contemporânea
MERCEJANE WANDERLEY SANTANA*
Paradigmas eParadoxos da Administração Contemporânea
Constitui-se em um lugar-comum na literatura sobre administração introduzir qualquer tema referindo-se a mudanças que ocorreram, e estão ocorrendo, velozmente, causando impactos diretos nas organizações, nos seus processos, nas suas estruturas, no seu gerenciamento. Mas essas mudanças efetivamente ocorreram provocadas por fatos, revoluções nas comunicações, na microeletrônica, na biotecnologia, na genética, na tecnologia, enfim, a globalização. O cenário é considerado de turbulências, incertezas, provocando uma proliferação assustadora de inovações,acirramento da concorrência, da competitividade, rompendo-se “paradigmas” e impondo-se novos“conceitos” e novas “diretrizes” para as organizações. Fala-se e escreve-se muito sobre valores e modelos tradicionais que passam a ser substituídos por outros mais compatíveis com este contexto contemporâneo, intensificando a disseminação de “novos” modelos e “modismos” de gestão na administração, em nome datão apregoada mudança.
OS CAMINHOS DA MUDANÇA
As estruturas organizacionais consideradas tradicionais, piramidais, centralizadas, estáveis, com rígida divisão do trabalho e impessoais, dão lugar a novas estruturas, em rede, horizontais, descentralizadas e temporárias, adequadas às contingências ambientais. O homem, que nos modelos tradicionais era consideradoum ser econômico, cuja motivação predominante era o salário, conduzido como um subordinado obediente às regras e normas e treinado para ser um especialista, passa a ser visto como um ser pensante, criativo, um colaborador chamado a participar das decisões, um profissional multifuncional a quem é dada autonomia, poder, responsabilidades e iniciativa, e de quem são cobradas muitas qualidades, habilidades e competência. As relações e a comunicação entre as pessoas nas organizações passam a ser mais informais, pessoais, sustentadas com base na confiança, na colaboração, condições adequadas para a promoção da agilidade e rapidez necessárias. Estes são, portanto, alguns dos novos paradigmas da administração, das chamadas organizações pós-industriais, pós-burocráticas, pós-modernas, orgânicas, das organizações da aprendizagem. Estas, também chamadas de organizações inteligentes, passam a ser visualizadas como um locus de conhecimento, de aprendizagem. E nesta perspectiva muitos dos antigos conceitos e visões da empresa, como os de carreira, estabilidade, fidelidade, remuneração, dentre outros, estariam passando por modificações. Nessas organizações inteligentes os integrantes deverão ter uma visão global e sistêmica dos seus processos,desenvolvendo, como já mencionado, a capacidade de ser generalistas ou mesmo multi-especialistas, atuando, desta forma, em várias funções. Nesta ótica, pode-se dizer também que habilidades de negociação, de análise, de busca de consenso, de crítica, deverão ser adquiridas. O emprego não é mais uma garantia de estabilidade, daí por que o lema deixa de ser “vista a camisa da empresa” e passa a ser “vista a camisa do mercado”; a qualificação, as diversas habilidades e competências garantirão a empregabilidade. Os horários serão cada vez mais flexíveis, assim como os locais de trabalho, que tenderãoa ser virtuais. A remuneração deixará de ser por atividade e passará a ser por desempenho, resultados, havendo, em proporções cada vez maiores, um compromisso dos funcionários com o resultado geral da empresa. Há uma valorização do capital social, uma vez que este passa a ser encarado como o principal ativo da organização.David Cohen, em matéria da Revista Exame (2000),menciona o conhecimento como uma nova forma de riqueza que está se impondo nesta entrada de milênio econsidera que, no mundo do conhecimento, o capital eo trabalho “estão ficando menos antagônicos e muito mais parecidos em seu funcionamento. Capital é cada vez mais o capital intelectual, capital de relacionamentos, capital de marca, capital da informação. E trabalho é cada vez mais a capacidade de gerar e gerir idéias, deconectar-se a outros trabalhadores e a clientes”. Assim descritos, esses valores, essas novas ações, dão a impressão de que se estariam configurando organizações mais saudáveis. Flexibilidade, autonomia,realização profissional, qualificação, criatividade, valorização do capital humano passam uma idéia de liberdade, de maior felicidade, um novo mundo do trabalho. Até porque as organizações tradicionais,tayloristas e burocráticas, foram e são consideradassufocantes com suas regras excessivas, formalidade e controle exagerados, rígida divisão do trabalho, levandoao mecanicismo, à robotização, à inibição da criatividade e, conseqüentemente, à infelicidade no trabalho. As exigências para as organizações sobreviverem no mundo contemporâneo cada vez mais competitivo são,no mínimo, serem descentralizadas, flexíveis,organizadaspor processos, centros de aprendizagem,tecnologicamente avançadas, desburocratizadas,ecológicas, abertas, diversificadas. A contraparte disso éque o grau elevado de exigência do homem enquanto força de trabalho que deverá atuar nessa nova empresa é, na mesma proporção, o que é exigido de uma organização para sobreviver nesse mesmo contexto.
O DISCURSO E A PRÁTICA
Estaríamos, pois, vivendo uma nova era. Mas será que essa nova era já chegou realmente para o setor produtivo? Será esta a tônica que já está incorporada à prática nas organizações contemporâneas? Ou o discurso é diferente da prática? Quais as contradições? Existe a possibilidade, diante de depoimentos e de pesquisas, desse ser mais um engodo proporcionado pelo capital ao trabalho. A constatação de alguns segmentos, de determinadas correntes que refletem sobre essas questões, é que paralelamente ao descortinado por esse discurso, coexiste uma outra realidade. Há uma ondade reestruturações, cuja palavra de ordem é enxugar,diminuir custos, eliminar gorduras e dar resultados. E com isso as reestruturações, ou seja, as reengenharias,os downsizings, as terceirizações, de uma forma simplificada, surgem como sinônimos de cortes, de redução de custos. E os “recursos” humanos são os primeiros a serem descartados.Nunca se fez tantas demissões em nome da necessidade das organizações serem enxutas, leves e, com isso, mais rápidas. E o que é pior, demissões sem o menor critério, até mesmo por e-mail, tornando evidente a “coisificação”do homem, a sua condição de recurso descartável dentro de um sistema de produção. A tecnologia, a flexibilização da mão-de-obra contribuem de forma considerável para o aumento da precariedade e do desemprego, tornando o ambiente organizacional hostil, competitivo e individualista. Como isso é possível, se o discurso é que as empresas modernas, centros de negócios, celulares, devem dar ênfase aos grupos, aos times, à colaboração?!. A ordem do dia é que é preciso ser dinâmico, versátil, dominar vários idiomas, ser qualificado, produtivo,apresentar resultados e superar-se a cada recorde. E é preciso ser muito mais, ser feliz, ser bem-humorado,ser maduro e responsável, ser intuitivo, ser crítico, ser motivado, ter iniciativa, autonomia, autodesenvolvimento, autoconhecimento, saber trabalhar em equipe, ter desenvoltura, saber liderar e lidar com aspessoas, ser receptivo às novas ferramentas da tecnologiada informação, ser competitivo, empreendedor e muito mais.Quanto à formação profissional não é suficiente ter um curso de graduação, mas ter pós-graduação, mestrado, MBA no exterior, considerando-se essencial a experiênciade vida no exterior. Este é o lema do mercado! A justificativa é que não há empregos para todos, só paraos mais talentosos, os mais capazes, ou os mais espertos.O indivíduo tem que garantir e aumentar sua empregabilidade a cada instante, demostrando comprometimento e motivação com a empresa. Nunca se fez tantas demissões em nome da necessidade das organizações serem enxutas, leves e, com isso, mais rápidas. E o que é pior, demissões sem o menor critério, até mesmo por e-mail, tornando evidente a “coisificação” do homem, a sua condição de recurso descartável dentro de um sistema de produção. a regra que se traduz em instabilidade emocional, ansiedade, tensão e insegurança. Os cortes, por sua vez, fazem com que os que permanecem nas empresas trabalhem mais, assumam muitas vezes as funções dos que saíram, havendo, com isso, excesso de trabalho e de horas trabalhadas. Como inovar e ser criativo em condições tão adversas? De acordo com Lívia Barbosa (2000), antropóloga carioca e professora universitária, o conjunto de atributose habilidades exigidas “é tão grande que temos que supor duas hipóteses: ou já se nasce com elas – e, neste caso,estaríamos falando de um habitante do planeta Krypton, como o Super-Homem -, ou se passa o resto da vida em treinamento intensivo para alcançar o perfil exigido”. A autora menciona ainda que “muitas das exigências são logicamente incompatíveis e se referem a diferentes dimensões da pessoa”. E mais, “a ‘listinha’, embora à primeira vista possa parecer dinâmica e atraente, na prática paralisa as pessoas, devido à quantidade de demanda. (...) ela aponta para direções diversas e forma contradições praticamente insolúveis que transparecem na tensão da vida organizacional de hoje”. E a tão apregoada flexibilidade no horário e no local de trabalho? Será uma realidade na maioria das empresas? A matéria da Revista Exame, de Fábio Peixoto (13/06/2001) fala da substituição de relógios de pontos antigos por catracas eletrônicas. O autor questiona: “seria a vitória do trabalho flexível sobre a disciplina fordista?” Ele mesmo responde que a coisa não é bem assim: discretas e informatizadas, as catracas eletrônicas, além de selecionar as pessoas que entram na empresa,incorporam o relógio de ponto, registrando o nome do funcionário e o horário em que ele chegou e saiu da empresa. E essas informações podem ser arquivadas ou consultadas em tempo real por pessoas que estejam na empresa ou por um gerente que esteja viajando, via internet. A matéria menciona ainda que empresas estariam colocando catracas no refeitório, na porta da sala de trabalho e até mesmo no banheiro, local que, segundo um gerente financeiro, seria responsável pela diminuição da produtividade em sua empresa, uma vez que alguns funcionários passavam muito tempo no toalete. O filmeTempos Modernos de Charles Chaplin, que faz uma crítica ao período pós-revolução industrial, à prática do ideário taylorista, tem uma cena que mostra o presidente da empresa vigiando o funcionário que vai ao banheiro relaxar. Alguma coisa mudou?Jeffrey Pfeffer, especialista de Stanford em comportamento organizacional, faz uma crítica aos dois novos mitos agregados pelo mundo corporativo nos últimos tempos, que seriam a lealdade e a escassez de talentos. Considera que é uma realidade para um determinado tipo de organização que ele chamou de empresa tóxica. Nela os funcionários têm um horário flexível tóxico, algo como: “trabalhe as dezoito horas que preferir”. E menciona: “este é um outro sinal de toxicidade de uma empresa: exigir que as pessoasescolham entre ter uma vida e ter uma carreira. Uma empresa tóxica diz às pessoas que quer possuí-las. Existe uma velha piada sobre trabalhar na Microsoft: ‘Oferecemos flexibilidade de horário. Você pode trabalhar as 18 horas que preferir’”. Eis uma outra contradição da administração moderna. Quando se fala em empresas virtuais, em flexibilização,em progresso tecnológico, tem-se a impressão de que haverá mais tempo livre, um equilíbrio entre carreira e qualidade de vida. E a prática, a vivência organizacional evidencia uma outra realidade: funcionários trabalhando cada vez mais, horas extras aumentando e diminuição do tempo para o lazer e para a família. O que resulta em pessoas cada vez mais estressadas e doentes. A matéria da Revista VEJA de Aida Veiga, Tempos Modernos (05/04/2000), registra que “o último levantamento do Bureau of Labor Statistics, o órgão do governo americano que coleta esse tipo de dado, mostra que em janeiro de 2000 a média nacional de horas trabalhadas nos Estados Unidos era de quarenta por semana, e no Vale do Silício, a capital do ultra-industrios o ramo da informática, ela bate em sessenta horas”. E a matéria cita outros exemplos revelando, também, que houve diminuição dos salários. A tecnologia da informação possibilitou novas formas de controle. A reestruturação das organizações, com diminuição de níveis hierárquicos, aumentou a responsabilidade e a cobrança sobre os executivos. Pesquisas revelam que o aumento do volume de trabalho nos últimos anos é, portanto, universal, tornando comum a figura do workaholic, que é o viciado em trabalho.Richard Sennet (1999) menciona que as empresas, tendo como ponto de partida a necessidade de dar retorno aos seus acionistas no curto prazo e atender as demandas dos consumidores, estão se reestruturando para serem mais rápidas, passando, com isso, a dar mais autonomia a seus funcionários e a permitir uma nova organizaçãodo tempo no local de trabalho, o que ele denominou de “flexitempo”. Para ele todos esses artifícios são paradoxais, na medida em que surgem sob a insígnia da liberdade, quando, na verdade, são formas mais sofisticadas de dominação, controle e alienação. O
planejamento flexível da jornada de trabalho e o trabalho virtual, permitiram que o relógio de ponto nomonitoramento do empregado fosse substituído pela tela do computador.
OS REFLEXOS NO INDIVÍDUO
Maria Ester de Freitas (1999) considera que no momento em que a empresa dissemina que o que vale hoje é a empregabilidade, que o mercado é que deve ser considerado pelo profissional, isso se torna uma faca de dois gumes, porque a empresa está fomentando a figura do estrategista individual, do carreirista, aquele que só tem compromisso consigo mesmo, com seu sucesso, cujo passe está sempre à venda e cuja lealdade é somente ao corpo que está dentro da camisa. O estrategista substituiu “o profissional sério consciencioso, leal e de longo prazo”. Nesse sentido, para ela, empresae talentos caminham em direções opostas.Richard Sennet (1999) faz uma reflexão sobre o que ele chama de “capitalismo flexível” no mundo do trabalho e suas conseqüências sobre o indivíduo e asociedade. Para ele as exigências de flexibilidade na atuação profissional e a fugacidade das relações trabalhistas estariam destruindo valores tradicionais, sólidos, como o compromisso, a confiança e a lealdade, fundamentais para a formação do caráter humano. E isso reflete na sociedade de uma maneira geral, minando o tecido social, uma vez que, esse desaparecimento das relações de longo prazo no trabalho se reproduzem na vida social, dificultando relações mais duradouras com amigos, com membros da comunidade, e o que é mais agravante, estaria causando impactos na formação do caráter das crianças, que não vêm no comportamento de seus pais o exemplo das virtudes que eles pregam. Jean-François Chanlat (1994), por sua vez, faz críticas à representação que o mundo da gestão fez do ser humano, verificada sobretudo nas pesquisas e estudos do comportamento organizacional, dominados pelosanglos-saxões, que se distanciaram das ciências humanas, contribuindo para o predomínio de uma lógica econômica, utilitária, que, na sua concepção, vem minando as organizações, a sociedade e a própria vida.E o resultado disso é a insatisfação e o desprazer no trabalho, muitos executivos infelizes, desemprego crescente e exclusão social.
CONCLUINDO...
O que pensar de tudo isso? O que concluir? Alguns autores consideram que diante de tanta turbulência, tantas incertezas e inquietações, é normal a convivência decontradições, conflitos e rupturas.Essa convivência será salutar na medida em que aponte direções, provoque rupturas reais, mostre caminhos, permita mudanças positivas do ponto de vista do homem e da sua inserção no mundo organizacional. O momento e o contexto exigem reflexões e a adoção de posturas verdadeiras e éticas. Se vivemos numa sociedade organizacional é necessário que haja, cada vez mais, um comprometimento com a saúde e a vida das pessoas que compõem as organizações e, consequentemente, essasociedade.Refletir sobre essas questões leva a que se pergunte porque não é possível que tanto progresso tecnológico, tantos avanços científicos e conquistas não se revertam embenefícios para o homem, para sua felicidade e para uma vida melhor. O novo ambiente socioorganizacional com toda a sua complexidade requer um tratamento muito especial, uma análise profunda e muita sensibilidade.Como diz Maria Ester de Freitas (1999) “não está sendo solicitado que as empresas abram mão de sua visão monetarizada de mundo, mas que elas honrem em ações o que costumam pregar em discursos que dizem que o ser humano é o seu principal ‘ativo’”. Que haja de fato uma humanização da empresa, que seu objetivo não se restrinja ao retorno de lucros para os acionistas, mas que vá além, que seja também o bem-estar da comunidade em que atua, a satisfação e a qualidade de vida de seus funcionários, a preservação do meio ambiente, a transparência e a ética. É preciso, como diz Jean-François Chanlat (1994), acabar com a hegemonia do discurso tecnocrático e repensar essa visão econômica e contábil do ser humano. O crescimento sem emprego, a flexibilização da mão-de-obra e suas conseqüências, o trabalho cada vez mais informatizado exigindo qualificações inalcançáveis paramuitos, enfim, as estratégias financeiras dominantes não foram produzidas por entidades abstratas, não são obras do acaso, mas elaboradas por pessoas, principalmente da área de gestão, que têm essa visão quantitativa, que consideram que o social deve estar a serviço do econômico e não o contrário. E François Chanlat nosdiz: “se o social está a serviço do econômico, precisamos derrubar essa proposta. Enquanto atores nesse campo, devemos, na medida do possível, sustentar posições humanistas, tanto ao nível do saber como das ações, e assim participar dessa mudança de perspectiva”. As distinções vistas até então entre valores tradicionais e valores modernos no cenário organizacional parecem não passar de um aparente antagonismo, uma falsa dicotomia, uma vez que as ações produzidas pelos gestores organizacionais ainda são movidas com base na especulação e no lucro. Não se promovem mudanças operando apenas no nível retórico. Uma mudança de visão de mundo, uma mudança de concepção do ser humano, precisa ser acompanhada de ações efetivas que superem uma visão fragmentada, reducionista, ainda com base cartesiana. E os resultados são as mazelas já mencionadas do cenário contemporâneo que exigem uma verdadeira mudança de paradigma. Sob o ponto de vista de uma corrente de pesquisadores, algumas organizações já estão redirecionando as suas ações, tornando a sua gestão mais humana, atuando com responsabilidade social, caminhando, portanto, na direção de uma ruptura real e se apoiando no paradigma emergente da abordagem holística, integrada. Diferentemente da visão reducionista, essa nova abordagem propõe que as partes sejam tratadas segundo seus mútuos relacionamentos e o relacionamento como todo; que o homem seja visto sob uma perspectiva integrada, um todo de natureza física, emocional, intelectual e espiritual; enfim, que haja uma valorização do ser humano, que visto sob essa perspectiva integrada, não pode ser considerado como um mero recurso econômico, quantitativo e descartável, mas como um gerador de recurso.
OS CAMINHOS DA MUDANÇA
As estruturas organizacionais consideradas tradicionais, piramidais, centralizadas, estáveis, com rígida divisão do trabalho e impessoais, dão lugar a novas estruturas, em rede, horizontais, descentralizadas e temporárias, adequadas às contingências ambientais. O homem, que nos modelos tradicionais era consideradoum ser econômico, cuja motivação predominante era o salário, conduzido como um subordinado obediente às regras e normas e treinado para ser um especialista, passa a ser visto como um ser pensante, criativo, um colaborador chamado a participar das decisões, um profissional multifuncional a quem é dada autonomia, poder, responsabilidades e iniciativa, e de quem são cobradas muitas qualidades, habilidades e competência. As relações e a comunicação entre as pessoas nas organizações passam a ser mais informais, pessoais, sustentadas com base na confiança, na colaboração, condições adequadas para a promoção da agilidade e rapidez necessárias. Estes são, portanto, alguns dos novos paradigmas da administração, das chamadas organizações pós-industriais, pós-burocráticas, pós-modernas, orgânicas, das organizações da aprendizagem. Estas, também chamadas de organizações inteligentes, passam a ser visualizadas como um locus de conhecimento, de aprendizagem. E nesta perspectiva muitos dos antigos conceitos e visões da empresa, como os de carreira, estabilidade, fidelidade, remuneração, dentre outros, estariam passando por modificações. Nessas organizações inteligentes os integrantes deverão ter uma visão global e sistêmica dos seus processos,desenvolvendo, como já mencionado, a capacidade de ser generalistas ou mesmo multi-especialistas, atuando, desta forma, em várias funções. Nesta ótica, pode-se dizer também que habilidades de negociação, de análise, de busca de consenso, de crítica, deverão ser adquiridas. O emprego não é mais uma garantia de estabilidade, daí por que o lema deixa de ser “vista a camisa da empresa” e passa a ser “vista a camisa do mercado”; a qualificação, as diversas habilidades e competências garantirão a empregabilidade. Os horários serão cada vez mais flexíveis, assim como os locais de trabalho, que tenderãoa ser virtuais. A remuneração deixará de ser por atividade e passará a ser por desempenho, resultados, havendo, em proporções cada vez maiores, um compromisso dos funcionários com o resultado geral da empresa. Há uma valorização do capital social, uma vez que este passa a ser encarado como o principal ativo da organização.David Cohen, em matéria da Revista Exame (2000),menciona o conhecimento como uma nova forma de riqueza que está se impondo nesta entrada de milênio econsidera que, no mundo do conhecimento, o capital eo trabalho “estão ficando menos antagônicos e muito mais parecidos em seu funcionamento. Capital é cada vez mais o capital intelectual, capital de relacionamentos, capital de marca, capital da informação. E trabalho é cada vez mais a capacidade de gerar e gerir idéias, deconectar-se a outros trabalhadores e a clientes”. Assim descritos, esses valores, essas novas ações, dão a impressão de que se estariam configurando organizações mais saudáveis. Flexibilidade, autonomia,realização profissional, qualificação, criatividade, valorização do capital humano passam uma idéia de liberdade, de maior felicidade, um novo mundo do trabalho. Até porque as organizações tradicionais,tayloristas e burocráticas, foram e são consideradassufocantes com suas regras excessivas, formalidade e controle exagerados, rígida divisão do trabalho, levandoao mecanicismo, à robotização, à inibição da criatividade e, conseqüentemente, à infelicidade no trabalho. As exigências para as organizações sobreviverem no mundo contemporâneo cada vez mais competitivo são,no mínimo, serem descentralizadas, flexíveis,organizadaspor processos, centros de aprendizagem,tecnologicamente avançadas, desburocratizadas,ecológicas, abertas, diversificadas. A contraparte disso éque o grau elevado de exigência do homem enquanto força de trabalho que deverá atuar nessa nova empresa é, na mesma proporção, o que é exigido de uma organização para sobreviver nesse mesmo contexto.
O DISCURSO E A PRÁTICA
Estaríamos, pois, vivendo uma nova era. Mas será que essa nova era já chegou realmente para o setor produtivo? Será esta a tônica que já está incorporada à prática nas organizações contemporâneas? Ou o discurso é diferente da prática? Quais as contradições? Existe a possibilidade, diante de depoimentos e de pesquisas, desse ser mais um engodo proporcionado pelo capital ao trabalho. A constatação de alguns segmentos, de determinadas correntes que refletem sobre essas questões, é que paralelamente ao descortinado por esse discurso, coexiste uma outra realidade. Há uma ondade reestruturações, cuja palavra de ordem é enxugar,diminuir custos, eliminar gorduras e dar resultados. E com isso as reestruturações, ou seja, as reengenharias,os downsizings, as terceirizações, de uma forma simplificada, surgem como sinônimos de cortes, de redução de custos. E os “recursos” humanos são os primeiros a serem descartados.Nunca se fez tantas demissões em nome da necessidade das organizações serem enxutas, leves e, com isso, mais rápidas. E o que é pior, demissões sem o menor critério, até mesmo por e-mail, tornando evidente a “coisificação”do homem, a sua condição de recurso descartável dentro de um sistema de produção. A tecnologia, a flexibilização da mão-de-obra contribuem de forma considerável para o aumento da precariedade e do desemprego, tornando o ambiente organizacional hostil, competitivo e individualista. Como isso é possível, se o discurso é que as empresas modernas, centros de negócios, celulares, devem dar ênfase aos grupos, aos times, à colaboração?!. A ordem do dia é que é preciso ser dinâmico, versátil, dominar vários idiomas, ser qualificado, produtivo,apresentar resultados e superar-se a cada recorde. E é preciso ser muito mais, ser feliz, ser bem-humorado,ser maduro e responsável, ser intuitivo, ser crítico, ser motivado, ter iniciativa, autonomia, autodesenvolvimento, autoconhecimento, saber trabalhar em equipe, ter desenvoltura, saber liderar e lidar com aspessoas, ser receptivo às novas ferramentas da tecnologiada informação, ser competitivo, empreendedor e muito mais.Quanto à formação profissional não é suficiente ter um curso de graduação, mas ter pós-graduação, mestrado, MBA no exterior, considerando-se essencial a experiênciade vida no exterior. Este é o lema do mercado! A justificativa é que não há empregos para todos, só paraos mais talentosos, os mais capazes, ou os mais espertos.O indivíduo tem que garantir e aumentar sua empregabilidade a cada instante, demostrando comprometimento e motivação com a empresa. Nunca se fez tantas demissões em nome da necessidade das organizações serem enxutas, leves e, com isso, mais rápidas. E o que é pior, demissões sem o menor critério, até mesmo por e-mail, tornando evidente a “coisificação” do homem, a sua condição de recurso descartável dentro de um sistema de produção. a regra que se traduz em instabilidade emocional, ansiedade, tensão e insegurança. Os cortes, por sua vez, fazem com que os que permanecem nas empresas trabalhem mais, assumam muitas vezes as funções dos que saíram, havendo, com isso, excesso de trabalho e de horas trabalhadas. Como inovar e ser criativo em condições tão adversas? De acordo com Lívia Barbosa (2000), antropóloga carioca e professora universitária, o conjunto de atributose habilidades exigidas “é tão grande que temos que supor duas hipóteses: ou já se nasce com elas – e, neste caso,estaríamos falando de um habitante do planeta Krypton, como o Super-Homem -, ou se passa o resto da vida em treinamento intensivo para alcançar o perfil exigido”. A autora menciona ainda que “muitas das exigências são logicamente incompatíveis e se referem a diferentes dimensões da pessoa”. E mais, “a ‘listinha’, embora à primeira vista possa parecer dinâmica e atraente, na prática paralisa as pessoas, devido à quantidade de demanda. (...) ela aponta para direções diversas e forma contradições praticamente insolúveis que transparecem na tensão da vida organizacional de hoje”. E a tão apregoada flexibilidade no horário e no local de trabalho? Será uma realidade na maioria das empresas? A matéria da Revista Exame, de Fábio Peixoto (13/06/2001) fala da substituição de relógios de pontos antigos por catracas eletrônicas. O autor questiona: “seria a vitória do trabalho flexível sobre a disciplina fordista?” Ele mesmo responde que a coisa não é bem assim: discretas e informatizadas, as catracas eletrônicas, além de selecionar as pessoas que entram na empresa,incorporam o relógio de ponto, registrando o nome do funcionário e o horário em que ele chegou e saiu da empresa. E essas informações podem ser arquivadas ou consultadas em tempo real por pessoas que estejam na empresa ou por um gerente que esteja viajando, via internet. A matéria menciona ainda que empresas estariam colocando catracas no refeitório, na porta da sala de trabalho e até mesmo no banheiro, local que, segundo um gerente financeiro, seria responsável pela diminuição da produtividade em sua empresa, uma vez que alguns funcionários passavam muito tempo no toalete. O filmeTempos Modernos de Charles Chaplin, que faz uma crítica ao período pós-revolução industrial, à prática do ideário taylorista, tem uma cena que mostra o presidente da empresa vigiando o funcionário que vai ao banheiro relaxar. Alguma coisa mudou?Jeffrey Pfeffer, especialista de Stanford em comportamento organizacional, faz uma crítica aos dois novos mitos agregados pelo mundo corporativo nos últimos tempos, que seriam a lealdade e a escassez de talentos. Considera que é uma realidade para um determinado tipo de organização que ele chamou de empresa tóxica. Nela os funcionários têm um horário flexível tóxico, algo como: “trabalhe as dezoito horas que preferir”. E menciona: “este é um outro sinal de toxicidade de uma empresa: exigir que as pessoasescolham entre ter uma vida e ter uma carreira. Uma empresa tóxica diz às pessoas que quer possuí-las. Existe uma velha piada sobre trabalhar na Microsoft: ‘Oferecemos flexibilidade de horário. Você pode trabalhar as 18 horas que preferir’”. Eis uma outra contradição da administração moderna. Quando se fala em empresas virtuais, em flexibilização,em progresso tecnológico, tem-se a impressão de que haverá mais tempo livre, um equilíbrio entre carreira e qualidade de vida. E a prática, a vivência organizacional evidencia uma outra realidade: funcionários trabalhando cada vez mais, horas extras aumentando e diminuição do tempo para o lazer e para a família. O que resulta em pessoas cada vez mais estressadas e doentes. A matéria da Revista VEJA de Aida Veiga, Tempos Modernos (05/04/2000), registra que “o último levantamento do Bureau of Labor Statistics, o órgão do governo americano que coleta esse tipo de dado, mostra que em janeiro de 2000 a média nacional de horas trabalhadas nos Estados Unidos era de quarenta por semana, e no Vale do Silício, a capital do ultra-industrios o ramo da informática, ela bate em sessenta horas”. E a matéria cita outros exemplos revelando, também, que houve diminuição dos salários. A tecnologia da informação possibilitou novas formas de controle. A reestruturação das organizações, com diminuição de níveis hierárquicos, aumentou a responsabilidade e a cobrança sobre os executivos. Pesquisas revelam que o aumento do volume de trabalho nos últimos anos é, portanto, universal, tornando comum a figura do workaholic, que é o viciado em trabalho.Richard Sennet (1999) menciona que as empresas, tendo como ponto de partida a necessidade de dar retorno aos seus acionistas no curto prazo e atender as demandas dos consumidores, estão se reestruturando para serem mais rápidas, passando, com isso, a dar mais autonomia a seus funcionários e a permitir uma nova organizaçãodo tempo no local de trabalho, o que ele denominou de “flexitempo”. Para ele todos esses artifícios são paradoxais, na medida em que surgem sob a insígnia da liberdade, quando, na verdade, são formas mais sofisticadas de dominação, controle e alienação. O
planejamento flexível da jornada de trabalho e o trabalho virtual, permitiram que o relógio de ponto nomonitoramento do empregado fosse substituído pela tela do computador.
OS REFLEXOS NO INDIVÍDUO
Maria Ester de Freitas (1999) considera que no momento em que a empresa dissemina que o que vale hoje é a empregabilidade, que o mercado é que deve ser considerado pelo profissional, isso se torna uma faca de dois gumes, porque a empresa está fomentando a figura do estrategista individual, do carreirista, aquele que só tem compromisso consigo mesmo, com seu sucesso, cujo passe está sempre à venda e cuja lealdade é somente ao corpo que está dentro da camisa. O estrategista substituiu “o profissional sério consciencioso, leal e de longo prazo”. Nesse sentido, para ela, empresae talentos caminham em direções opostas.Richard Sennet (1999) faz uma reflexão sobre o que ele chama de “capitalismo flexível” no mundo do trabalho e suas conseqüências sobre o indivíduo e asociedade. Para ele as exigências de flexibilidade na atuação profissional e a fugacidade das relações trabalhistas estariam destruindo valores tradicionais, sólidos, como o compromisso, a confiança e a lealdade, fundamentais para a formação do caráter humano. E isso reflete na sociedade de uma maneira geral, minando o tecido social, uma vez que, esse desaparecimento das relações de longo prazo no trabalho se reproduzem na vida social, dificultando relações mais duradouras com amigos, com membros da comunidade, e o que é mais agravante, estaria causando impactos na formação do caráter das crianças, que não vêm no comportamento de seus pais o exemplo das virtudes que eles pregam. Jean-François Chanlat (1994), por sua vez, faz críticas à representação que o mundo da gestão fez do ser humano, verificada sobretudo nas pesquisas e estudos do comportamento organizacional, dominados pelosanglos-saxões, que se distanciaram das ciências humanas, contribuindo para o predomínio de uma lógica econômica, utilitária, que, na sua concepção, vem minando as organizações, a sociedade e a própria vida.E o resultado disso é a insatisfação e o desprazer no trabalho, muitos executivos infelizes, desemprego crescente e exclusão social.
CONCLUINDO...
O que pensar de tudo isso? O que concluir? Alguns autores consideram que diante de tanta turbulência, tantas incertezas e inquietações, é normal a convivência decontradições, conflitos e rupturas.Essa convivência será salutar na medida em que aponte direções, provoque rupturas reais, mostre caminhos, permita mudanças positivas do ponto de vista do homem e da sua inserção no mundo organizacional. O momento e o contexto exigem reflexões e a adoção de posturas verdadeiras e éticas. Se vivemos numa sociedade organizacional é necessário que haja, cada vez mais, um comprometimento com a saúde e a vida das pessoas que compõem as organizações e, consequentemente, essasociedade.Refletir sobre essas questões leva a que se pergunte porque não é possível que tanto progresso tecnológico, tantos avanços científicos e conquistas não se revertam embenefícios para o homem, para sua felicidade e para uma vida melhor. O novo ambiente socioorganizacional com toda a sua complexidade requer um tratamento muito especial, uma análise profunda e muita sensibilidade.Como diz Maria Ester de Freitas (1999) “não está sendo solicitado que as empresas abram mão de sua visão monetarizada de mundo, mas que elas honrem em ações o que costumam pregar em discursos que dizem que o ser humano é o seu principal ‘ativo’”. Que haja de fato uma humanização da empresa, que seu objetivo não se restrinja ao retorno de lucros para os acionistas, mas que vá além, que seja também o bem-estar da comunidade em que atua, a satisfação e a qualidade de vida de seus funcionários, a preservação do meio ambiente, a transparência e a ética. É preciso, como diz Jean-François Chanlat (1994), acabar com a hegemonia do discurso tecnocrático e repensar essa visão econômica e contábil do ser humano. O crescimento sem emprego, a flexibilização da mão-de-obra e suas conseqüências, o trabalho cada vez mais informatizado exigindo qualificações inalcançáveis paramuitos, enfim, as estratégias financeiras dominantes não foram produzidas por entidades abstratas, não são obras do acaso, mas elaboradas por pessoas, principalmente da área de gestão, que têm essa visão quantitativa, que consideram que o social deve estar a serviço do econômico e não o contrário. E François Chanlat nosdiz: “se o social está a serviço do econômico, precisamos derrubar essa proposta. Enquanto atores nesse campo, devemos, na medida do possível, sustentar posições humanistas, tanto ao nível do saber como das ações, e assim participar dessa mudança de perspectiva”. As distinções vistas até então entre valores tradicionais e valores modernos no cenário organizacional parecem não passar de um aparente antagonismo, uma falsa dicotomia, uma vez que as ações produzidas pelos gestores organizacionais ainda são movidas com base na especulação e no lucro. Não se promovem mudanças operando apenas no nível retórico. Uma mudança de visão de mundo, uma mudança de concepção do ser humano, precisa ser acompanhada de ações efetivas que superem uma visão fragmentada, reducionista, ainda com base cartesiana. E os resultados são as mazelas já mencionadas do cenário contemporâneo que exigem uma verdadeira mudança de paradigma. Sob o ponto de vista de uma corrente de pesquisadores, algumas organizações já estão redirecionando as suas ações, tornando a sua gestão mais humana, atuando com responsabilidade social, caminhando, portanto, na direção de uma ruptura real e se apoiando no paradigma emergente da abordagem holística, integrada. Diferentemente da visão reducionista, essa nova abordagem propõe que as partes sejam tratadas segundo seus mútuos relacionamentos e o relacionamento como todo; que o homem seja visto sob uma perspectiva integrada, um todo de natureza física, emocional, intelectual e espiritual; enfim, que haja uma valorização do ser humano, que visto sob essa perspectiva integrada, não pode ser considerado como um mero recurso econômico, quantitativo e descartável, mas como um gerador de recurso.
*Mercejane Wanderley Santana é técnica
da Superintendência de Estudos
Econômicos e Sociais da Bahia - SEI e
professora da Faculdade Ruy Barbosa