domingo, 6 de julho de 2008

PROPOSTAS PARA UMA PEDAGOGIA CRIATIVA



Artigos, Walter Boechat, Propostas para uma pedagoga criativa

PROPOSTAS PARA UMA PEDAGOGIA CRIATIVA


WALTER BOECHAT
Associação Junguiana do Brasil


Trabalho apresentado no VI Simpósio da AJB - São Paulo - Novembro de 1998

A pedagogia tem aspectos arquetípicos que envolvem qualquer transmissão do conhecimento. De todos o conhecimentos, o mais importante é o conhecimento de si mesmo, e a sabedoria antiga sabe bem deste fato.

E o conhecimento de si próprio, o antigo Gnote Sautón do templo de Apolo é o único conhecimento que realmente vale a pena se dedicar a ele, pois na medida em que nós nos conhecemos em profundidade, todas as demais coisas nos são reveladas.

O processo de individuação é um processo pedagógico por excelência, na medida que é um processo gradual de realizar as potencialidades inatas através de um descobrir-se aos poucos, por um desvelar-se em conhecimento pleno. O lento desdobrar-se da individuação começa desde os primeiros meses de vida até a morte. Da mesma forma, o processo pedagógico de aprendizagem para a vida e para si mesmo tem lugar do início da vida até a morte.

A individuação é mais evidente na segunda metade da vida, quando a personalidade se volta para um encontro definitivo com suas raízes no arquétipo do Self. Já a educação em sentido estrito é compreendida geralmente como referida à infância e adolescência, na preparação do indivíduo para deixar o meio familiar e ser equipado para os desafios da sociedade.

Entretanto, mesmo após a adolescência e a idade adulta as necessidades de uma educação integral do ser, em seu sentido mais pleno, permanecem. O adulto, embora sem a plasticidade mental da criança, deverá buscar sempre em sua vida, novas possibilidades de crescimento espiritual que a pedagogia irá proporcionar.

O nome pedagogo vem do grego pédos- criança, gogós- acompanhar, e se referia na antiga Grécia ao escravo que acompanhava o jovem à academia para ser ensinado. Aquele que transmite o ensino deverá ter essa atitude, a de um acompanhante de um outro à busca do saber. Ele é assim, antes um facilitador nesta busca do conhecimento, do que um dono autoritário da verdade.

Entretanto, por um automatismo inconsciente, o professor tende sempre a ter uma postura de poder frente ao seu discípulo, como se o conhecimento fosse algo a ser ministrado a partir de fora. Mas o conhecimento, em sua forma mais diferenciada, é aquele que emana de dentro, a partir de uma intensa curiosidade e interesse que o aluno passa a ter de diversos assuntos que o verdadeiro pedagogo despertará nele.

Este me parece um ponto chave em uma proposta de pedagogia criativa: o rompimento da díada de poder professor - aluno, transformando-a numa relação produtiva na qual o professor irá sempre se descobrindo aluno, em constante aprendizado, e o aprendiz, encontrará seu mestre interior, única forma de caminhar dentro de uma busca de saber genuína.

Em nossa experiência de ensino, quer em curso de treinamento de analistas, quer seja em ensino de graduação e pós - graduação em psicologia analítica, temos procurado valorizar ao máximo a descoberta pelo aluno de sua maneira única de aprender e assimilar novos conhecimentos.

Temos percebido assim, uma grande proximidade entre ensino e individuação, entre aprendizado e auto - conhecimento, entre pedagogia e maturidade pessoal para a vida.

A pedagogia realmente criativa se edifica na construção gradual da singularidade de cada indivíduo contraposta a outras singularidades e, como quer Gerd Bornheim (1), é no estofo destas contraposições que se edifica uma vocação para a universalidade. Pois a própria palavra universalidade advém da divisão das palavras latinas unus versus alia ou plura- uma unidade contraposta a outras (2).

E é esta vocação para a universalidade que domina o processo da educação, a gradual retirada da criança do berço da família que, por um jogo crescente de contraposições, a levam a experiências cada vez mais coletivas, para a escola e para a entrada no social.

Sem a educação na universalidade do social, sem esse cultivo dos universais, o homem ficaria restrito ao absurdo de sua singularidade individual.

Estamos aqui tocando na clássica questão dos universais, da qual se ocupou com especial intensidade a escolástica medieval. A formulação da realidade dos universais encontrou no realismo seu carro condutor chefe, o antigo platonismo continuou até Hegel, que defendeu a realidade onto-teo-lógica dos universais, presentes na história.

A contra- corrente ao realismo, o movimento do nominalismo, sustenta que a existência é mais importante que a essência, e não ao revés, como defendia o realismo. A existência dos seres em separado, com todas suas características próprias individuais é muito mais importante que uma essência invisível e transcendente, uma idéia platônica abstrata, localizada num empíreo remoto.

A perda dos universais de suas vestimentas teologais associou-se na idade moderna ao nascimento do espírito científico; o que Bornheim denominou de "universais concretos"(3) representam a apropriação destes mesmos universais pela ciência, pois já estão destituídos de suas características teológicas tradicionais.

Os universais concretos iram dar base real a qualquer forma de pedagogia. Qualquer Paidéia, qualquer projeto educacional em sentido amplo, torna-se inviável sem o referencial do universal concreto. Bornheim se pergunta onde estes novos universais, desprovidas do referencial teológico tradicional, irão encontrar eles nova base no real?

Bornheim, refletindo sobre as implicações humanísticas e filosóficas dos descobrimentos em "A Descoberta do Homem e do Mundo"(4) encontra no espírito científico do renascimento presente nos grandes descobrimentos, a presença da alteridade como fator fundamental do universal concreto dentro da nova perspectiva da grande descoberta do outro.

A questão da alteridade, presente em qualquer projeto pedagógico, questão fundante mesmo da pedagogia, deve ser tratada aqui com detida atenção.

A alteridade, a descoberta do outro como elemento essencialmente diferente do si, foi elaborada desde os albores do pensamento filosófico no ocidente. Já Pitágoras de Samos, com sua filosofia de base numérica iria dizer que os números ímpares se referem à identidade, e os números pares à alteridade, às relações do eu e do outro. Platão procurou definir a alteridade, o "tó héteron", como o conceituou, como uma conciliação entre o mundo das essências imutáveis de Parmênides, que se referem à identidade e o devir hieraclítico, que configura o outro.

A filosofia de Buber revigora a questão da alteridade com a ênfase na relação Eu - Tu. A psicanálise também retomou esta questão, no tocante aos estudos das relações da criança com a mãe, a alteridade fundante para a estruturação do ego.

A descoberta do novo mundo pelos navegantes trás a questão da alteridade para um sentido cósmico e civilizatório. A descoberta de novas terras vem permeada de projeções do inconsciente coletivo, as praias do Brasil seriam a China, ou a Índia? Os monstros imaginários que se pensava povoavam os oceanos trouxeram decepção a Colombo por não existirem na horizontalidade do espaço físico.

Nestas descobertas se dá um processo evangelizador e de conversão dos outros povos que demorou longo tempo para se tomar consciência de ser ele desprovido de alteridade, pois sempre a evangelização incluiu a conversão nos valores de si próprio, nos universais profundamente envolvidos em valores teológicos. Uma pedagogia de todo capenga, por não respeitar a diferença do outro.

Ainda quanto a questão da alteridade como elemento essencial do humanismo moderno, a antropologia científica demonstra a importância do princípio da diferença no conhecimento do social e da relação do indivíduo com o social. Enquanto esteve mergulhada em etnocentrismo obliterante, a antropologia de Tylor e Fraser permaneceu meramente um referencial de evolucionismo cultural, isto é, outros povos sendo vistos apenas como pré- figurações infantís do modelo de sociedade ideal, a do homem europeu moderno. Somente a antropologia moderna, quer seja a do funcionalismo de Malinowski, quer seja a do estruturalismo de Lévi- Strauss, está aberta realmente para a diferença da outra cultura. O que se busca aqui não é nenhum julgamento, nenhuma interpretação, apenas a constatação da diferença, da alteridade. A alteridade cultural é fundamental para a compreensão de nossa própria cultura, o contemplar o outro nos ensina sobre nós mesmos, esta é uma pedagogia radical de sobrevida social; daí a sobrevivência de nossos índios se reveste de urgência, pois são um paradigma de alteridade cultural importante.

Devemos considerar agora as íntimas relações que guardam conhecimento, cultura e educação, elementos inseparáveis e que sofrem uma retroalimentação continuada em qualquer sociedade.

Edgar Morin nos lembra que as condições sob as quais o conhecimento é possível são de natureza extraordinariamente variada; são do tipo físico, celular, cerebral, psíquico, social e cultural. (5)

Cultura e educação operam dentro de dois eixos fundamentais que se entrecruzam em fulcro central: as condições socioculturais e as biocerebrais. Estes dois eixos são interdependentes, "pois as sociedades e as culturas se constituem e evoluem somente mediante as interações cerebrais/mentais entre os indivíduos"(Morin) (6).

A cultura se organiza e atua de forma organizadora através da linguagem, dos conhecimentos adquiridos, consciência histórica e crenças míticas, todos esses valores moldados pelos arquétipos do inconsciente coletivo, que se fazem representar pelas representações coletivas e pelo imaginário coletivo.

A cultura e sociedade estão em interdependência generativa, e nestas interações Edgar Morin postula que não devemos nunca esquecer o indivíduo, e as interações entre os indivíduos, que são eles mesmos, portadores e transmissores da cultura, estas interações regeneram a sociedade, que por sua vez, regenera a cultura. (7)

De acordo com a abordagem da filosofia complexa de Morin, a cultura de uma sociedade é como se fosse uma complexa mega- unidade de cálculo que armazena todas as informações cognitivas e, por possuir propriedades quase lógicas, formula normas práticas, éticas e políticas desta sociedade. Mas de certo modo, esta unidade central de cálculo, como a chama Morin, está presente também em cada mente/cérebro individual, e assim, a cultura faz o indivíduo e o indivíduo faz a cultura, em processo holográfico de retroalimentação contínua.

A cultura está sendo abrindo e fechando as possibilidades bioantropológicas de conhecimento. Ela as abre na medida em que põe à disposição dos indivíduos o repositório de seu conhecimento acumulado, seus método de aprendizado, pedagogia e pesquisa e assim por diante; ela simultaneamente os fecha por suas proibições, normas e tabus, seu etnocentrismo. (8)

A noção de que o indivíduo faz a cultura e a cultura faz o indivíduo em processo de retroalimentação contínua que nos trás Morin é muito importante. De acordo com ela, a educação está nas mentes, ela vive na mentes que estão em processo de aprendizado cultural, mentes que vivem na cultura. Nossas mentes reconhecem através do aprendizado cultural, mas de certo modo, a cultura também reconhece através de nossas mentes. É a sempre presente dialética entre indivíduo e cultura, mecanismo essencial subjacente ao processo de individuação que Jung retomou por diversas vezes.

Edgar Morin lembra ainda que a relação entre as mentes individuais e a cultura não é difusa e sim do tipo hologramático. Hologramático por que a cultura está nas mentes individuais e as mentes individuais estão na cultura. A noção de arquétipo e de imagem arquetípica e fundamental para se entender esta colocação de Morin, pois está claro para nós, que as imagens arquetípicas, essencialmente são culturais e ao mesmo tempo, manifestam-se no indivíduo, de acordo com sua experiência individual.

A relação entre indivíduo e cultura também é do tipo recursivo, pois assim como os seres vivos buscam sua sobrevida no ecossistema que só existe devido às interações dos seres vivos, da mesma forma, os indivíduos só podem desenvolver uma pedagogia e uma educação dentro de uma cultura, que por sua vez só pode existir, devido à interatuação cognitiva e pedagógica dos indivíduos.

O fulcro biocerebral e sociocultural da educação mencionado anteriormente já está funcionamento antes mesmo do nascimento. A realidade urobórica que a psicanálise e também Erich Neumann registraram como fase importante do desenvolvimento do ego deve ser atualizada à luz dos modernos estudos sobre psiquismo fetal. Sabe-se que o feto sonha, pois apresenta a fase REM do sono; a pergunta que se faz é: sonha com o quê, já que não tem vivência do mundo externo? Os psicanalistas respondem com propriedade que sonham com protofantasias, os junguianos dirão com acerto que o feto tem sonhos arquetípicos, nos quais as imagens arquetípicas se apresentariam de forma simples e abstrata.

O que importa é que existe um psiquismo fetal, como o comprovam também os modernos estudos de ultrasonografia. Já existe portanto uma alteridade fetal, uma individuação a nível intrauterino e portanto, o estado urobórico é uma realidade não tão unitária. Se assim não fosse, o bebê prematuro, viável biologicamente, não seria viável psicologicamente, isto é, nasceria psicótico ou portador de moléstia mental grave.

Mas a ultra-sonografia mostra com freqüência o feto reagindo a estímulos ambientais, como sons, luz, música, de forma semelhante ao adulto.

Aqui uma questão filogenética deve ser lembrada. Os antropóides que antecederam o Homo sapiens tiveram um período gestacional de dez meses aproximadamente. No decurso da evolução, o Homo sapiens se caracterizou por um grande desenvolvimento da caixa craniana, desproporcional ao resto do corpo. O canal do parto das mães não era largo suficiente para a passagem do feto e a mortalidade materna tornou-se muito elevada. A seleção natural passou a promover um nascimento precoce, isto é, aos nove meses. A maior mobilidade das fontanelas cranianas facilita o parto, mas também o recém-nascido humano tornou-se para sempre um eterno prematuro. A prematuridade em nível físico, com articulações, fâneros e unhas ainda em formação é acompanhada por uma prematuridade emocional, e isto é muito importante lembrar.

A prematuridade emocional do ser humano ao nascer levou Adolf Portmann a cunhar a expressão período embrionário extra- uterino, referindo-se aos primeiros meses de vida do bebê nos quais a sobrevida tanto física quanto emocional dependem de um cuidado atento da mãe.

Devido a estas recentes descobertas do psiquismo fetal, não é exagerado dizer que já no período intra- uterino a esfera sócio-cultural atua sobre o ser, através mesmo dos hábitos da mãe, influências ambientais, sons, música e outros. A passagem desta fase intra- uterina para um período de adestramento pela educação familiar e social não sofre solução de continuidade, mas é antes um processo de continuidade.

A chamada "estabilização seletiva das sinapses" cria aos poucos rotas seletivas de conhecimento no sistema cerebral, indo determinar, de certa forma, como cada um irá perceber a realidade. A cultura torna-se, assim, uma co-produtora da realidade, como é percebida por cada indivíduo.

Fica bem claro que a educação começa no indivíduo bem antes do advento da comunicação escrita ou verbal. Os processos pedagógicos não verbais usados com grande ênfase na primeira infância foram, como se sabe retomados pelas técnicas de ludoterapia em psicanálise, as técnicas do jogo em Winnicott, em psicologia analítica Jung, ele próprio, foi um grande pioneiro do uso de técnicas expressivas como desenho e pintura na dialética com o inconsciente, em seu próprio processo de individuação. A psicologia analítica tem nos últimos tempos, desenvolvido diversas abordagens não verbais, umas mais conhecidas, como a caixa de areia de Kalff, outras não tanto, como a associação do movimento com a imaginação ativa, trabalho desenvolvido por Mary Whitehouse nos Estados Unidos, e as relações corpo- imagem desenvolvidas por Arnold Mindell.

As técnicas não verbais em psicoterapia aplicam-se naturalmente a uma proposta criativa em pedagogia. Técnicas de ensino e aprendizado que incluam processos não verbais serão muito interessantes, é claro, pois levarão à experiência individual do material teórico transmitido, levando o aluno a vivências subjetivas em nível profundo do material teórico discutido em seminários e comunicações teóricas. Esta é nossa experiência em curso de formação de analistas e em grupos de estudos, mas as técnicas expressivas não verbais são válidas para uma proposta pedagógica criativa em nível de ensino em geral, qualquer que seja ele, pois toca aqui em problema muito importante de qualquer pedagogia: mais importante do que a busca do saber a qualquer preço é a produção do desejo de saber, e este é um desejo ético importante para que se produza o verdadeiro espírito universitário.(9)

O corpo é um referencial importante na pedagogia não verbal- vivencial. A título somente de exemplo, um importante tema como a questão da definição da libido em psicologia analítica pode ser vivenciado de forma não verbal em seminário.

Em Símbolos de Transformação, Jung explora as relações da Libido com a questão do ritmo. O ritmo está presente na produção do fogo ritual Agni, nos Vedas, em que o bastão vertical, ritualisticamente é friccionado no bastão horizontal, de forma rítmica. O fogo é assim produzido. Certos hábitos masturbatórios estão associados à piromania, e pacientes muito regredidos, ou psicóticos crônicos, têm maneirismos repetidos ritmicamente. O núcleo simbólico fogo-ritmo-Libido aparece nítido nestas manifestações. (10)

Pois bem, após o estudo destes temas, os alunos em seminário podem ser motivados a explorar seu próprio corpo, verificar em seu íntimo a musicalidade de seu próprio ritmo individual, manifestação da libido de forma única em seu processo de individuação, através do ritmo cardíaco, do batimento do pulso, e o grupo poderá ou ser convidado a fazer um desenho sobre esta experiência. O coordenador do seminário coordenará comentários e associações de cada participante. Entretanto, esta é sempre uma experiência de ensino, e não uma análise pessoal, e cada participante irá caminhar em suas associações até onde queira ir, e ao coordenador do seminário caberá muito mais amplificar do que interpretar.

Faço esta observação, embora concordemos com Hillman de que a psicoterapia não se processa unicamente no consultório, mas também sempre aonde se produza um cultivo da alma, como num simpósio científico como este, em qualquer evento cultural ou numa exposição de arte. Isto posto, a pedagogia criativa não está, nem pode ser, em essência, separada de um processo de auto- conhecimento.

Quero também fazer algumas observações sobre a presença da psicologia analítica na universidade. Consideramos este tema importantíssimo e de grande atualidade, pois é nossa impressão que as psicologias do inconsciente, junguianas, freudianas e em suas diversas ramificações tendem a encaminhar para a universidade, o locus da transmissão do saber por excelência, e as instituições formadoras de analistas deverão, em futuro próximo, ter conexões mais íntimas com o saber universitário, sem perder, naturalmente sua autonomia.

As razões deste caminhar, deste encontro que deverá ser muito frutífero , entre o saber acadêmico universitário e o saber de um programa de formação de analistas são múltiplas. As universidades estão cada vez mais abertas, de uma maneira geral, pois têm gradualmente se libertado de noções pré - concebidas do que deve ser sabido, ou do como deve ser sabido.

Ao mesmo tempo, concordo com Andrew Samuels, que sugere diversas maneiras de sobrevivência da psicologia analítica ao final do século, sendo a universidade uma das principais (11).

Segundo Samuels, há muitas possibilidades pedagógicas para a psicologia analítica na universidade. A primeira se refere à questão da eficácia clínica em psicoterapias de longa duração. É notório que a literatura a este respeito é escassa.

Outro possibilidade seria a investigação do próprio processo terapêutico, no que concerne, por exemplo, a como cada terapeuta trabalha, dependendo de sua orientação teórica, ou como reage quando confrontado com situações clínicas determinadas. Pesquisas também podem ser feitas quanto ao identidade sexual, etnia e conduta terapêutica, tanto referidos ao terapeuta quanto ao cliente.

Samuels sugere outra investigação interessante: até quanto seria ou desejável uma intervenção de cunho pedagógico em psicoterapia? Isto é, seria válido, em certas circunstâncias, o terapeuta explicar ao cliente o tipo de processo a que ele está se submetendo, sua provável evolução e objetivos? Uma dos ganhos da pesquisa seria informar não só aos pacientes, mas ao público em geral, sobre os objetivos reais da análise, evitando as noções distorcidas e superficiais que vêm à público.

Um aspecto importante da obra de Jung é que ela foi publicada em sua edição completa não seguindo uma ordem cronológica como a edição standard da obra de Freud, mas por temas, daí ser obra junguiana ser chamada "Trabalhos Coligidos" (Collected Works). Isto muito embora a obra de Jung tenha sofrido constantes revisões, durante o curso de sua vida criativa. Certas pesquisas sobre conceitos de psicologia analítica como o de arquétipo, por exemplo, tornam-se muito difíceis. Na universidade, o estudo aprofundado da obra junguiana em seu contexto histórico em suas variáveis poderia ser assinalado, em oposição ao contexto clínico, que trabalha mais com conceitos em sua forma operacional atual.

Samuels chama a atenção ainda para as inúmeras contribuições que a psicologia analítica pode trazer em colaboração, na universidade, com a educação e a sociologia, estudos sobre liderança, política e cidadania sobre o ponto de vista da teoria junguiana; ainda o estudo da crítica literária, das artes e estudo sobre o gênero. É importante assinalar a observação de Samuels de que nas diversas universidades onde esteve, foi nos locais de estudo das religiões comparadas que ele encontrou talvez as mais cuidadosas e criteriosas leituras de textos junguianos. Além das possibilidades de colaboração com antropologia e filosofia, Samuels cita ainda o interesse que na própria psicologia, a psicologia analítica desperta interesse, com os trabalhos de Jung com o teste de associação de palavras, a teoria dos tipos psicológicos, a influência de Jung em Henry Murray na evolução do T. A. T. e nos testes projetivos em geral.

Em minha vivência universitária concordo de modo geral com as observações de Samuels, embora elas tratem mais de possibilidades do que de realidades fatuais, mas creio que muito do proposto pode ser alcançado em nível pedagógico para a psicologia analítica.

No Instituto de Psicologia e Psicanálise da Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, temos cinco cadeiras eletivas relacionadas à psicologia analítica de Jung no curso de graduação. As cadeiras são ministradas de forma sucessiva, a cada semestre. O aluno particularmente interessado em psicologia analítica poderá cursar as cinco cadeiras eletivas, aprofundando gradualmente seu conhecimento. Abriu-se para nós uma possibilidade para o exercício do que estou chamando de pedagogia criativa, pois juntamente com a cadeira teórica houve também o espaço para ter uma atividade de supervisão no SPA, [Setor de Psicologia Aplicada]. O aluno poderia escolher tanto a cadeira teórica quanto o grupo de supervisão junguiano. É claro que as outras correntes teóricas estão igualmente presentes, Freud, Lacan, Reich, Moreno, Winnicott, Rogers.

Em eventos culturais dentro da universidade, ela se mostra um espaço para a universalidade do saber, tão necessária para a educação, já que é freqüente a formação de mesas redondas com pessoas de diversas tendências teóricas, que podem levar o aluno a uma maior reflexão sobre o que realmente importa: o paciente e seu sofrimento.

Lembro-me em especial de uma mesa redonda da qual participei recentemente com o tema versando sobre o tratamento das psicoses. A mesa foi composta por um psiquiatra clínico, uma analista lacaniana e eu. Houve frutuosa convergência nas abordagens.

Talvez seja esta a contribuição mais sadia que a universidade possa trazer para aqueles que participam de instituições formadoras de analistas; uma saudável relativização das teorias, uma retirada de um isolamento teórico que a instituição formadora forçosamente leva, pela própria necessidade que tem de aprofundar seus métodos teóricos.

Outra experiência que temos em nível universitário e o curso de pós-graduação "lato- sensu" em psicologia junguiana junto ao IBMR, no Rio de Janeiro. O curso dura um ano e oito meses e em 1999 se iniciou a quinta turma. O aluno para terminar o curso, deve ter sua monografia aprovada por um orientador. O curso obedece às regulamentações do conselho federal de educação, e tem doze matérias teóricas referentes à psicologia analítica. Naturalmente o curso em nível de pós-graduação tem nível de aprofundamento bem superior ao da graduação e muitas vezes serve como uma preparação para aqueles que eventualmente busquem uma formação em psicologia analítica.

As interações de pesquisa com outras áreas do saber, que Samuels sugere, temos encontrado na pós-graduação, onde, por exemplo, a psicóloga Helena Saldanha fez importante trabalho de campo, de cunho antropológico sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro relacionando-o com o arquétipo do Herói.

As questões de uma maior reflexão quanto a pesquisa de práticas clínicas encontrei na graduação, onde no SPA, junto com o psicanalista José de Matos, supervisionei um caso clínico de homossexualidade masculina e a abordagem junguiana e freudiana foram debatidas.

Os caminhos para uma pedagogia criativa são múltiplos e devem ser analisados em cada contexto. Procuramos trazer aqui nossa experiência pessoal de ensino vivenciada em três níveis, na graduação, pós- graduação e em instituições formadoras de analistas onde estivemos sempre confrontando o desafio arquetípico e ético que permeia toda a transmissão do saber: abandonar a busca do saber a qualquer preço, pela produção do desejo do saber. A admissão da falibilidade do professor, quando diz perante ao aluno: "tal tema foge ao meu conhecimento pleno, mas vou investigar, na próxima vez o trabalharemos juntos". Tal colocação é cada vez mais rara de ser feita perante o aluno, embora seja extremamente sadia, por ser mais realista, desfazendo idealizações, afastando a imagem arquetípica do mestre para o nível do símbolo e evitando a concretização que isola mais que aproxima professor e aluno na busca do saber.

Mas é sempre importante ter em mente a ênfase que Jung sempre deu à educação através do exemplo pessoal, de como a personalidade dos pais e também de professores é fator decisivo em qualquer pedagogia. (12)

Bibliografia

Bornheim, G.- A Descoberta do Homem e do Mundo, In: A Descoberta do Homem e do Mundo. Minc, Funarte, Companhia das Letras, São Paulo, 1998.

----------- idem, p. 20

----------- p. 21

----------- p. 25

Morin, E.- Cultura e Conhecimento. In: O Olhar do Observador . Watzlawick e Krieg (orgs). Editora Psy II, Campinas, 1995.

----------- op. cit., p. 72.

------------ p. 72.

------------ p. 73.

Figueiredo, A. C. - Ética e Ensino. In: Ética e Saúde Mental. ( Ana Cristina Figueiredo e João Ferreira Filho, orgs). Topbooks, Rio de Janeiro, 1996.

Jung, C.G.- Símbolos de Transformação. Ob. Comp. Vol. 5, Ed. Vozes, Petrópolis.

Samuels, A. - "Will the Post- Jungians Survive?"- Conferência na Irish Analytical Psychology Association, em 22 de novembro de 1997. ( Artigo no site da associação na Internet.)

Jung, C.G.- O Significado do Inconsciente na Educação Individual. In: Ob. Comp. Vol. 17, Editora Vozes, Petrópolis.

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sábado, 5 de julho de 2008

Muitas vezes deixada de lado por perseguirmos...?

Era uma vez... um rei que tinha quatro esposas. Ele amava a 4ª esposa demais e vivia dando-lhe lindos presentes, jóias e roupas caras. Ele dava-lhe de tudo e sempre do melhor.

Ele também amava muito sua 3ª esposa e gostava de exibi-la aos reinados vizinhos. Contudo, ele tinha medo que um dia, ela o deixasse por outro rei.

Ele também amava sua 2ª esposa. Ela era sua confidente e estava sempre pronta para ele, com amabilidade e paciência. Sempre que o rei tinha que enfrentar um problema, ele confiava nela para atravessar esses tempos de dificuldade.

A 1ª esposa era uma parceira muito leal e fazia tudo que estava ao seu alcance para manter o rei muito rico e poderoso, ele e o reino. Mas, ele não amava a 1ª esposa, e apesar dela o amar profundamente, ele mal tomava conhecimento dela.

Um dia, o rei caiu doente e percebeu que seu fim estava próximo. Ele pensou em toda a luxúria da sua vida e meditou:
— E agora? eu tenho 4 esposas comigo, mas quando eu morrer, com quantas poderei contar?

Então, ele perguntou à 4ª esposa:

— Eu te amei tanto, querida, te cobri das mais finas roupas e jóias. Mostrei o quanto eu te amava cuidando bem de você. Agora que eu estou morrendo, você é capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

— De jeito nenhum! respondeu a 4ª esposa e saiu do quarto sem sequer olhar para trás.

A resposta que ela deu, cortou o coração do rei como se fosse uma faca afiada.

Tristemente, o rei então perguntou para a 3ª esposa:

— Eu também te amei tanto a vida inteira. Agora que eu estou morrendo, você será capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

— Não!!!, respondeu a 3ª esposa.

— A vida é boa demais! Quando você morrer, eu vou é casar de novo.

O coração do rei sangrou e gelou de tanta dor.

Ele perguntou então à 2ª esposa:
— Eu sempre recorri a você quando precisei de ajuda e você sempre esteve ao meu lado. Quando eu morrer, você será capaz de morrer comigo, para me fazer companhia?
— Sinto muito, mas desta vez eu não posso fazer o que você me pede! respondeu a 2ª esposa.

— O máximo que eu posso fazer é enterrar você!

Essa resposta veio como um trovão na cabeça do rei e mais uma vez ele ficou arrasado. Daí, então, uma voz se fez ouvir:

— Eu partirei com você e o seguirei por onde você for...


O rei levantou os olhos e lá estava a sua 1ª esposa, tão magrinha, tão mal nutrida, tão sofrida... Com o coração partido, o rei falou:

— Eu deveria ter cuidado muito melhor de você enquanto eu ainda podia...

Na verdade, nós todos temos 4 esposas nas nossas vidas...
Nossa 4ª esposa é o nosso corpo. Apesar de todos os esforços que fazemos para mantê-lo saudável e bonito, ele nos deixará quando morrermos...

Nossa 3ª esposa são as nossas posses, as nossas propriedades, as nossas riquezas. Quando morremos, tudo isso vai para os outros.

Nossa 2ª esposa, representa a nossa família e nossos amigos. Apesar de nos amarem muito e estarem sempre nos apoiando, o máximo que eles podem fazer é nos enterrar...

E nossa 1ª esposa é a nossa ALMA, muitas vezes deixada de lado por perseguirmos, durante a vida toda, a Riqueza, o Poder e os Prazeres do nosso Ego... Mas apesar de tudo isso, a nossa Alma é a única coisa que sempre irá conosco, não importa aonde formos...

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Questões sobre o desenvolvimento de crianças em situação de rua



Claudio Simon Hutz e Sílvia Helena Koller
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A Psicologia e a pesquisa científica não oferecem respostas satisfatórias para várias questões relativas ao desenvolvimento de crianças em situação de rua. Alguns estudos afirmam que o viver na rua é prejudicial, ou retarda o desenvolvimento psicológico, devido às experiências a que estas crianças estão expostas, como adições, violência e exploração. Outros estudos mostram que a rua possibilita vivências cumulativas que promovem o desenvolvimento. Estes achados incongruentes indicam a necessidade de se realizar mais estudos nesta área. O CEP-RUA/UFRGS vem desenvolvendo vários estudos sobre o desenvolvimento emocional, cognitivo e social destas crianças. Os resultados destes estudos têm revelado que crianças em situação de rua apresentam altos níveis de stress e de exposição a riscos pessoais e sociais. Porém, constatamos que elas desenvolvem habilidades para lidar com o stress e com os riscos, compensando suas dificuldades com estratégias que exigem competência e autonomia. Uma das estratégias utilizadas relaciona-se aos agrupamentos afetivos, econômicos e sociais, por meio dos quais garantem sua sobrevivência e segurança. As crianças testadas pelos pesquisadores do CEP-RUA não apresentam índices de depressão e de sofrimento psicológico mais elevados do que crianças de nível sócio-econômico baixo. Testadas quanto ao seu bem-estar subjetivo, elas também não diferem significativamente de outros grupos. Estudos realizados para investigar eventos de vida e emoções revelam histórias intrigantes sobre suas trajetórias e sensibilidade. Porém, uma alternativa para um lar que garanta um desenvolvimento saudável para as crianças que estão na rua deve ser encontrada. Mesmo que não cause grande dano psicológico, a rua não é um lugar saudável para qualquer ser humano viver.
Palavras-chave: Crianças em Situação de Rua, Crianças em situação de Risco, Desenvolvimento.

O objetivo deste estudo é discutir alguns aspectos do desenvolvimento de crianças e adolescentes em situação de rua. Embora a Psicologia do Desenvolvimento tenha acumulado muito conhecimento sobre crianças em geral, há uma grande lacuna quando se enfoca indivíduos em situação de risco pessoal e social (Emde, 1994; Huston, McLoyd, & Coll, 1994). Jessor (1993) chama a atenção para a falta de modelos teóricos e pesquisa empírica sobre o desenvolvimento de crianças e adolescentes que vivem em situação de pobreza, por exemplo. Vários autores têm lamentado a falta de atenção dada ao estudo do desenvolvimento de seres humanos, que vivem na pobreza ou fazem parte de minorias étnicas ou raciais (Fischer, 1993). Suas queixas referem-se à virtual inexistência de estudos evolutivos com segmentos minoritários da população norte-americana. Referem-se, ainda, ao fato de que a grande maioria dos estudos normativos sobre desenvolvimento psicológico tem sido feita com crianças e adolescentes brancos de classe média, que vivem, principalmente nas proximidades das universidades. Dizem, com razão, que continua-se a estudar o desenvolvimento normal das crianças brancas de classe média e a patologia dos negros, dos hispânicos, dos imigrantes e dos pobres em geral. No Brasil, este quadro repete-se, com o agravante de que, apesar do grande número de problemas sociais que o país enfrenta, os estudos em Psicologia sobre indivíduos expostos aos riscos provocados por estes problemas têm merecido pouca atenção.

Vamos tentar aqui descrever alguns estudos da literatura na área e procurar indicar algumas prioridades para a pesquisa em psicologia do desenvolvimento com estas populações, enfatizando achados do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-RUA), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que vem se dedicando a pesquisar sobre este tema.

Inicialmente, precisamos definir o que é risco. Uma criança será considerada em situação de risco quando seu desenvolvimento não ocorre de acordo com o esperado para sua faixa etária de acordo com os parâmetros de sua cultura (Bandeira, Koller, Hutz, & Forster, 1996). O risco pode ser físico (doenças genéticas ou adquiridas, prematuridade, problemas de nutrição, entre outros), social (exposição a ambiente violento, a drogas) ou psicológico (efeitos de abuso, negligência ou exploração). O risco pode ser originado por causa externa ou interna. As causas externas relacionam-se às condições adversas do ambiente. Comportamentos de risco referem-se a ações ou atividades realizadas por indivíduos que aumentam a probabilidade de conseqüências adversas para seu desenvolvimento ou funcionamento psicológico ou social, ou ainda que favorecem o desencadeamento ou agravamento de doenças. Porém, para identificar um "aumento na probabilidade" é necessário conhecer a probabilidade das mencionadas "conseqüências adversas" na população geral. Isso aponta para a importância de desenvolver estudos descritivos e epidemiológicos com os diferentes segmentos da população.

Uso de drogas (lícitas ou ilícitas), comportamento sexual promíscuo, relações sexuais desprotegidas, família desestruturada, falta de modelos apropriados, socialização inadequada para promover o respeito pela vida e pela dignidade dos seres humanos, etc., são fatores que colocam em situação de risco, crianças e adolescentes em todas as classes sociais, inclusive nos países desenvolvidos. No Brasil, quem conhece a realidade das melhores escolas de segundo grau do país, ou quem observa o comportamento de adolescentes ricos nas madrugadas nas grandes cidades, tem pouca dúvida de que não são apenas os filhos dos pobres que estão em situação de risco. A situação não é muito melhor em outros países. Dryfoos (1990) realizou estudos epidemiológicos usando uma escala de avaliação de exposição a situações de risco e concluiu que cerca de metade dos adolescentes norte-americanos encontra-se em situação de risco moderado a elevado. Esta estimativa parece ser um exagero, porém tem sido confirmada por outros estudos (Kazdin, 1993).

O espectro de riscos é bastante amplo. Todavia, vamos restringir o escopo deste artigo a populações que apresentam, entre outros, um fator de risco universal: a miséria. Mais especificamente, vamos examinar a literatura referente a crianças em situação de rua (para maior discussão sobre a definição de criança de/na rua ver Koller & Hutz, 1996). Crianças de rua são um segmento especial e não representativo de toda a população de risco, mas que tem recebido considerável atenção de pesquisadores, especialmente na última década, impulsionada pelo fenômeno crescente dos homeless nos Estados Unidos. No Brasil, alguns estudos têm enfocado questões psicológicas sobre as crianças de rua. Como mencionamos em outro estudo (Koller & Hutz, 1996), o viver na rua pode ser prejudicial ou retardar o desenvolvimento psicológico, devido às experiências adversas a que estas crianças estão expostas, como adições, violência e exploração. Paradoxalmente, a vida na rua pode possibilitar experiências que se adicionam e promovem o desenvolvimento. No entanto, estes achados são incongruentes e revelam a necessidade de se realizar mais estudos nesta área.

Meninos de rua não são novidade no Brasil ou na história universal. A primeira história relatada sobre um menino de rua parece ter sido contada em 1554, em uma novela autobiográfica, intitulada La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades (Koller & Hutz, 1996). No Brasil, alguns relatos do período colonial e da época da abolição da escravatura referem-se a crianças abandonadas na rua. Atualmente há algumas centenas de livros e artigos, além de listas eletrônicas e sites na Internet, que abordam a problemática de crianças, adolescentes, famílias e pessoas em geral que vivem nas ruas em dezenas de países, em todos os continentes. Tyler e colaboradores (1987) apontaram para o fato de que crianças de rua são um fenômeno mundial, embora de incidência variada e dependente, em grande parte, mas não exclusivamente, das condições sócio-econômicas da sociedade (Tyler, Holliday, Tyler, Echeverry, & Zea, 1987). Koller e Hutz (1996) acrescentaram à miséria econômica uma miséria afetiva, como antecedente à saída da criança para a rua.

Desenvolvimento social de crianças em situação de rua

Desenvolvimento social é uma área multidisciplinar de grande amplitude que estuda a interação de fatores maturacionais e ambientais no desenvolvimento da capacidade de um indivíduo em manter relações sociais e os efeitos destas relações sobre seu desenvolvimento psicológico em geral, inclusive sobre sua capacidade de manter relações sociais. O processo de desenvolvimento social é individual e não ocorre exatamente da mesma forma para duas pessoas. Seu estudo consiste, portanto, na procura de padrões comuns, de regularidades no desenvolvimento. Este desenvolvimento é fundamental para a sobrevivência dos indivíduos e indispensável para a vida na sociedade. O valor de sobrevivência e a vantagem reprodutiva propiciada por alguns destes processos torna inevitável sua ocorrência em todas as culturas. Alguns mecanismos de interação social são programados geneticamente, tais como a capacidade para desenvolver relações afetivas e apego, por exemplo.

Porém, se a determinação biológica obriga seres humanos a interagir, pelo menos durante grande parte de suas vidas, são os fatores ambientais, em interação com fatores maturacionais e de personalidade, que determinarão, em grande parte, como essa interação irá ocorrer e seus efeitos para o desenvolvimento psicológico e o bem-estar dos indivíduos.

A estereotipia e o preconceito da sociedade com relação às crianças em situação de rua vem sendo descritos na literatura em geral. Crianças de rua têm sido descritas como marginais, doentes, violentas, sujas e delinqüentes (Aptekar, 1989; Marguerat, 1989; McKirnan & Jonhson, 1986). Silva, Weber, Raimundo, Bandeira e Koller (1996) investigaram, através do desenho da figura humana, como as crianças de rua e de nível sócio-econômico médio-alto representam a si mesmas e ao outro grupo. Foram testadas 39 crianças em situação de rua e 148 crianças que freqüentavam uma escola particular. Foi solicitado às crianças que primeiro desenhassem uma Figura Humana, sendo primeiro a representação de si mesmos e depois de uma criança do outro grupo. Os desenhos foram avaliados por dois juízes cegos para as características das crianças que executaram os desenhos. Foi realizado um levantamento de categorias para descrever o desenho analisado. As categorias observadas nos desenhos foram: expressão facial, presença/ausência de sapatos, de mãos, e de roupas, aparência geral (sujo/limpo), postura, cenário, acessórios e objetos nas mãos. A comparação entre os desenhos revelou muitos aspectos estereotipados. As crianças de rua foram representadas pelas de escola como sujas, negras, mal vestidas e sem sapatos, com roupas rasgadas, carregando drogas nas mãos e pedindo esmolas em esquinas, às vezes sentados ou deitados. As crianças de escola foram representadas pelos de rua como bem-vestidas e calçadas, limpas, de pé e carregando sacos de dinheiro nas mãos. Quando desenham a si mesmos, as crianças de ambos os grupos fazem desenhos de figuras humanas alegres, vestidas, limpas, com sapatos, sem objetos nas mãos, de pé e de frente e com acessórios. Estes resultados revelam a discrepância entre como as crianças em situação de rua se vêem ou gostariam de ser vistos e como são vistas pelas crianças das escolas.

Crianças em situação de rua são seres humanos em desenvolvimento, que podem apresentar algumas características psicológicas sadias, apesar das dificuldades impostas por um ambiente hostil. Para manterem-se na rua, desenvolvem estratégias para lidar com circunstâncias que podem expô-las a riscos e podem torná-las vulneráveis. Esta afirmação aponta para duas direções opostas. A vida na rua gera altos níveis de stress, riscos freqüentes e intensos e testam permanentemente a vulnerabilidade emocional, social, física e cognitiva/educacional desta criança. No entanto, exigem que ela seja resiliente e desenvolva estratégias, tenha forças para lidar com o infortúnio e para se adaptar (Donald & Swart-Kruger, 1994). A Tabela 1 apresenta áreas de desenvolvimento social, que apresentam riscos à estas crianças e algumas estratégias que utilizam para continuar se desenvolvendo.

Um dos aspectos fundamentais ao desenvolvimento social relaciona-se com o senso de pertinência e identidade social. A realidade a que as crianças em situação de rua estão expostas, denuncia sua exclusão e marginalidade. Koller (1994) fez um estudo sobre o desenvolvimento moral pró-social de crianças de rua no qual perguntava sob que condições elas ajudariam potenciais receptores de ajuda que pedissem sua ajuda. Não raro, a resposta destas crianças vinha carregada de um senso claro de exclusão, com expressões como: "quem vai querer a ajuda de um menino de rua?", ou "quem vai acreditar que a gente está chegando perto para ajudar?". Além da exclusão, estas crianças estão expostas ao crime ou à violência da rua. Uma estratégia para superar essas dificuldades é estabelecer relações de amizade que sejam protetivas, mesmo que instáveis e erráticas, mas que possibilitem alguns cuidados mútuos e reciprocidade. Koller e Hutz (1996) mencionam algumas formas de agrupamento destas crianças, desenvolvendo relações de afeto, de trabalho e uma certa moralidade e regras no grupo. Koller (1994) também observou um alto índice de reciprocidade relacionada a comportamentos de ajuda, entre estas crianças. Com o intuito de entender melhor esta questão, vários estudos estão sendo desenvolvidos pelo CEP-RUA e podem ser mencionados. Em estudos recentes, Raffaelli e colaboradores (Raffaelli, Koller, Reppold, Kuschik, & Bandeira, 1997; Raffaelli, Koller, Bandeira, Reppold, Kuschick, & Dani, 1997) identificaram vários eventos de risco pessoal e social na vida de crianças de rua de 12 a 17 anos de idade. Os participantes de ambos os estudos revelaram uso de drogas, prática de sexo sem preservativo, diversos tipos de acidentes etc. Por outro lado, demonstraram várias habilidades para lidar com estes riscos, compensando suas dificuldades com estratégias que exigem competência e autonomia. Uma das estratégias utilizadas relaciona-se aos agrupamentos afetivos, econômicos e sociais, por meio dos quais garantem sua sobrevivência e segurança. Outra estratégia refere-se à busca do auxílio em instituições e de benfeitores para a solução de problemas prementes. Alguns sujeitos, para os quais foi oferecida uma oportunidade, relataram que esforçaram-se para aproveitá-la e melhorar sua condição de vida.

Kuschick, Reppold, Dani, Raffaelli e Koller (1996) em um estudo, no qual investigaram a visão dos meninos de/na rua a respeito de sua situação de vida e as estratégias que estes utilizam para enfrentar as dificuldades cotidianas desde a saída de casa até a condição atual, demonstraram que 58 sujeitos na cidade de Porto Alegre (34 e 24), de 11 a 17 anos, encaram suas vidas como arriscadas e duras, mas contam com as instituições para superar algumas dificuldades. Kuschick e colaboradores (1996) utilizaram uma entrevista semi-estruturada que abrangia tópicos como: "vida na rua", "atividade do dia", "atividade da noite" e "eventos de vida". A análise do conteúdo das respostas sobre o viver na rua revelou que os meninos têm mais opiniões negativas (71%) com relação à vida na rua do que as meninas (58%). Os meninos revelaram receber menos ajuda (72%) do que as meninas (84%), seja da família ou de pessoas na rua. Dentre as atividades diárias, os meninos destacaram "ficar em instituições" (75%), "estudar" (41%), "vagar pela rua" (22%) e "trabalhar" (19%). As meninas referiram "ficar em instituições" (58%), "lazer" e "estudar" (37%) e "vagar pela rua" (32%). Dentre as atividades da noite, os meninos revelaram utilizar-se mais do espaço da rua para "dormir" (60%), enquanto as meninas procuram as instituições (47%) e a família (21%) para abrigo noturno. Mesmo assim, as meninas sentem-se menos seguras nessas condições (57%). Com relação aos eventos de vida, os meninos relataram sofrer mais acidentes (68% , 53%), maior uso de drogas (81% , 63%), sentir mais fome (66% , 48%), roubar (50% , 37%) e sofrer mais abuso físico pela polícia (66% , 32%) do que as meninas. Os dados revelaram que os meninos recebem menos ajuda, transgridem mais as regras sociais e avaliam sua situação como mais crítica do que as meninas. Esses achados reforçam a posição de que cada sexo encontra estratégias de ação diferentes quando se deparam com problemas da mesma natureza e estão expostos a situações de risco diferenciadas.

Desenvolvimento Cognitivo de crianças em situação de rua

A vivência de rua, certamente, proporciona experiências diferenciadas às crianças, que não são similares às das crianças que vivem sob a proteção permanente de uma família ou mesmo àquelas que freqüentam diariamente a escola. Os vários estímulos que a rua apresenta, exigem que a criança esteja atenta e preparada para manter a sua integridade física e sua sobrevivência. Esta atividade permanente, em um âmbito tão diferenciado e provocador, deve gerar desequilíbrios cognitivos e necessidade de equilibração constante. Alguns estudos afirmam que ao invés de provocar um retardo no desenvolvimento cognitivo, a vida na rua facilita e promove o desenvolvimento (Aptekar, 1989; 1996). No Brasil, Carraher e colaboradores (1985) revelaram que crianças trabalhadoras de rua podem ter uma aprendizagem natural da matemática, que a escola não é capaz de propiciar. Além de habilidades matemáticas, outros aspectos cognitivos foram avaliados, como o nível de julgamento moral. Barreto (1991) verificou que o raciocínio moral de crianças de rua, quando comparado ao de crianças de mesma idade que vivem com suas famílias, não difere significativamente. Koller (1994) também verificou que crianças em situação de rua, que não freqüentam escolas, raciocinam pró-socialmente no mesmo nível que crianças escolares da mesma faixa etária. Ou seja, conforme concluem Koller e Hutz (1996, p.14), "o viver na rua não impede o desenvolvimento de valores e não gera deficiências morais específicas em crianças e adolescentes".

A Tabela 2 apresenta alguns aspectos que indicam vulnerabilidade de crianças em situação de rua, do ponto de vista cognitivo, e algumas estratégias utilizadas para superar estas dificuldades.

As funções cognitivas podem estar afetadas, por exemplo, pelo uso freqüente e destrutivo de drogas que muitas destas crianças fazem, às vezes de forma permanente (Forster, Barros, Tanhauser, & Tanhauser, 1992). Não parece haver estratégia que supere esta vulnerabilidade. No entanto, sabe-se que na presença de uma oportunidade e com uma política social mais eficiente (no sentido de coibir a distribuição de drogas) as dificuldades acumuladas poderiam ser superadas, pelo menos em parte. Uma das drogas mais usadas e perigosas que ameaçam a saúde destas crianças, denominada "loló", não é considerada ilícita e sua venda não tem sido proibida pela polícia das grandes cidades, embora o prejuízo causado por ela seja devastador do ponto de vista físico e psicológico.

Outro aspecto cognitivo importante está relacionado à função psicológica da atenção. Em seus trabalhos de campo, as equipes do CEP-RUA observam que estas crianças apresentam dificuldade de prender a atenção em alguma tarefa mais específica por um período de tempo maior. Esta dificuldade não pode ser identificada como problema cognitivo de atenção concentrada. Considera-se que a função esteja preservada, especialmente se considerarmos a amplitude viso-espacial e a capacidade de atenção difusa destas crianças. Elas estão atentas a todos os estímulos que a rua apresenta, como uma forma de defesa pessoal, como se tivessem radares ou antenas para detectarem estímulos que passam desapercebidos ao transeunte comum. No entanto, seja por falta de hábito de se concentrar em uma tarefa específica (fato relacionado à falta de escolarização), seja por uso de drogas, a atenção concentrada parece não colaborar para a finalização de algumas tarefas.

A função da memória também apresenta algumas dificuldades. O uso de drogas pode ser responsável por este déficit. No entanto, a questão da temporalidade parece ser muito importante nesta questão. Tem-se observado que as crianças apresentam muita dificuldade de lembrar com clareza, qualquer evento que esteja relacionado com a medição do tempo. Esta falta de clareza revela-se nas respostas incomuns a perguntas que exigem conhecimento do sistema de medida de tempo convencional. Em geral, não sabem quanto tempo faz que estão na rua, que visitaram a família pela última vez, em que dia da semana se encontram, que hora do dia é agora, entre outras. Sem contar com a carga emocional que algumas destas questões pode abarcar, as dificuldades com o conceito de tempo podem estar relacionadas com a falta de rotina e de sistemas disponíveis de medição do tempo, ou com aspectos cronobiológicos. Uma criança que está na rua, não tem necessariamente um relógio para ver as horas, não come quando tem fome, mas quando tem comida disponível, dorme quando se sente segura e não exatamente quando tem sono. Estes fatores provavelmente afetam o desenvolvimento da noçãode tempo destas crianças. Esta é definitivamente uma área que requer estudo aprofundado e meticuloso.

A influência da escola no desenvolvimento cognitivo não pode ser subestimada, como afirmam Carraher e colaboradores (1985), apesar dos resultados positivos que obtiveram sobre o desenvolvimento de habilidades matemáticas de crianças trabalhadoras de rua. A perda da escolarização básica acarreta uma série de perdas de habilidades para estas crianças, especialmente com relação à linguagem. No entanto, a vivência da rua tem demonstrado uma outra forma de aprendizagem e desenvolvimento, que alguns pesquisadores chamam de "sabedoria de rua". Entre elas, a facilidade de lidar com dinheiro, de aprenderem música e habilidades computacionais. Em um Projeto de Oficina-Escola, no qual o CEP-RUA mantinha Oficinas de Matemática, observou-se que os adolescentes com baixa escolarização e história de rua, tinham mais facilidade de aprender aritmética se fossem utilizados estímulos como moedas e dinheiro em geral. Com esta estratégia tornava-se mais fácil ensinar somas e multiplicações para os adolescentes. Neste mesmo Projeto de Oficina-Escola, observou-se que os meninos aprendem com muita facilidade a trabalhar com computadores. A música, por sua vez, tem forte relação com sua criatividade. A perspectiva de participar de um festival de rap estimulou-os a aprender a escrever, para inscrever as letras de suas músicas, apresentar-se e ganhar os prêmios. A utilização destas estratégias no ensino têm se revelado muito úteis com estas crianças e adolescentes.

Desenvolvimento emocional de crianças em situação de rua

Aptekar, em vários estudos, relata ter avaliado o funcionamento emocional e neurológico de meninos e meninas em situação de rua da Colômbia (1988a, 1988b, 1989, 1996). Aptekar (1989) afirma que as crianças que estão na rua apresentaram escores mais elevados em medidas de saúde mental do que crianças que permanecem em casa. O afastamento das crianças do ambiente hostil e estressante que encontram em casa pode garantir aspectos de sua saúde mental. Koller e Hutz (1996) afirmam que estas crianças não seriam indivíduos emocionalmente mais frágeis, pois o deixar a casa revela sua habilidade de reorganizar sua vida, de forma produtiva, por conta própria. Em estudos realizados pelo CEP-RUA, problemas de relacionamento familiar, abuso físico ou sexual e o desejo de buscar a "liberdade" (escapar do controle e da exploração familiar) estão entre os principais motivos que levam crianças a migrar para as ruas (Bandeira et al., 1994; Koller et al., 1996). O distanciamento de um ambiente nocivo ao desenvolvimento psicológico pode estar relacionado a um indicador de saúde mental. Porém, a não ser no delírio romântico de quem não a conhece, a rua está muito longe de se constituir num ambiente favorável a um desenvolvimento psicológico sadio.

Em estudo realizado por DeSouza, Koller, Hutz e Forster (1995), foram comparados os índices de depressão entre crianças de rua e de nível sócio-econômico baixo. Os resultados deste estudo mostraram que não há diferença entre estes grupos, ou seja, crianças de rua não são mais deprimidas do que crianças pobres que continuam vivendo com suas famílias e freqüentando escolas. Estes dados corroboram o estudo de Forster, Marcantonio e Silva (1994). As autoras solicitaram às crianças de rua que relatassem seus sofrimentos e dores. Neste estudo, as autoras não encontraram maiores índices de sofrimento psicológico declarado em crianças de rua, quando comparadas às crianças de nível sócio-econômico baixo. Partindo destas idéias, Koller, Hutz e Silva (1996) investigaram o nível de bem-estar subjetivo de crianças de rua, comparadas a crianças pobres, que viviam com suas famílias. O nível de bem-estar subjetivo de ambos os grupos não se diferenciou entre si. Os resultados confirmam os achados dos estudos anteriores sobre depressão e sofrimento e, neste caso, demonstram que o bem-estar subjetivo não está relacionado ao nível sócio-econômico ou condição de vida das pessoas. Haidt, Koller, Santos, Frohlich e Pacheco (1996) investigaram as histórias de vida de adolescentes de rua, através de relatos de emoções, como alegria, tristeza, raiva, desprezo,vergonha, culpa, pena e nojo. Os resultados revelam alta freqüência de eventos de risco nas trajetórias de vida destes sujeitos. No entanto, a expressão de sua sensibilidade e de suas emoções aparecem preservadas. Quando comparados com adolescentes de nível sócio-econômico baixo, observou-se que as redes de relacionamento e a competência para lidar com os eventos de risco eram mais elaboradas na amostra de rua. Os adolescentes de escola relatavam mais depressão, pensamentos conflituados, e busca de alternativas ineficazes para lidar com o stress. Os adolescentes que estavam na rua buscavam ajuda nos amigos e nas instituições, procurando apoio emocional e ajuda. Poucos relatavam buscar drogas para superar seus problemas. Os adolescentes da escola relatavam fugas de casa, brigas, uso de drogas e outras estratégias destrutivas e agressivas para lidar com os problemas imediatos. Certamente, os adolescentes que ora estão na rua, buscaram no passado uma estratégia conflituada para lidar com seus problemas, uma vez que saíram de casa. No entanto, ao que parece, a vida na rua está mostrando novas alternativas de resolução das dificuldades para eles.

Do ponto de vista emocional, a saída de casa pode representar o fracasso total do apego que um indivíduo tinha com as pessoas de sua família e desta para com ele. A falta de proteção, o sentimento de rejeição, a aparência de abandono que a criança vai revelando a cada dia na rua o confirmam. A ausência de cuidado de um adulto responsável que a ame, em quem ela possa confiar, com o qual ela se sinta segura e se identifique, podem ter profundas implicações no seu desenvolvimento emocional. Ironicamente, conforme afirmam Donald e Swart-Kruger (1994), a história relatada pela criança sobre a sua vida antes de sair de casa revelam a ausência deste apego e alta freqüência de riscos a que estava exposto dentro de sua própria casa, junto de sua família. No estudo de Reppold e colaboradores (1997), as crianças revelam que estes riscos precipitaram ou forçaram a sua saída para rua. As crianças revelam que suas casas são punitivas, hostis, perigosas e as rejeitaram. Seus pais são descritos como ausentes, doentes, desinteressados, abusivos e/ou violentos (Bandeira et al., 1994; Reppold et al, 1997). Koller (1994) verificou que um terço dos adolescentes de sua amostra saiu de casa porque não tolerava a ausência física do pai. Revelavam que desde que o pai se foi e eles se tornaram adolescentes, o nível de exigência e cobrança para com eles tornou-se intolerável. Relatavam, em geral, que a mãe passou a exigir que eles assumissem o sustento da família no lugar do pai, papel para o qual eles ainda não se sentiam competentes. Alguns deles referiam que saíram de casa, porque consideravam mais fácil, na sua idade, tomar conta de si próprios sozinhos na rua, do que ter que cuidar de toda a família. Da mesma forma, no estudo de Bandeira e colaboradores (1994), algumas crianças revelaram terem sido vítimas de abuso físico, abuso sexual, terem problemas de relacionamento com a família, sofrerem negligência, testemunharem violência doméstica e miséria.

Estes estudos relatam a versão de crianças que estavam na rua sobre a sua saída de casa. Foi feita uma tentativa de avaliar a visão das famílias sobre a saída das crianças de casa. Este estudo está sendo lentamente desenvolvido, devido a várias dificuldades operacionais. Houve uma tentativa inicial de executar este projeto em Porto Alegre, mas o tamanho da cidade e o número de vilas tornou difícil encontrar as famílias. Está sendo feita uma tentativa no interior do Rio Grande do Sul, em Pelotas, mas algumas dificuldades permanecem. Em geral, os endereços fornecidos pelas crianças não correspondem às suas famílias, ou estas já se mudaram do local. Estes endereços, às vezes, eram descritivos, desconhecidos e inatingíveis. Outras crianças negam-se a fornecer o endereço e expressam medo de que a família, através da equipe de pesquisadores possa encontrá-los. Outras vezes, ainda, a família encontrada nega-se a falar na criança e em seus problemas de relacionamento. Mesmo frente a todas estas dificuldades, não desistiremos deste estudo, uma vez que entendemos que estes dados possam ser muito ricos para o entendimento da realidade destes meninos e meninas e de suas famílias, subsidiando programas de prevenção da migração para a rua, ou para intervenção. Os resultados preliminares deste estudo (Recondo, Koller, Hutz, & Equipes, 1996) revelam que as famílias negam que tenham mandado a criança embora de casa, mas relatam problemas de relacionamento e não escondem a miséria e as suas dificuldades de parentagem com relação a seus filhos. Alguns casos específicos indicam a necessidade de intervenção urgente nestas famílias. Por exemplo, uma mãe que ao ouvir o nome de seu filho, disse que "uma vez teve um filho com este nome, mas não sabe falar nada sobre ele e que esqueceu que ele existia". Outro caso, de um irmão mais novo do que o menino que estava na rua, que nos revelou estar sofrendo abuso sexual permanente de sua mãe e padrasto, enquanto que seu irmão revelara ter saído de casa por não tolerar ser vítima de abuso. Um outro menino que, após relatar as constantes tentativas de abuso sofridas, afirmou: "um dia tomei uma atitude de adulto e saí de casa". Esta frase ilustra a hipótese de que a saída de casa pode ser resultado de fortalecimento de um indivíduo resiliente, que prefere sair às ruas e buscar a sua própria sobrevivência do que se submeter aos abusos dentro de casa. Os irmãos que ficam podem ser mais vulneráveis do que eles. Na presença destes relatos, o CEP-RUA via-se obrigado a parar o seu trabalho de pesquisa, reavaliar suas metas e estratégias, buscar novos subsídios e buscar alternativas de intervenção.

A Tabela 3 mostra fatores de vulnerabilidade e estratégias de superação de crianças de rua, com relação ao desenvolvimento emocional.

Nos estudos de Raffaelli e colaboradores (1997), alguns sujeitos revelam que saíram de casa, porque gostavam da rua. Relatavam experiências progressivas de ficar na rua e preferiam a ela, por causa do apoio dos amigos e por aliviarem do sofrimento em casa. Eles informam ainda que buscavam a liberdade, que é considerada por eles como um grande valor (Donald & Swart-Kruger, 1994). Com esta liberdade eles desenvolvem um senso de autonomia e auto-confiança que pode ser positivo para o seu desenvolvimento emocional. Richter (1988) comenta que a independência propiciou um senso de auto-gerência na vida das crianças de rua que não deve ser subestimado em seus efeitos positivos sobre o seu desenvolvimento.

Os achados destas pesquisas têm sido utilizados na promoção de programas de prevenção e intervenções na comunidade. Uma alternativa para a casa que garanta a sobrevivência e a segurança para os(as) meninos(as) que estão na rua deve ser encontrada, uma vez que a rua, apesar de desenvolver alguma sabedoria não é o lugar ideal para qualquer ser humano viver.

Desenvolvimento físico de crianças em situação de rua

O desenvolvimento físico de crianças e adolescentes em situação de risco tem sido discutido, principalmente, em estudos relativos à área médica (nutrição, puberdade, uso de drogas etc.). No entanto, o fato de estarem expostos a tantos riscos para garantir sua segurança e integridade física, também é uma preocupação da Psicologia, especialmente no que se refere às estratégias de sobrevivência e superação de dificuldades, por eles desenvolvidas. Sabemos que crianças e adolescentes em situação de rua estão expostos à violência, doenças e acidentes, tendo maior dificuldade de ter atendimento médico para tratá-los.

Muitas vezes para obter abrigo, alimento e segurança, estas crianças usam estratégias adaptativas, como conformidade, oportunismo, reciprocidade, busca de apoio dos amigos e instituições. Donald e Swart-Kruger (1994) referem que estas crianças utilizam-se de ingenuidade para conseguir aumento de renda, roupas e comidas. Neste aspecto, discordamos dos autores citados, quanto a denominação da estratégia utilizada, a qual preferimos chamar de engenhosidade. Estas crianças consistentemente descrevem estratégias elaboradas para conseguir o que precisam para sobreviver fisicamente. A ingenuidade pode ser demonstrada, entre estas estratégias, como uma forma de obter o desejado ou a agradar alguém.

A Tabela 4 apresenta aspectos do desenvolvimento físico de crianças em situação de rua, enfatizando fatores de vulnerabilidade e estratégias para garantir a sobrevivência.

Apesar do volume substancial de pesquisa na área, grande parte da qual é descritiva, há uma série de questões que ainda precisam ser investigadas para entendermos melhor o desenvolvimento desta população. Continua-se sabendo pouco sobre o desenvolvimento cognitivo destas crianças. Há poucos meses, eminentes cognitivistas, entre os quais algumas dezenas de brasileiros, reuniram-se em Geneve onde discutiu-se muito as implicações das pesquisas com chimpanzés para a teoria da mente. Porém, não há pesquisa sobre teoria da mente em crianças em situação de risco. Não se sabe, realmente, como crianças deste grupo entendem o mundo em que vivem, que processos utilizam para dar sentido a sua realidade, por que percebem tempo e espaço diferentemente de crianças de classe média (Hutz et al., 1995), quais são seus desejos, expectativas, temores etc. Enfim, como são essas crianças do ponto de vista psicológico, que impacto tem a socialização na rua ou em condições de vida muito precárias sobre o desenvolvimento e a cognição social? As diferenças entre crianças em situação de risco e crianças em geral são de conteúdo, de grau, ou existem diferenças qualitativas que apontam para a não-universalidade do desenvolvimento psicológico?

Seria também fundamental investigar que processos ou variáveis psicológicas protegem algumas dessas crianças, permitindo ajustamento emocional e o desenvolvimento da competência social, apesar das circunstâncias extremamente desfavoráveis em que vivem. Muitas dessas crianças não cometem crimes graves, não se tornam dependentes de drogas, e muitas vezes são capazes de aproveitar oportunidades que a sociedade ocasionalmente oferece para romper com a marginalização.

Outra linha de pesquisa importante que deveria ser aprofundada diz respeito ao estudo das famílias de crianças que migram para a rua, comparativamente a outras famílias, da mesma vila ou favela (da casa ao lado muitas vezes), cujos filhos permanecem em casa e seguem freqüentando a escola. Quais são os elementos capazes de explicar, ainda que em parte, essa diferença? Locus de controle? Expectativas de vida? Religiosidade? Sistemas de apoio social?

Não seria realmente possível tentar descrever ou listar aqui toda a multiplicidade de projetos que deveriam ou poderiam ser desenvolvidos. Para finalizar, é importante salientar que conhecimento deve ser produzido nesta área não apenas por sua relevância teórica (o que, em princípio, poderia ser uma razão suficiente). O conhecimento produzido por pesquisa nessa área tem alta relevância social e pode dar uma contribuição decisiva na luta para a promoção de uma sociedade
mais justa e mais humana. Por isso mesmo, é muito grande a responsabilidade ética do pesquisador que se aventura nessa área (Hutz et al., 1995; Hutz et al., 1997). Esta é outra questão fundamental que, embora não possa ser discutida aqui, não poderia deixar de ser pelo menos mencionada.

Abstract:
Issues regarding the development of street children.
Psychology and scientific research do not seem to offer satisfactory answers to many issues regarding the development of street children. Some studies argued that living on the streets is harmful or, at least, that it slows down psychological development because of the exposure of the children to addictions, violence, and exploitation. Other studies have shown that the street allows for accumulative experiences which promote a healthy development. These paradoxical findings point to the need to carry out more research in this area. Researchers at CEP-RUA/UFRGS are conducting systematic research on the emotional, cognitive and social development of street children. Our findings indicate that street children present high levels of stress and of exposure to personal and social risk. However, we have also found out that they develop skills to cope with the risk and the stress. They overcome the hazards of life on the streets using strategies that require competence and autonomy, especially strategies for establishing affective, economic and social groups through which they manage to be safer and to survive. Children in our samples did not present levels of depression or trauma higher than those of low SES children. They do not differ significantly from other groups when tested for subjective well being. Studies about life events and emotions revealed surprising stories about their life and sensitivity. Nevertheless, alternatives to a nurturing home that fosters a healthy development must be found. The street, even if it does not cause great psychological harm, is not a healthy place for human beings to live.
Key words: Street Children, Children at Risk, Development.

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Claudio Simon Hutz e Sílvia Helena Koller são doutores em Psicologia, respectivamente, pela University of Iowa e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/Arizona State University, e professores do Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço para correspondência: CEP-RUA, CPG Psicologia, UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600, 90035-003, Porto Alegre, RS.

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