PROPOSTAS PARA UMA PEDAGOGIA CRIATIVA
WALTER BOECHAT
Associação Junguiana do Brasil
Trabalho apresentado no VI Simpósio da AJB - São Paulo - Novembro de 1998
A pedagogia tem aspectos arquetípicos que envolvem qualquer transmissão do conhecimento. De todos o conhecimentos, o mais importante é o conhecimento de si mesmo, e a sabedoria antiga sabe bem deste fato.
E o conhecimento de si próprio, o antigo Gnote Sautón do templo de Apolo é o único conhecimento que realmente vale a pena se dedicar a ele, pois na medida em que nós nos conhecemos em profundidade, todas as demais coisas nos são reveladas.
O processo de individuação é um processo pedagógico por excelência, na medida que é um processo gradual de realizar as potencialidades inatas através de um descobrir-se aos poucos, por um desvelar-se em conhecimento pleno. O lento desdobrar-se da individuação começa desde os primeiros meses de vida até a morte. Da mesma forma, o processo pedagógico de aprendizagem para a vida e para si mesmo tem lugar do início da vida até a morte.
A individuação é mais evidente na segunda metade da vida, quando a personalidade se volta para um encontro definitivo com suas raízes no arquétipo do Self. Já a educação em sentido estrito é compreendida geralmente como referida à infância e adolescência, na preparação do indivíduo para deixar o meio familiar e ser equipado para os desafios da sociedade.
Entretanto, mesmo após a adolescência e a idade adulta as necessidades de uma educação integral do ser, em seu sentido mais pleno, permanecem. O adulto, embora sem a plasticidade mental da criança, deverá buscar sempre em sua vida, novas possibilidades de crescimento espiritual que a pedagogia irá proporcionar.
O nome pedagogo vem do grego pédos- criança, gogós- acompanhar, e se referia na antiga Grécia ao escravo que acompanhava o jovem à academia para ser ensinado. Aquele que transmite o ensino deverá ter essa atitude, a de um acompanhante de um outro à busca do saber. Ele é assim, antes um facilitador nesta busca do conhecimento, do que um dono autoritário da verdade.
Entretanto, por um automatismo inconsciente, o professor tende sempre a ter uma postura de poder frente ao seu discípulo, como se o conhecimento fosse algo a ser ministrado a partir de fora. Mas o conhecimento, em sua forma mais diferenciada, é aquele que emana de dentro, a partir de uma intensa curiosidade e interesse que o aluno passa a ter de diversos assuntos que o verdadeiro pedagogo despertará nele.
Este me parece um ponto chave em uma proposta de pedagogia criativa: o rompimento da díada de poder professor - aluno, transformando-a numa relação produtiva na qual o professor irá sempre se descobrindo aluno, em constante aprendizado, e o aprendiz, encontrará seu mestre interior, única forma de caminhar dentro de uma busca de saber genuína.
Em nossa experiência de ensino, quer em curso de treinamento de analistas, quer seja em ensino de graduação e pós - graduação em psicologia analítica, temos procurado valorizar ao máximo a descoberta pelo aluno de sua maneira única de aprender e assimilar novos conhecimentos.
Temos percebido assim, uma grande proximidade entre ensino e individuação, entre aprendizado e auto - conhecimento, entre pedagogia e maturidade pessoal para a vida.
A pedagogia realmente criativa se edifica na construção gradual da singularidade de cada indivíduo contraposta a outras singularidades e, como quer Gerd Bornheim (1), é no estofo destas contraposições que se edifica uma vocação para a universalidade. Pois a própria palavra universalidade advém da divisão das palavras latinas unus versus alia ou plura- uma unidade contraposta a outras (2).
E é esta vocação para a universalidade que domina o processo da educação, a gradual retirada da criança do berço da família que, por um jogo crescente de contraposições, a levam a experiências cada vez mais coletivas, para a escola e para a entrada no social.
Sem a educação na universalidade do social, sem esse cultivo dos universais, o homem ficaria restrito ao absurdo de sua singularidade individual.
Estamos aqui tocando na clássica questão dos universais, da qual se ocupou com especial intensidade a escolástica medieval. A formulação da realidade dos universais encontrou no realismo seu carro condutor chefe, o antigo platonismo continuou até Hegel, que defendeu a realidade onto-teo-lógica dos universais, presentes na história.
A contra- corrente ao realismo, o movimento do nominalismo, sustenta que a existência é mais importante que a essência, e não ao revés, como defendia o realismo. A existência dos seres em separado, com todas suas características próprias individuais é muito mais importante que uma essência invisível e transcendente, uma idéia platônica abstrata, localizada num empíreo remoto.
A perda dos universais de suas vestimentas teologais associou-se na idade moderna ao nascimento do espírito científico; o que Bornheim denominou de "universais concretos"(3) representam a apropriação destes mesmos universais pela ciência, pois já estão destituídos de suas características teológicas tradicionais.
Os universais concretos iram dar base real a qualquer forma de pedagogia. Qualquer Paidéia, qualquer projeto educacional em sentido amplo, torna-se inviável sem o referencial do universal concreto. Bornheim se pergunta onde estes novos universais, desprovidas do referencial teológico tradicional, irão encontrar eles nova base no real?
Bornheim, refletindo sobre as implicações humanísticas e filosóficas dos descobrimentos em "A Descoberta do Homem e do Mundo"(4) encontra no espírito científico do renascimento presente nos grandes descobrimentos, a presença da alteridade como fator fundamental do universal concreto dentro da nova perspectiva da grande descoberta do outro.
A questão da alteridade, presente em qualquer projeto pedagógico, questão fundante mesmo da pedagogia, deve ser tratada aqui com detida atenção.
A alteridade, a descoberta do outro como elemento essencialmente diferente do si, foi elaborada desde os albores do pensamento filosófico no ocidente. Já Pitágoras de Samos, com sua filosofia de base numérica iria dizer que os números ímpares se referem à identidade, e os números pares à alteridade, às relações do eu e do outro. Platão procurou definir a alteridade, o "tó héteron", como o conceituou, como uma conciliação entre o mundo das essências imutáveis de Parmênides, que se referem à identidade e o devir hieraclítico, que configura o outro.
A filosofia de Buber revigora a questão da alteridade com a ênfase na relação Eu - Tu. A psicanálise também retomou esta questão, no tocante aos estudos das relações da criança com a mãe, a alteridade fundante para a estruturação do ego.
A descoberta do novo mundo pelos navegantes trás a questão da alteridade para um sentido cósmico e civilizatório. A descoberta de novas terras vem permeada de projeções do inconsciente coletivo, as praias do Brasil seriam a China, ou a Índia? Os monstros imaginários que se pensava povoavam os oceanos trouxeram decepção a Colombo por não existirem na horizontalidade do espaço físico.
Nestas descobertas se dá um processo evangelizador e de conversão dos outros povos que demorou longo tempo para se tomar consciência de ser ele desprovido de alteridade, pois sempre a evangelização incluiu a conversão nos valores de si próprio, nos universais profundamente envolvidos em valores teológicos. Uma pedagogia de todo capenga, por não respeitar a diferença do outro.
Ainda quanto a questão da alteridade como elemento essencial do humanismo moderno, a antropologia científica demonstra a importância do princípio da diferença no conhecimento do social e da relação do indivíduo com o social. Enquanto esteve mergulhada em etnocentrismo obliterante, a antropologia de Tylor e Fraser permaneceu meramente um referencial de evolucionismo cultural, isto é, outros povos sendo vistos apenas como pré- figurações infantís do modelo de sociedade ideal, a do homem europeu moderno. Somente a antropologia moderna, quer seja a do funcionalismo de Malinowski, quer seja a do estruturalismo de Lévi- Strauss, está aberta realmente para a diferença da outra cultura. O que se busca aqui não é nenhum julgamento, nenhuma interpretação, apenas a constatação da diferença, da alteridade. A alteridade cultural é fundamental para a compreensão de nossa própria cultura, o contemplar o outro nos ensina sobre nós mesmos, esta é uma pedagogia radical de sobrevida social; daí a sobrevivência de nossos índios se reveste de urgência, pois são um paradigma de alteridade cultural importante.
Devemos considerar agora as íntimas relações que guardam conhecimento, cultura e educação, elementos inseparáveis e que sofrem uma retroalimentação continuada em qualquer sociedade.
Edgar Morin nos lembra que as condições sob as quais o conhecimento é possível são de natureza extraordinariamente variada; são do tipo físico, celular, cerebral, psíquico, social e cultural. (5)
Cultura e educação operam dentro de dois eixos fundamentais que se entrecruzam em fulcro central: as condições socioculturais e as biocerebrais. Estes dois eixos são interdependentes, "pois as sociedades e as culturas se constituem e evoluem somente mediante as interações cerebrais/mentais entre os indivíduos"(Morin) (6).
A cultura se organiza e atua de forma organizadora através da linguagem, dos conhecimentos adquiridos, consciência histórica e crenças míticas, todos esses valores moldados pelos arquétipos do inconsciente coletivo, que se fazem representar pelas representações coletivas e pelo imaginário coletivo.
A cultura e sociedade estão em interdependência generativa, e nestas interações Edgar Morin postula que não devemos nunca esquecer o indivíduo, e as interações entre os indivíduos, que são eles mesmos, portadores e transmissores da cultura, estas interações regeneram a sociedade, que por sua vez, regenera a cultura. (7)
De acordo com a abordagem da filosofia complexa de Morin, a cultura de uma sociedade é como se fosse uma complexa mega- unidade de cálculo que armazena todas as informações cognitivas e, por possuir propriedades quase lógicas, formula normas práticas, éticas e políticas desta sociedade. Mas de certo modo, esta unidade central de cálculo, como a chama Morin, está presente também em cada mente/cérebro individual, e assim, a cultura faz o indivíduo e o indivíduo faz a cultura, em processo holográfico de retroalimentação contínua.
A cultura está sendo abrindo e fechando as possibilidades bioantropológicas de conhecimento. Ela as abre na medida em que põe à disposição dos indivíduos o repositório de seu conhecimento acumulado, seus método de aprendizado, pedagogia e pesquisa e assim por diante; ela simultaneamente os fecha por suas proibições, normas e tabus, seu etnocentrismo. (8)
A noção de que o indivíduo faz a cultura e a cultura faz o indivíduo em processo de retroalimentação contínua que nos trás Morin é muito importante. De acordo com ela, a educação está nas mentes, ela vive na mentes que estão em processo de aprendizado cultural, mentes que vivem na cultura. Nossas mentes reconhecem através do aprendizado cultural, mas de certo modo, a cultura também reconhece através de nossas mentes. É a sempre presente dialética entre indivíduo e cultura, mecanismo essencial subjacente ao processo de individuação que Jung retomou por diversas vezes.
Edgar Morin lembra ainda que a relação entre as mentes individuais e a cultura não é difusa e sim do tipo hologramático. Hologramático por que a cultura está nas mentes individuais e as mentes individuais estão na cultura. A noção de arquétipo e de imagem arquetípica e fundamental para se entender esta colocação de Morin, pois está claro para nós, que as imagens arquetípicas, essencialmente são culturais e ao mesmo tempo, manifestam-se no indivíduo, de acordo com sua experiência individual.
A relação entre indivíduo e cultura também é do tipo recursivo, pois assim como os seres vivos buscam sua sobrevida no ecossistema que só existe devido às interações dos seres vivos, da mesma forma, os indivíduos só podem desenvolver uma pedagogia e uma educação dentro de uma cultura, que por sua vez só pode existir, devido à interatuação cognitiva e pedagógica dos indivíduos.
O fulcro biocerebral e sociocultural da educação mencionado anteriormente já está funcionamento antes mesmo do nascimento. A realidade urobórica que a psicanálise e também Erich Neumann registraram como fase importante do desenvolvimento do ego deve ser atualizada à luz dos modernos estudos sobre psiquismo fetal. Sabe-se que o feto sonha, pois apresenta a fase REM do sono; a pergunta que se faz é: sonha com o quê, já que não tem vivência do mundo externo? Os psicanalistas respondem com propriedade que sonham com protofantasias, os junguianos dirão com acerto que o feto tem sonhos arquetípicos, nos quais as imagens arquetípicas se apresentariam de forma simples e abstrata.
O que importa é que existe um psiquismo fetal, como o comprovam também os modernos estudos de ultrasonografia. Já existe portanto uma alteridade fetal, uma individuação a nível intrauterino e portanto, o estado urobórico é uma realidade não tão unitária. Se assim não fosse, o bebê prematuro, viável biologicamente, não seria viável psicologicamente, isto é, nasceria psicótico ou portador de moléstia mental grave.
Mas a ultra-sonografia mostra com freqüência o feto reagindo a estímulos ambientais, como sons, luz, música, de forma semelhante ao adulto.
Aqui uma questão filogenética deve ser lembrada. Os antropóides que antecederam o Homo sapiens tiveram um período gestacional de dez meses aproximadamente. No decurso da evolução, o Homo sapiens se caracterizou por um grande desenvolvimento da caixa craniana, desproporcional ao resto do corpo. O canal do parto das mães não era largo suficiente para a passagem do feto e a mortalidade materna tornou-se muito elevada. A seleção natural passou a promover um nascimento precoce, isto é, aos nove meses. A maior mobilidade das fontanelas cranianas facilita o parto, mas também o recém-nascido humano tornou-se para sempre um eterno prematuro. A prematuridade em nível físico, com articulações, fâneros e unhas ainda em formação é acompanhada por uma prematuridade emocional, e isto é muito importante lembrar.
A prematuridade emocional do ser humano ao nascer levou Adolf Portmann a cunhar a expressão período embrionário extra- uterino, referindo-se aos primeiros meses de vida do bebê nos quais a sobrevida tanto física quanto emocional dependem de um cuidado atento da mãe.
Devido a estas recentes descobertas do psiquismo fetal, não é exagerado dizer que já no período intra- uterino a esfera sócio-cultural atua sobre o ser, através mesmo dos hábitos da mãe, influências ambientais, sons, música e outros. A passagem desta fase intra- uterina para um período de adestramento pela educação familiar e social não sofre solução de continuidade, mas é antes um processo de continuidade.
A chamada "estabilização seletiva das sinapses" cria aos poucos rotas seletivas de conhecimento no sistema cerebral, indo determinar, de certa forma, como cada um irá perceber a realidade. A cultura torna-se, assim, uma co-produtora da realidade, como é percebida por cada indivíduo.
Fica bem claro que a educação começa no indivíduo bem antes do advento da comunicação escrita ou verbal. Os processos pedagógicos não verbais usados com grande ênfase na primeira infância foram, como se sabe retomados pelas técnicas de ludoterapia em psicanálise, as técnicas do jogo em Winnicott, em psicologia analítica Jung, ele próprio, foi um grande pioneiro do uso de técnicas expressivas como desenho e pintura na dialética com o inconsciente, em seu próprio processo de individuação. A psicologia analítica tem nos últimos tempos, desenvolvido diversas abordagens não verbais, umas mais conhecidas, como a caixa de areia de Kalff, outras não tanto, como a associação do movimento com a imaginação ativa, trabalho desenvolvido por Mary Whitehouse nos Estados Unidos, e as relações corpo- imagem desenvolvidas por Arnold Mindell.
As técnicas não verbais em psicoterapia aplicam-se naturalmente a uma proposta criativa em pedagogia. Técnicas de ensino e aprendizado que incluam processos não verbais serão muito interessantes, é claro, pois levarão à experiência individual do material teórico transmitido, levando o aluno a vivências subjetivas em nível profundo do material teórico discutido em seminários e comunicações teóricas. Esta é nossa experiência em curso de formação de analistas e em grupos de estudos, mas as técnicas expressivas não verbais são válidas para uma proposta pedagógica criativa em nível de ensino em geral, qualquer que seja ele, pois toca aqui em problema muito importante de qualquer pedagogia: mais importante do que a busca do saber a qualquer preço é a produção do desejo de saber, e este é um desejo ético importante para que se produza o verdadeiro espírito universitário.(9)
O corpo é um referencial importante na pedagogia não verbal- vivencial. A título somente de exemplo, um importante tema como a questão da definição da libido em psicologia analítica pode ser vivenciado de forma não verbal em seminário.
Em Símbolos de Transformação, Jung explora as relações da Libido com a questão do ritmo. O ritmo está presente na produção do fogo ritual Agni, nos Vedas, em que o bastão vertical, ritualisticamente é friccionado no bastão horizontal, de forma rítmica. O fogo é assim produzido. Certos hábitos masturbatórios estão associados à piromania, e pacientes muito regredidos, ou psicóticos crônicos, têm maneirismos repetidos ritmicamente. O núcleo simbólico fogo-ritmo-Libido aparece nítido nestas manifestações. (10)
Pois bem, após o estudo destes temas, os alunos em seminário podem ser motivados a explorar seu próprio corpo, verificar em seu íntimo a musicalidade de seu próprio ritmo individual, manifestação da libido de forma única em seu processo de individuação, através do ritmo cardíaco, do batimento do pulso, e o grupo poderá ou ser convidado a fazer um desenho sobre esta experiência. O coordenador do seminário coordenará comentários e associações de cada participante. Entretanto, esta é sempre uma experiência de ensino, e não uma análise pessoal, e cada participante irá caminhar em suas associações até onde queira ir, e ao coordenador do seminário caberá muito mais amplificar do que interpretar.
Faço esta observação, embora concordemos com Hillman de que a psicoterapia não se processa unicamente no consultório, mas também sempre aonde se produza um cultivo da alma, como num simpósio científico como este, em qualquer evento cultural ou numa exposição de arte. Isto posto, a pedagogia criativa não está, nem pode ser, em essência, separada de um processo de auto- conhecimento.
Quero também fazer algumas observações sobre a presença da psicologia analítica na universidade. Consideramos este tema importantíssimo e de grande atualidade, pois é nossa impressão que as psicologias do inconsciente, junguianas, freudianas e em suas diversas ramificações tendem a encaminhar para a universidade, o locus da transmissão do saber por excelência, e as instituições formadoras de analistas deverão, em futuro próximo, ter conexões mais íntimas com o saber universitário, sem perder, naturalmente sua autonomia.
As razões deste caminhar, deste encontro que deverá ser muito frutífero , entre o saber acadêmico universitário e o saber de um programa de formação de analistas são múltiplas. As universidades estão cada vez mais abertas, de uma maneira geral, pois têm gradualmente se libertado de noções pré - concebidas do que deve ser sabido, ou do como deve ser sabido.
Ao mesmo tempo, concordo com Andrew Samuels, que sugere diversas maneiras de sobrevivência da psicologia analítica ao final do século, sendo a universidade uma das principais (11).
Segundo Samuels, há muitas possibilidades pedagógicas para a psicologia analítica na universidade. A primeira se refere à questão da eficácia clínica em psicoterapias de longa duração. É notório que a literatura a este respeito é escassa.
Outro possibilidade seria a investigação do próprio processo terapêutico, no que concerne, por exemplo, a como cada terapeuta trabalha, dependendo de sua orientação teórica, ou como reage quando confrontado com situações clínicas determinadas. Pesquisas também podem ser feitas quanto ao identidade sexual, etnia e conduta terapêutica, tanto referidos ao terapeuta quanto ao cliente.
Samuels sugere outra investigação interessante: até quanto seria ou desejável uma intervenção de cunho pedagógico em psicoterapia? Isto é, seria válido, em certas circunstâncias, o terapeuta explicar ao cliente o tipo de processo a que ele está se submetendo, sua provável evolução e objetivos? Uma dos ganhos da pesquisa seria informar não só aos pacientes, mas ao público em geral, sobre os objetivos reais da análise, evitando as noções distorcidas e superficiais que vêm à público.
Um aspecto importante da obra de Jung é que ela foi publicada em sua edição completa não seguindo uma ordem cronológica como a edição standard da obra de Freud, mas por temas, daí ser obra junguiana ser chamada "Trabalhos Coligidos" (Collected Works). Isto muito embora a obra de Jung tenha sofrido constantes revisões, durante o curso de sua vida criativa. Certas pesquisas sobre conceitos de psicologia analítica como o de arquétipo, por exemplo, tornam-se muito difíceis. Na universidade, o estudo aprofundado da obra junguiana em seu contexto histórico em suas variáveis poderia ser assinalado, em oposição ao contexto clínico, que trabalha mais com conceitos em sua forma operacional atual.
Samuels chama a atenção ainda para as inúmeras contribuições que a psicologia analítica pode trazer em colaboração, na universidade, com a educação e a sociologia, estudos sobre liderança, política e cidadania sobre o ponto de vista da teoria junguiana; ainda o estudo da crítica literária, das artes e estudo sobre o gênero. É importante assinalar a observação de Samuels de que nas diversas universidades onde esteve, foi nos locais de estudo das religiões comparadas que ele encontrou talvez as mais cuidadosas e criteriosas leituras de textos junguianos. Além das possibilidades de colaboração com antropologia e filosofia, Samuels cita ainda o interesse que na própria psicologia, a psicologia analítica desperta interesse, com os trabalhos de Jung com o teste de associação de palavras, a teoria dos tipos psicológicos, a influência de Jung em Henry Murray na evolução do T. A. T. e nos testes projetivos em geral.
Em minha vivência universitária concordo de modo geral com as observações de Samuels, embora elas tratem mais de possibilidades do que de realidades fatuais, mas creio que muito do proposto pode ser alcançado em nível pedagógico para a psicologia analítica.
No Instituto de Psicologia e Psicanálise da Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, temos cinco cadeiras eletivas relacionadas à psicologia analítica de Jung no curso de graduação. As cadeiras são ministradas de forma sucessiva, a cada semestre. O aluno particularmente interessado em psicologia analítica poderá cursar as cinco cadeiras eletivas, aprofundando gradualmente seu conhecimento. Abriu-se para nós uma possibilidade para o exercício do que estou chamando de pedagogia criativa, pois juntamente com a cadeira teórica houve também o espaço para ter uma atividade de supervisão no SPA, [Setor de Psicologia Aplicada]. O aluno poderia escolher tanto a cadeira teórica quanto o grupo de supervisão junguiano. É claro que as outras correntes teóricas estão igualmente presentes, Freud, Lacan, Reich, Moreno, Winnicott, Rogers.
Em eventos culturais dentro da universidade, ela se mostra um espaço para a universalidade do saber, tão necessária para a educação, já que é freqüente a formação de mesas redondas com pessoas de diversas tendências teóricas, que podem levar o aluno a uma maior reflexão sobre o que realmente importa: o paciente e seu sofrimento.
Lembro-me em especial de uma mesa redonda da qual participei recentemente com o tema versando sobre o tratamento das psicoses. A mesa foi composta por um psiquiatra clínico, uma analista lacaniana e eu. Houve frutuosa convergência nas abordagens.
Talvez seja esta a contribuição mais sadia que a universidade possa trazer para aqueles que participam de instituições formadoras de analistas; uma saudável relativização das teorias, uma retirada de um isolamento teórico que a instituição formadora forçosamente leva, pela própria necessidade que tem de aprofundar seus métodos teóricos.
Outra experiência que temos em nível universitário e o curso de pós-graduação "lato- sensu" em psicologia junguiana junto ao IBMR, no Rio de Janeiro. O curso dura um ano e oito meses e em 1999 se iniciou a quinta turma. O aluno para terminar o curso, deve ter sua monografia aprovada por um orientador. O curso obedece às regulamentações do conselho federal de educação, e tem doze matérias teóricas referentes à psicologia analítica. Naturalmente o curso em nível de pós-graduação tem nível de aprofundamento bem superior ao da graduação e muitas vezes serve como uma preparação para aqueles que eventualmente busquem uma formação em psicologia analítica.
As interações de pesquisa com outras áreas do saber, que Samuels sugere, temos encontrado na pós-graduação, onde, por exemplo, a psicóloga Helena Saldanha fez importante trabalho de campo, de cunho antropológico sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro relacionando-o com o arquétipo do Herói.
As questões de uma maior reflexão quanto a pesquisa de práticas clínicas encontrei na graduação, onde no SPA, junto com o psicanalista José de Matos, supervisionei um caso clínico de homossexualidade masculina e a abordagem junguiana e freudiana foram debatidas.
Os caminhos para uma pedagogia criativa são múltiplos e devem ser analisados em cada contexto. Procuramos trazer aqui nossa experiência pessoal de ensino vivenciada em três níveis, na graduação, pós- graduação e em instituições formadoras de analistas onde estivemos sempre confrontando o desafio arquetípico e ético que permeia toda a transmissão do saber: abandonar a busca do saber a qualquer preço, pela produção do desejo do saber. A admissão da falibilidade do professor, quando diz perante ao aluno: "tal tema foge ao meu conhecimento pleno, mas vou investigar, na próxima vez o trabalharemos juntos". Tal colocação é cada vez mais rara de ser feita perante o aluno, embora seja extremamente sadia, por ser mais realista, desfazendo idealizações, afastando a imagem arquetípica do mestre para o nível do símbolo e evitando a concretização que isola mais que aproxima professor e aluno na busca do saber.
Mas é sempre importante ter em mente a ênfase que Jung sempre deu à educação através do exemplo pessoal, de como a personalidade dos pais e também de professores é fator decisivo em qualquer pedagogia. (12)
Bibliografia
Bornheim, G.- A Descoberta do Homem e do Mundo, In: A Descoberta do Homem e do Mundo. Minc, Funarte, Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
----------- idem, p. 20
----------- p. 21
----------- p. 25
Morin, E.- Cultura e Conhecimento. In: O Olhar do Observador . Watzlawick e Krieg (orgs). Editora Psy II, Campinas, 1995.
----------- op. cit., p. 72.
------------ p. 72.
------------ p. 73.
Figueiredo, A. C. - Ética e Ensino. In: Ética e Saúde Mental. ( Ana Cristina Figueiredo e João Ferreira Filho, orgs). Topbooks, Rio de Janeiro, 1996.
Jung, C.G.- Símbolos de Transformação. Ob. Comp. Vol. 5, Ed. Vozes, Petrópolis.
Samuels, A. - "Will the Post- Jungians Survive?"- Conferência na Irish Analytical Psychology Association, em 22 de novembro de 1997. ( Artigo no site da associação na Internet.)
Jung, C.G.- O Significado do Inconsciente na Educação Individual. In: Ob. Comp. Vol. 17, Editora Vozes, Petrópolis.
Obrigado por sua visita, volte sempre.