Publicado em 1955, no auge da Guerra Fria e apenas dois anos depois da morte de Stálin, “O ópio dos intelectuais” (Três Estrelas, 352 pgs.) conserva, mais de 70 anos depois, uma impressionante atualidade. Numa época em que ser de esquerda na França era quase uma obrigação moral, o sociólogo e filósofo Raymond Aron (1905-1983) fez uma análise fulminante dos mitos e ilusões que dominavam o pensamento que hoje seria chamado de “progressista”. Evocando a célebre sentença de Marx em “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel” (“A religião é o ópio do povo”), o título do livro vai direto ao ponto: o esquerdismo também pode ser uma religião, uma igreja que abriga fanáticos e fundamentalistas. Trata-se de um ensaio seminal, cuja leitura deveria ser recomendada em todos os cursos de graduação do país.
Sem uma concepção sistemática da realidade política e histórica, o pensamento de Aron é calcado na realidade, não em abstrações teóricas. “O conhecimento verdadeiro do passado nos remete ao dever da tolerância, a falsa filosofia da história dissemina o fanatismo”, escreve. É nesse atrito deliberado com a realidade tal qual ela é, e não como gostaríamos que ela fosse, que Aron elabora sua defesa da razão, da democracia e da liberdade – e sua crítica lúcida ao autoritarismo, ao fanatismo e à idolatria política.
Sem temer qualquer patrulhamento ideológico, o autor partiu da constatação de que os mesmos intelectuais e acadêmicos que costumavam ser impiedosos em suas análises das falhas da democracia liberal demonstravam uma tolerância infinita diante dos desastres econômicos e das atrocidades políticas cometidas em nome da doutrina que eles consideravam correta. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência. As mesmas pessoas que fecham os olhos às consequências calamitosas de quase 14 anos de um projeto de poder fracassado torcem o nariz diante de reformas tornadas urgentes pela irresponsabilidade e pela incompetência inerentes daquele mesmo projeto.
Aron demonstra uma virtude cada vez mais rara: a inteligência do bom senso. Ao longo de cinco décadas, fez análises certeiras de fenômenos sociais e políticos os mais diversos, enxergando muito mais longe e fundo do que pensadores que tinham a pretensão de encarnar a consciência da sociedade, com o seu contemporâneo (e coetâneo) Jean-Paul Sartre. Na primeira parte de “O ópio dos intelectuais”, ele se dedica a mapear mitos políticos que ainda estão em vigor: o mito da esquerda, o mito da revolução e o mito do proletariado. Em seguida, faz reflexões sobre o sentido da História, em capítulos como “A ilusão da necessidade” e “Homens de igreja e homens de fé”, nos quais classifica o comunismo como "uma versão aviltada da mensagem cristã", por sacrificar a liberdade e a diferença no altar da ortodoxia do Estado onipotente.
O autor mostra, ainda, que o desenvolvimento da economia contrariou diversas previsões marxistas aos quais acadêmicos de esquerda ainda se aferram. Por fim, ele investiga a relação dos intelectuais com a ideologia, apontando para sua busca inconsciente por uma religião. Na conclusão, Aron pergunta se é possível vislumbrar o “fim da era ideológica” e o triunfo do poder da razão. Se ainda estivesse vivo e visitasse o Brasil, ele veria que as ideologias estão mais fortes do que nunca, e que a atração dos intelectuais por projetos autoritários continua. É uma pena que Raymond Aron seja hoje tão pouco lido. Na verdade, nem Sartre leem mais. O nível dos pensadores baixou muito, e o nível do debate político também.