Raymond Aron mapeia os mitos da esquerda em 'O ópio dos intelectuais'

Sem uma concepção sistemática da realidade política e histórica, o pensamento de Aron é calcado na realidade, não em abstrações teóricas. “O conhecimento verdadeiro do passado nos remete ao dever da tolerância, a falsa filosofia da história dissemina o fanatismo”, escreve. É nesse atrito deliberado com a realidade tal qual ela é, e não como gostaríamos que ela fosse, que Aron elabora sua defesa da razão, da democracia e da liberdade – e sua crítica lúcida ao autoritarismo, ao fanatismo e à idolatria política.
Sem temer qualquer patrulhamento ideológico, o autor partiu da constatação de que os mesmos intelectuais e acadêmicos que costumavam ser impiedosos em suas análises das falhas da democracia liberal demonstravam uma tolerância infinita diante dos desastres econômicos e das atrocidades políticas cometidas em nome da doutrina que eles consideravam correta. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência. As mesmas pessoas que fecham os olhos às consequências calamitosas de quase 14 anos de um projeto de poder fracassado torcem o nariz diante de reformas tornadas urgentes pela irresponsabilidade e pela incompetência inerentes daquele mesmo projeto.
Aron demonstra uma virtude cada vez mais rara: a inteligência do bom senso. Ao longo de cinco décadas, fez análises certeiras de fenômenos sociais e políticos os mais diversos, enxergando muito mais longe e fundo do que pensadores que tinham a pretensão de encarnar a consciência da sociedade, com o seu contemporâneo (e coetâneo) Jean-Paul Sartre. Na primeira parte de “O ópio dos intelectuais”, ele se dedica a mapear mitos políticos que ainda estão em vigor: o mito da esquerda, o mito da revolução e o mito do proletariado. Em seguida, faz reflexões sobre o sentido da História, em capítulos como “A ilusão da necessidade” e “Homens de igreja e homens de fé”, nos quais classifica o comunismo como "uma versão aviltada da mensagem cristã", por sacrificar a liberdade e a diferença no altar da ortodoxia do Estado onipotente.
O autor mostra, ainda, que o desenvolvimento da economia contrariou diversas previsões marxistas aos quais acadêmicos de esquerda ainda se aferram. Por fim, ele investiga a relação dos intelectuais com a ideologia, apontando para sua busca inconsciente por uma religião. Na conclusão, Aron pergunta se é possível vislumbrar o “fim da era ideológica” e o triunfo do poder da razão. Se ainda estivesse vivo e visitasse o Brasil, ele veria que as ideologias estão mais fortes do que nunca, e que a atração dos intelectuais por projetos autoritários continua. É uma pena que Raymond Aron seja hoje tão pouco lido. Na verdade, nem Sartre leem mais. O nível dos pensadores baixou muito, e o nível do debate político também.
Obrigado pela visita, volte sempre.
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