Lobaczewski argumenta que os sonhos de uma vida feliz e pacífica deram origem ao uso da força sobre o outro, força que insensibiliza a mente de quem a utiliza. Por isso é que sonhos de felicidade não passaram do papel ao longo da história. A visão hedonista contém as sementes da miséria e alimenta um ciclo que pode ser assim resumido: épocas boas dão origem a épocas ruins, que motivam esforço mental para retomar o bom senso, a moderação e as virtudes que servirão para resgatar a época boa.
Que acontece nas épocas boas para que delas surjam as ruins? Durante as eras “felizes” ou “boas”, as pessoas perdem progressivamente de vista a obrigação da reflexão sobre as leis complicadas da vida. Qualquer excesso nesse sentido parece tempo perdido que poderia ser usado para curtir as alegrias do momento. Uma pessoa alegre é divertida; a que prevê os nocivos resultados futuros são estraga-prazeres. Então, a percepção da verdade sobre o meio, especialmente a compreensão mais aguçada da personalidade humana, deixa de ser investigada. As implicações são o empobrecimento do conhecimento, dos valores mentais essenciais à manutenção da lei e da ordem e o consequente culto ao poder.
Nesses tempos a busca pela verdade é inconveniente porque revela fatos desagradáveis; ocupar-se de assuntos fáceis e irrelevantes é melhor. Torna-se hábito a substituição inconsciente de informações “não recomendáveis” por outras mais cômodas, beirando os limites da psicopatologia. O desgaste passa a esmagar a capacidade de consciência individual e coletiva: forma-se o ciclo de histeria. Histeria, aqui, refere-se ao medo da verdade ou medo de pensar sobre coisas impertinentes, para não arruinar o contentamento presente. O subconsciente toma a dianteira na vida. Esse primeiro estado patológico é necessariamente coletivo.
Dependendo das desigualdades sociais, os jovens de classes privilegiadas aprendem a reprimir pensamentos que sugerem que eles e seu pais estão beneficiando-se da injustiça cometida aos outros. Menosprezam, então, as tradições de pessoas que usam seu trabalho para se dar bem. Eles passam a histeria para a próxima geração, que a desenvolve com maior intensidade. Os modelos histéricos aumentam e logo chegam às classes baixas: a diminuição das faculdades críticas atinge o ápice. Qualquer um que “soe o alarme” do sensor hipersensível é hostilizado. A sociedade divide-se em grupos ainda mais polarizados. Imunidade a esse processo adquirem apenas os grupos que “ganham o pão de cada dia pelo esforço diário”, como, por exemplo, os camponeses, que veem os costumes histéricos dos mais prósperos por meio de sua realidade psicológica simples e de seu senso de humor.
Interessante é que a hiperatividade social torna-se raison d’être — a razão de ser — de muita gente cujas vidas são irregulares. Elas agarram-se a ídolos e ideologias como métodos de sobrecompensação. A mania própria de ficar ofendido por trivialidades provoca retaliações constantes, aproveitando-se da hiperirritabilidade, da falta de crítica saudável, da apatia intelectual e do autoengano contidos no ambiente. O ciclo de “tempos felizes” favorece, pois, o estreitamento da visão de mundo, que produz, finalmente, tempos de desânimo e confusão.
III. Ponerologia
De 5000 pacientes psicóticos, neuróticos e saudáveis, Lobaczewski e outros selecionaram 385 adultos que se comportaram de forma seriamente danosa em relação a outras pessoas. Delas somente 14 a 16% não apresentaram nenhum fator psicopatológico que teria influenciado sua atitude. Concluíram, então, que o fator patológico ou determina a ocorrência do feito ou é, pelo menos, componente indispensável para sua origem. Os fatores psicopatológicos sozinhos não decidem sobre a propagação do mal. As condições socioeconômicas e deficiências morais e intelectuais têm importância paralela.
Os indivíduos e as nações que estão capacitados para suportar a injustiça em nome de valores morais podem encontrar mais facilmente uma saída para tais dificuldades, sem o uso de métodos violentos. Enfatizar o papel dos fatores patológicos na gênese do mal não minimiza a parcela de contribuição das falhas sociais, morais e das deficiências intelectuais.
O mal é uma espécie de sequência contínua de condicionamentos, estímulos mútuos: um tipo de mal alimenta o outro. As características dos fatores patológicos não são intensas ou óbvias; pelo contrário, são subestimadas pela opinião pública devido a sua intensidade clinicamente detectável.
No processo da origem do mal, duas são as formas de ação dos fatores patológicos. A primeira é a partir do interior, do querer intencional intimo, do individuo que cometeu o ato. Essa é facilmente reconhecida pela sociedade. A segunda é a partir de influências emitidas por portadores de tais fatores deficientes. Bem menos perceptível é essa. Sua ação sobre os indivíduos e grupos normais, de preferência aqueles em situação desfavorável, tem peso crucial: os fatores patológicos lesionam a mente e o temperamento sãs, principalmente se as vítimas se identificam com a autoridade do anormal. Para que ela seja ativa, a característica patológica deve ser interpretada de forma moralista. Deduz-se disso que a visão natural supramencionada, responsável pela disposição moralista, é uma das causas ponerogênicas, isto é, que dão origem ao mal.
As anormalidades que compõe os fatores patológicos podem ser ou adquiridas, por contaminação, ou herdadas.
Anormalidades adquiridas
O primeiro tipo de anormalidade adquirida citada por Lobaczewski são os transtornos de caráter, as caracteropatias. As lesões no período perinatal ou na primeira infância têm resultados mais ativos do que danos ocorridos posteriormente. A deformação negativa tende a crescer conforme o tempo.
A experiência de pessoas com essas anomalias floresce no dia a dia, no cotidiano. Seu modo de pensar distorcido, sua violência emocional e seu egotismo — apreço exagerado pela própria personalidade — encontram entradas fáceis na mente das pessoas normais, diminuindo a habilidade destas de usar o senso comum.
Guilherme II (1859–1918), último imperador alemão e rei da Prússia, é exemplo de personalidade caracteropática em escala macrossocial. Ele sofreu trauma cerebral no nascimento. Durante seu reinado, suas deficiências foram escondidas. Suas características infantis o faziam deixar de lado assuntos importantes, no intuito de se desviar de problemas. Posses militares compensaram seus sentimentos de inferioridade e suas desvantagens. Politicamente, possuía rancor pessoal e descontrole emocional. Já que as pessoas comuns estavam inclinadas a se identificar com o imperador e, por conseguinte, com o sistema de governo, o material caracteropático transmitido pelo Kaiser foi ingerido por boa parte do povo alemão. Após as tensões internacionais, a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) e o Tratado de Versalhes, ficaram mais nítidos os motivos pelos quais a nação alemã escolheu Adolf Hitler como Füeher.
Anormalidade singular é a caracteropatia paranoica, causada por agressão ao diencéfalo (estrutura da porção mais inferior do cérebro). Nessas pessoas, pensamentos efêmeros dão origem a uma visão paranoica da realidade, donde ideias ingênuas e revolucionárias podem surgir. Pessoas que não possuem lesões do tecido cerebral geralmente contraem material patológico da educação recebida de pessoas com caracteropatia. Lênin é o exemplo mais conhecido dessa personalidade.
Caracteropatia frontal manifesta-se quando as áreas frontais do córtex cerebral, responsáveis pela aceleração e coordenação do pensamento, são prejudicadas sem afetar sentimentos baseados no instinto. Estes são superdesenvolvidas para compensar as demais, ou seja, as reações instintivas e afetivas de seus portadores sobressaem (diferente das pessoas normais, que levam mais tempo para analisar as hipóteses):
Tais indivíduos interpretam seu talento para intuir situações e tomar decisões simplificadas rapidamente como sinal de superioridade em relação às pessoas normais.
Esses caracteres traumatizam e encantam ativamente os outros. Stálin — bruto, carismático, tomador de decisões irrevogáveis e crente na genialidade de sua mente, que, na realidade, não passava de mediana — deveria ser incluído na lista dessa caracteropatia.
Anormalidades herdadas
Duas são as anomalias que podem ser herdadas: a esquizoidia e a psicopatia essencial.
Esquizoidia: seus portadores são hipersensíveis e desconfiados, enquanto, simultaneamente, pouco ligam para os sentimentos dos outros. Tendem a assumir posições extremas e são aflitos por rebater ofensas menores. Sua análise psicológica fraca do que acontece ao redor leva a interpretações equivocadas e pejorativas sobre as intenções das outras pessoas. São tipicamente pessimistas quanto à natureza do ser. Sua tendência a ver o mundo de forma maniqueísta transforma suas intenções, frequentemente boas, em resultados ruins. O papel ponerogênico dessa anomalia pode ter implicações macrossociais se as doutrinas inventadas pelos portadores forem colocadas no papel e disseminadas em larga escala, envenenado a mente das sociedades por longos períodos.
Eles acreditam ter encontrado uma solução simples para consertar o estado de coisas vigente. Karl Marx é o melhor exemplo de um portador de esquizoidia. (Peter Jacob Frostig, psiquiatra polonês, incluiu também Engels e outros em uma categoria que chamou “Fanáticos esquizoidais barbudos”.)
Tipos como Marx procuram causas de fenômenos óbvios. Mas suas teses não constituem a verdade inteira, porquanto desconhecem ou ignoram outros pontos que compõem a formação do fenômeno estudado.
Mesmo que os escritos de autores esquizoidais contenham deficiências, ou sempre uma declaração esquizoidal explícita, o leitor mediano os aceita, não como ponto de vista alterado por essa anomalia, mas como uma ideia que deveria considerar seriamente — esse é o primeiro erro, segundo Lobaczewski. O teor simplista de suas ideias tende a atrair intensamente indivíduos que são insuficientemente críticos, frustrados por causa de sua situação atual, culturalmente marginalizados ou caracterizados por alguma deficiência psicológica própria. Tais escritos são particularmente atraentes para uma sociedade histerizada.
Psicopatia essencial: o papel dessa anomalia no processo de geração do mal é excepcionalmente grande em qualquer escala social. Ela representa um déficit no estímulo instintivo, isto é, uma substância instintiva deficiente. Os psiquiatras, conta Lobaczewski, costumavam chamar tais indivíduos de “Daltônicos de sentimentos humanos e valores sociomorais”. Nosso mundo natural de conceito atinge os psicopatas como convenção incompreensível e inexplicável. Eles acreditam que os costumes e princípios decentes são criações externas impostas por alguém.
A estrutura social dominada pelas pessoas normais e seus conceitos são para os psicopatas um “sistema de força e opressão”. Eles chegam a essa conclusão como regra. Se, ao mesmo tempo, um pouco de injustiça realmente existir em dada sociedade, os sentimentos patológicos de falsidade e as declarações sugestivas ecoam entre os que de fato estão sendo tratados injustamente. Deste modo, as doutrinas revolucionárias podem ser propagadas entre ambos os grupos, embora tenham razões diferentes.
Três qualidades são as principais nos psicopatas: ausência de senso de culpa pelo sofrimento infligido a outrem, incapacidade de amar verdadeiramente e a inclinação para ser tagarela, desviando-se da realidade.
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