sexta-feira, 13 de junho de 2014

CONFORTO AOS QUE SÃO ALVO DE TENTAÇÃO – C. H. SPURGEON Sermão proferido por Charles H. Spurgeon no Metropolin Tabernacle, em Newington, numa quinta-feira à noite, dia 27 de setembro de 1883 com base em 1 Co 10.13




CONFORTO AOS QUE SÃO ALVO DE TENTAÇÃO – C. H. SPURGEON

Sermão proferido por Charles H. Spurgeon no Metropolin Tabernacle, em Newington, numa quinta-feira à noite, dia 27 de setembro de 1883 com base em 1 Co 10.13

“Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana. Mas Deus é fiel e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir. Pelo contrário, juntamente com a tentação providenciará uma saída, para que a possais suportar”. (1 Co 10.13).

TODOS OS FILHOS DE DEUS são sujeitos à tentação. Alguns são tentados mais que outros, mas, tirando os que, de tão jovens, não têm consciência do mal, estou convencido de que não há nenhum que entrará no céu sem ter sofrido tentação. Se há alguém que escapou, certamente foi “o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). Mas você deve se lembrar de como ele foi levado pelo Espírito para o deserto, diretamente das águas do batismo, para ser tentado pelo Diabo. O apóstolo Paulo informa também que, “à nossa semelhança, foi tentado em todas as coisas, porém sem pecado” (Hb 4.15). O Senhor Jesus pode verdadeiramente dizer a nós, que somos seus seguidores: “Se eu, seu mestre, fui tentado, você não pode pensar que escapará da tentação, porque o discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo acima de seu Senhor”.

O fato de sermos tentados deveria nos quebrantar, pois é uma triste evidência de que o pecado ainda permanece em nós. Tenho idade suficiente para lembrar-se do tempo em que esfregávamos uma pederneira contra um pedaço de aço para obter fogo pela manhã. E recordo que sempre parava de tentar produzir faísca quando descobria que não havia mecha na minha caixa de apetrechos. Acredito que o Diabo não é tolo, e, se o homem estivesse sem mecha em sua caixinha de fogo -  ou seja, sem corrupção em sua natureza -, Satanás não continuaria a tentá-lo por muito tempo. Não desperdiçaria tempo num exercício inútil desses. O homem que acredita ser perfeito nunca poderá fazer a Oração do Senhor. Terá de criar a própria oração, pois nunca desejará dizer: “... não nos deixes entrar em tentação” (Mt 6.13). No entanto, amados, como o Diabo acredita valer a pena gastar tempo em nos tentar, podemos concluir que há algo em nós que é propenso à tentação – que o pecado ainda habita em nós, apesar de a graça de Deus nos ter renovado o coração.

O fato de sermos tentados também deve nos lembrar de nossa fraqueza. Acabei de fazer referência ao modelo de oração de nosso Senhor Jesus Cristo, em que temos a frase “não nos deixes entrar em tentação” (Mt 6.13). A razão para apresentar uma petição dessas é certamente o fato de sermos tão fracos e frágeis. Pedimos que não sejamos sobrecarregados porque temos costas fracas. Suplicamos que o pecado não seja colocado diante de nós em nenhuma se suas formas atraentes, pois muitas vezes a carne toma emprestada a força do mundo e até mesmo do Diabo, e essas potências aliadas passam a ser demasiadamente grandes para nós, a menos que a onipotência de Deus seja exercida a nosso favor, sustentando-nos para nos impedir de cair.

Alguns filhos de Deus que conheço ficam muito atribulados pelo fato de serem tentados. Acreditam que poderiam suportar a provação caso ela viesse desacompanhada do pecado. Mas não vejo como, via de regra, podemos separar provação de tentação, uma vez que cada prova que vem sobre nós tem em si um tipo ou outro de tentação, tanto no que se refere à descrença ou à murmuração quanto no que diz respeito ao uso de meios errados para escapar de provação.   Somos tentados, no sentido de sermos testados, tanto pelas misericórdias recebidas quanto pelos infortúnios sofridos. Mas, para o filho de Deus, o mais grave é que, às vezes, ele é tentado a fazer ou a dizer coisas que absolutamente odeia. O filho de Deus vê diante de si, com aspecto agradável, pecados completamente abomináveis para ele, pecados cujo próprio nome nem sequer pode suportar. No entanto, Satanás vem e coloca diante dele as carnes impuras em que ele se recusa a tocar. E sei que o Diabo tenta o povo de Deus injetando na mente pensamentos blasfemo, arremessando-os em seus ouvidos como um furacão. Ah, mesmo quando você está em oração, pode acontecer que pensamentos exatamente contrários àquele momento devocional invadam sua mente. Um pequeno barulho na rua o afastará da comunhão com Deus; e, antes mesmo que tome consciência disso, seus pensamentos, como cavalos selvagens, terão galopado por montes e vales, e você mal saberá como reuni-los novamente. Ora, tentações como essas terrivelmente dolorosas para o filho de Deus. Ele não pode suportar o hálito envenenado do pecado e, quando descobre que o pecado está batendo à porta, gritando debaixo de sua janela, perturbando-o dia e noite, como tem acontecido a alguns – espero que não a muitos -, sente-se extremamente perseguido e gravemente atribulado.  Talvez ajude se eu lembrar essa pessoa que não há pecado em ser tentada. O pecado é do tentador, não do tentado. Se você resistir a tentação, terá uma atitude louvável. Mas não há nada louvável na tentação. Ela é má, e nada mais que isso. No entanto, você não tentou a si mesmo, e aquele que o tentou é que deve ser culpado de tentação. Evidentemente, você não é culpado por pensamentos que o afligem. Eles podem comprovar que o pecado ainda permanece em você, mas não há pecado em ser tentado. O pecado está em ceder à tentação, e você será abençoado se conseguir se afastar dela. Se conseguir vencê-la, se seu espírito não se render a ela, você deve até mesmo ser abençoado por meio dela. “Bem-aventurado o varão que sofre a tentação” (Tg 1.12, RC). Há uma bem-aventurança mesmo na tentação, e, apesar de no presente ela não parecer agradável, mas opressiva, produzirá depois um fruto abençoado para os que por ela são exercitados.

Além disso, há coisas piores neste mundo que sermos atacados com tentações dolorosas. É muito pior ser alvo de uma tentação agradável – ser delicadamente sugado para a boca do destruidor -, ser arrastado pela corrente suave para depois ser arremessada catarata abaixo. Isso é terrível! Mas lutar contra a tentação, isso é bom. Digo mais uma vez que existem coisas muito piores que ser provado com uma tentação que desperta toda indignação de seu próprio espírito. Um antigo teólogo costumava dizer que tinha mais medo de um demônio do sono que de um rugidor. E há grande verdade nessa observação; pois, quando você é deixado completamente em paz e nenhuma tentação o assalta, você tende a ficar carnalmente seguro e a dizer, com orgulho: “Eu nunca serei abalado”. Acho que nenhum homem está em perigo tão iminente como aquele que pensa que nenhum perigo lhe possa suceder. Assim, o que nos mantém na torre de vigia, mesmo sendo algo mau em si mesmo, é suplantado pelo bem. A parte mais perigosa da estrada para o céu não é o vale da sombra da morte. Não achamos que Cristão, o protagonista do peregrino, dormiria com todos aqueles duendes, nem no momento em que achou difícil sentir o caminho e se manter nele, mas, sim, quando ele e Esperançoso chegaram ao Solo Enfeitiçado, “onde o ar naturalmente deixa os homens sonolentos”. Era nesse ponto que os peregrinos entravam em grande perigo, até que Cristão lembrou a seus companheiros de viagem que haviam sido avisados pelos pastores para não dormir quando chegassem a essa parte enganosa do caminho. Creio, portanto, que ser assaltado com tentações dolorosas – as que incitam o espírito quase à loucura -, por pior que seja a prova ou por mais difícil que seja de suportá-la, talvez não seja o pior que nos possa acontecer espiritualmente. De todos os males que o cercam, sempre escolha o menor. E, como essas não são as tentações mais prejudiciais, não entre em total desespero caso lhe caiba ser tentado como foram muitos antes de você.

Isso é o suficiente como introdução a uma pequena conversa sobre tentação, com o propósito de confortar qualquer pessoa extremamente tentada por Satanás. Sei que estou falando a muitos nessa condição e por isso gostaria de repetir as palavras da nossa passagem: “Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana. Mas Deus é fiel e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir. Pelo contrário, juntamente com a tentação providenciará uma saída, para que possais suportar” (1 Co 10.13). Querido amigo sob tentação, lembre-se de que você não deve se sentar em desespero e dizer: “Estou sendo profundamente tentado agora e temo ser tentado de forma cada vez pior, até que meus pés deslizem, e eu caia, e pereça completamente”. Não fale como Davi quando foi caçado como uma perdiz nos montes – “Algum dia ainda morrerei pela mão de Saul” (1 Sm 27.1) -, mas creia que o Senhor, que lhe permite ser tentado, lhe dará livramento em seu próprio e bom tempo.  

I. Aqui está seu primeiro conforto:

HOUVE UM LIMITE EM TODAS AS SUAS PROVAÇÕES ANTERIORES.
“Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana...”.

Por vezes, a tentação tem se apoderado de você, como um estrangular pega um homem pela garganta, de repente. Tem se apoderado de você – talvez esse seja o verbo mais precioso que eu possa usar. Ela tem se apoderado de você de surpresa, amarrando-o e imobilizando-o com rapidez. E, ainda assim, as tentações que você suportou até agora não vão além das que acometem a todos os homens.

Em primeiro lugar, são como aquelas enfrentadas por seus companheiros cristãos. Sei que você é tentado a pensar que é um viajante solitário em uma estrada que ninguém jamais atravessou; mas, se examinar cuidadosamente a trilha, descobrirá as pegadas de alguns dos melhores servos de Deus que passaram ao longo desse caminho enfadonho. É uma vida muito escura, você diz, que pode realmente ser chamada “Viela Mortal”. Ah! Mas você vai descobrir que os apóstolos percorreram esse caminho, os que confessaram sua fé passaram por esse caminho, mártires andaram por esse caminho e o melhor dos santos de Deus foi tentado assim como você está sendo agora. “Ah!”, dirá alguém, “mas estou sendo tentando =, como você disse há pouco, como pensamentos blasfemos e horríveis”. Assim foi com o mestre John Bunyan. Leia Grace abounding to the chief of sinners [Graça abundante ao principal dos pecadores] e veja as coisas pelas quais ele teve de passar. Muitos outros tiveram experiência similar, e entre eles estão alguns de nós que estamos vivos para lhe dizer que sabemos tudo sobre essa forma especial de tentação, embora o Senhor tenha nos livrado dela. “Ah!”, diria outra alma tentada, “mas tenho sido tentado até mesmo no que se refere a me autodestruir”. Essa também não tem sido uma tentação incomum até mesmo aos santos mais queridos de Deus, e, embora ele os tenha preservado e mantido vivos, ainda assim muitas vezes eles se sentiram como Jó, quando disse:“Prefiro ser estrangulado, e sofrer a morte, a este meu sofrimento” (7.15). “Ah!”, exclama outro, “sou tentado ao pior dos pecados, ao mais vis pecados, e não deveria me atrever nem sequer a mencionar as abominações que Satanás me tenta a cometer”. Você não precisa me dizer, e confio que você será preservado contra elas pelo poder onipotente do Espírito Santo de Deus. Mas posso garantir que mesmo os santos no céu, se lhe pudessem falar neste momento, diriam que alguns deles foram grandemente afligidos – mesmo alguns dos mais valorosos dentre eles, que andaram mais próximos a Deus, foram duramente atormentados por tentações que não teriam mencionado a seus companheiros, tamanha perturbação sofrida por eles. Talvez ainda outro amigo diga: “Na verdade, tenho sido tentado à autojustiça, que é a maior tentação que pode acontecer a um homem cuja confiança está totalmente em Cristo”. Bem, foi o que aconteceu ao mestre John Knox, o grande pregador da justificação pela fé. Quando estava morrendo, foi tentando a gloriar-se em sua própria coragem por Cristo, mas lutou contra esse mau pensamento e o superou, assim como você pode superá-lo.

Você acha que, quando um homem é muito paciente, ele não é tentado à impaciência. Irmão, o Espírito de Deus diz, pela pena do apóstolo Tiago: “Ouvires sobre a paciência de Jó” (5.11). Sugiro a você esta pergunta: “Você não ouviu falar da impaciência de Jó?”. Você já ouviu falar, sem dúvida, da grande fé de Pedro. Nunca ouviu falar da incredulidade de Pedro? Os membros do povo de Deus costumam falar precisamente naquilo em que são mais famosos, e, no que diz respeito às biografias bíblicas, o homem que tem maior notoriedade por toda a obra do Espírito de Deus em sua vida geralmente é o que falhou exatamente onde pensava ser mais forte. “Já li sobre a vida de homens bons”, você diz, “eu não sou como eles”. Devo dizer por quê? Porque a vida deles não foi inteiramente escrita; mas, quando o Espírito Santo escreve sobre a vida de um homem, ele diz tudo. Quando biógrafos escrevem sobre a vida de homens bons, é claro que não expressam suas lutas internas e medos, amenos que seja o caso de um homem como Martinho Lutero, cuja vida se caracterizou por uma continua luta interior e que, embora parecesse corajoso por fora, não raro tremia por dentro. Quando escreverem sobre minha vida, vão contar que tive uma fé forte, mas não vão contar tudo sobre o outro lado dela. E então você vai talvez ficar pensando: “Ah, não consigo chegar à altura que Spurgeon atingiu!”. Isso é porque lhe falta o conhecimento do interior do ser humano, pois, se você conhecesse o interior e o exterior do homem que caminha mais próximo a Deus – se for sincero e honesto, há de contar -, saberia que as tentações pelas quais você tem de passar são as mesmas tentações pelas quais ele teve de passar. E ele sabe que as terá muitas outras vezes e sabe que, como diz o apóstolo: “Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana...”.

Então repito: nenhuma tentação o assaltou que seja diferente daquelas com que os homens em geral são testados em determinado processo de provação. Esse momento não é o da vitória final, irmão. É a hora da batalha, e as armas usadas contra nós são as mesmas empregadas contra os exércitos dos fieis em todas as épocas. Você e eu nunca fomos tentados como os anjos que mantiveram seu primeiro estado e venceram a tentação. Não posso dizer como príncipe das trevas foi tentado ou como tentou sues companheiros, servos da lealdade ao grande Rei; mas de uma coisa tenho certeza: você nunca foi assaltado com a tentação própria de um anjo. Sua tentação só foi àquela adequada a um homem e aquele que outros homens como você superaram. Outros lutaram bravamente contra tentações semelhantes à sua, e você deve fazer o mesmo. Sim, você deve fazer o mesmo pelo poder do Espírito de Deus que repousa sobre você. Costuma-se dizer, nos assuntos da vida comum, que o que o homem fez o homem pode fazer, e isso vale também em relação à vida espiritual. As tentações vencidas por outros homens podem ser vencidas por você, se você procurar a mesma fonte de força e se a buscar no mesmo nome em que eles buscaram. A força para vencer a tentação vem de Deus somente, e o nome da vitória é o nome de Jesus Cristo; portanto, avance nessa força e nesse nome contra todas as suas tentações. Mãos à obra, pois já foram derrotados muito tempo atrás, e você deve derrota-las novamente. Não estremeça por seguir de luta em luta e de vitória em vitória, como aconteceu a outros que vieram antes de você e agora entraram em seu descanso.

Outros já estiveram de luto aqui na terra
e molharam de lágrimas seus leitos;
lutaram arduamente, como nós, agora,
com pecados, e dúvidas, e medos.

Se você pudesse perguntar a eles de onde veio à vitória, eles a atribuiriam aos recursos que estão disponíveis a você quanto estiveram a eles – precisamente radiosa obra e Deus, ao Espírito Santo e ao sangue e à justiça do Senhor Jesus Cristo. Nenhuma tentação aconteceu a você diferente daquelas com as quais os seres humanos podem lidar e conseguem superar com a ajuda de Deus.

Repito: até agora nenhuma tentação lhe sucedeu além das que são comuns ao homem, e a todas Cristo enfrentou. O grande de cabeça da humanidade, o representante dos homens, sofreu a mesma tentação que agora está afligindo você. “Em toda a angústia deles” – ou seja, a aflição de seu povo no deserto, que é exatamente igual à sua, se você está no deserto -, “em toda a angústia deles, ele também ficou angustiado, e o anjo da sua presença os salvou” (Is 63.9). Ele estava rodeado por enfermidades, “homem de dores e experimentado nos sofrimentos” (Is 63.9). Repetindo o texto que já citei e que é tão adequado aqui, ele, “à nossa semelhança, foi tentado em todas as coisas” (Hb 4.15). “Por essa razão era necessário que em tudo se tornasse semelhante a seus irmãos, para que viesse a ser um sumo sacerdote misericordioso e fiel nas coisas que dizem respeito a Deus, a fim de fazer propiciação pelos pecados do povo. Porque, naquilo que ele mesmo sofreu, ao ser tentado, pode socorrer os que estão sendo tentados”. Ele sabe tudo sobre o problema de cada um de nós e sabe como lidar com ele e como sustentar-nos em meio à luta.
Portanto, queridos amigos, nenhuma tentação lhes sucedeu exceto a que é comum aos homens, no sentido de ter sido enfrentada por homens como vocês, tendo sido superada por homens como vocês e tendo sido enfrentada e vencida por seu Representante bendito, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Venha então, amado, e deixe que dissipe todo o mistério em relação a suas tentações. O mistério dá margem à espada da provação. Talvez a mão que escreveu na parede não teria amedrontado Belsazaer, se ele pudesse ter visto o corpo ao qual pertencia aquela mão. Afinal, não há mistério sobre seu problema. Embora você o tenha qualificado como sem dúvida o maior que já sucedeu a qualquer ser humano antes, isso não é a verdade; você não é um imperador no reino da desventura. Não pode verdadeiramente dizer: “Eu sou o homem que viu a aflição mais que todos os outros”, pois seu Senhor suportou muito mais que você já suportou, e muitos de seus santos, que passaram da fogueira à coroa, devem ter sofrido muito mais do que você tem sido chamado a sofrer até o momento.

II. Voltemo-nos ao segundo conforto revelado em nossa passagem:

A FIDELIDADE DE DEUS.
“Não veio sobre vós nenhuma tentação que não fosse humana. Mas Deus é fiel...”.

Ah, que palavra abençoada esta: Deus é fiel! Portanto, ele é fiel à sua promessa. Mesmo Balaão disse: “Deus é homem para que minta, nem filho do homem, para que se arrependa. Por acaso, tendo ele dito, não o fará? Ou, havendo falado, não o cumprirá?” (Nm 23.19). Uma das promessas de Deus é:“Nunca te deixarei, jamais te desampararei” (Hb 13.5). “Deus é fiel”; então vai cumprir essa promessa. Aqui está uma das promessas de Cristo, e Cristo é Deus: “... minhas ovelhas. Estas ouvem a minha voz, eu as conheço, e elas me seguem. Dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão; e ninguém as arrancará da minha mão” (Jo 10. 26-28). “Deus é fiel”, então essa promessa será cumprida. Você certamente já ouviu esta promessa muitas vezes: “... a tua força seja como os teus dias” (Dt 32.25). Você acredita nisso ou vai fazer de Deus um mentiroso? Se acredita, então varra de sua mente todos os pressentimentos sombrios como esta pequena frase abençoada: “Deus é fiel”.

Observe, em seguida, que não apenas Deus é fiel, mas também é o Senhor da situação, para que possa cumprir sua promessa. Note que o texto diz: “e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir” (1 Co 10.13). Assim, você não poderia ter sido tentado se Deus não tivesse permitido que isso acontecesse. Deus é muito mais poderoso que Satanás. O diabo não pôde tocar Jó, exceto por permissão divina, nem ele pode tentar e provar você a menos que Deus permita. Ele precisa de autorização do Rei dos reis antes que possa tentar um único santo. Por quê? Satanás não tem permissão para manter a chave da própria casa, pois as chaves da morte e do inferno estão presas ao cinto de Cristo, e, sem a permissão de Deus, o cão do inferno não pode sequer abrir a boca para latir a um filho de Deus, muito menos para vir e preocupar qualquer uma das ovelhas a quem o Senhor, por sua graça, chamou a seu aprisco. Por isso, amado, você tem grande razão de consolo pelo fato de a tentação que o prova ainda estar sob o controle do Criador fiel que “não deixará que sejais tentados além do que podereis resistir”.

Essa é uma segunda razão para o conforto; saboreie-a debaixo da língua como um pedaço de doce.  

III. O terceiro conforto está na:

RESTRIÇÃO QUE DEUS IMPÕE À TENTAÇÃO.
“... não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir”.

A maré da provação deverá subir ao mais alto nível da água, e então Deus dirá: “Até aqui virás, mas não avançarás; e aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas” (Jó 38.11).

Ele “não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir”. Isso pode aplicar-se, às vezes, ao período em que a tentação sobrevém. Tenho observado cuidadosamente como Deus controla o tempo da prova de seu povo. Se tal e tal provação tivesse vindo a um de seus filhos quando jovem, acredito que ele não teria suportado; ou, se a pessoa tivesse perdido algum amigo querido enquanto ela mesma estivesse doente, o problema em dobro a teria esmagado. Mas Deus envia nossas provações na hora certa e, se coloca um peso extra de uma forma, tirar algum peso de outra forma. “Tu [...] os expulsaste com o vento forte, na época do vento oriental” (Is 27.). Trata-se de algo muito simples, mas verdadeiro: se o vento sopra do Norte, não sopra ao mesmo tempo do Sul; e, se uma série de problemas vem a um homem cristão, outra série de problemas geralmente se afasta dele. John Bradford, o famoso mártir, sofria muitas vezes de reumatismo e depressão de espírito, algo com que posso muito me identificar. Mas, quando foi aprisionado em um calabouço sujo e úmido e soube que nunca sairia dali a não ser para morrer, escreveu: “É singular o fato de que, desde que estou nesta prisão, já tendo outras provas para suportar, meu reumatismo e minha depressão de espírito não tenham nem sequer tocado em mim”. Isso nem se quer é uma grande bênção? E você vai descobrir que normalmente é assim; você não será tentado além do que é capaz de suportar, porque Deus vai permitir que a prova venha em um momento em que você seja mais capaz de suportá-la.

Há também grande bondade da parte de Deu quanto à duração da provação. Se algumas das nossas provas durassem muito mais tempo, se tornariam muito pesados para suportar. Com respeito à destruição de Jerusalém, nosso Senhor disse: “E se aqueles dias não fossem abreviados, ninguém seria salvo; mas por causa dos escolhidos eles serão abreviados” (Mt 24.22). Não tenho dúvida de que muitas vezes Deus opera de imediato nas provações de seus filhos, porque, se continuassem por mais tempo, elas não teriam um efeito bom, mas ruim sobre nós. Se uma criança precisa ser corrigida, não deixe a punição durar como se ela fosse um criminoso que deve ser condenado por longo período; dê-lhe o castigo merecido e encerre a questão. Assim acontece muitas vezes na disciplina da casa de Deus. Entretanto, existem provas que são prolongadas ano após ano, porque a provação é um ingrediente eficiente e, se fosse encurtada, talvez não nos abençoasse. Em todos os casos, há uma sabedoria infinita que torna nossos problemas tão longos quanto necessário, e não mais que isso.

O mesmo se aplica ao número de provações. Bendito seja Deus,

Se ele ordena o número dez,
Nunca pode ser onze.

Se ele planeja que seus servos passem pelo fogo e não pela água, o próprio Satanás não pode fazê-los passar pela água. Deus conta as gotas do tônico amargo que dá a seus santos enfermos, e eles não poderão receber nenhuma gota a mais do que ele determinou. Então, queridos filhos de Deus que hoje experimentam a tentação, as tentações que enfrentarão, bem como o número delas, não serão maiores do que podem suportar.

O mesmo também acontece quanto à força em que a tentação sobrevém. Você nunca viu uma grande árvore sob impacto de uma tremenda tempestade? Ela balança para lá e para cá e parece pouco capas de recuperar-se dos golpes poderosos da tempestade; no entanto, as raízes a sustentam. De repente, vem outro tornado, e parece que a árvore será lançada para fora da terra, mas a tensão cessa justamente a tempo de o velho carvalho balançar com fúria de volta a seu lugar. Entretanto, se quase um quilo de força a mais fosse exercido naquela tremenda explosão, a árvore cairia prostrada sobre a grama. Assim Deus, no caso de seu povo, em todas as circunstâncias, só para no ponto certo. Você pode ser tentado até não ter nem um pingo a mais de forças. Às vezes, o Senhor prova seu povo até parecer que mais um sopro dele certamente faria com que todos naufragassem. É nesse momento então que ele estende sob eles seus braços eternos, e nenhuma outra prova lhes é infligida. Isso é uma bênção para todos vocês que têm problemas de qualquer tipo, e vocês, que pertencem ao povo de Deus, podem ver texto e descansar completamente nele: “Deus é fiel e não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir”. Quando aos que não são seu povo, sinto muito por vocês. Estou expondo essas verdades preciosas, mas elas não são para vocês. A Palavra de Deus declara: “O ímpio tem muitas aflições” (Sl 32.10). Se você não tem um Deus em quem buscar refúgio, o que fará quando as tempestades açoitarem seu barco? Para quem ou para onde você pode fugir? O cristão pode cantar:

Ó bondoso Salvador,
Sê tu meu amparador;
Negras ondas de aflição,
Fortes ventos perto estão.
Deste espanto e do terror
Vem salvar-me, ó bom Senhor;
e no porto faze entrar
minha barca sem quebrar.
(Charles Wesley, Salmos e hinos, 169)

Mas, pobre alma querida que não ama a Cristo, onde você pode encontrar conforto nos momentos de tristeza e provação? Você, que perdeu a esposa e os filhos, você, que é oprimido pela pobreza, você, que está atormentado pela doença, você, que ainda não tem o Salvador, o que pode fazer? Pobres sem teto em uma tempestade de neve, o que podem fazer sem ter nem sequer um arbusto para abriga-los? Esse é exatamente o seu estado, e lamento por vocês, e imploro que não permaneçam nessa condição tão deplorável nem por um momento mais.

Venham, almas culpadas, e voem
como pombas às chagas de Jesus;
este é o dia das boas-vindas do evangelho,
em que à graça livre ele conduz.

IV. O próximo conforto que extraímos da nossa passagem relaciona-se com:

A PROVISÃO QUE O SENHOR DÁ ÀQUELE QUE É TENTADO.
“Mas Deus é fiel e [...] justamente com a tentação providenciará uma saída...”.

No original grego, o versículo diz: “juntamente com a tentação providenciará uma saída”, pois há uma maneira correta de escapar da tentação. Há vinte maneiras improprias, e ai do homem que faça uso de qualquer uma delas. Mas há apenas uma maneira adequada de escapar à prova, e esse é o caminho reto, o caminho que Deus providenciou para seu povo trilhar. Deus abriu em meio a todas as provas o caminho por onde seus servos poderiam sair corretamente. Quando os corajosos jovens judeus foram provados por Nabucodonosor, havia um caminho pelo qual poderiam ser preservados da fornalha de fogo ardente. Tinham apenas de dobrar os joelhos diante da grande imagem quando a flauta, a harpa, a cítara e o saltério soassem. Aquela forma de escape nunca teria funcionado, pois não era o caminho certo. O caminho para eles eram serem jogados dentro da fornalha e lá terem a presença do Filho de Deus passeando com eles no meio do fogo, o qual não podia atingir. Da mesma forma, sempre que você for exposto a qualquer provação, tenha em mente não tentar da maneira errada.

Observe especialmente que o caminho certo é sempre o que Deus planeja; portanto, quem estiver exposto agora à tentação ou à provação não crie sua própria forma de escape. Deus, e somente Deus, tem de fazer isso por você. Por isso, não tente escapar por si mesmo. Conheci um homem que estava com problemas de falta de dinheiro, e a solução que buscou foi usar o dinheiro de alguém de quem ele era o depositário fiel. Esse não era o caminho de escape de Deus para ele; por isso, só mergulhou em provação pior que a de antes. Conheço um homem de negócios que estava em grande dificuldade. Tudo estava dando errado para ele; então ele especulou, apostou e arruinou seu negócio e seu caráter pessoal. Aquele não era o caminho de Deus para ele escapar de seus problemas. Às vezes, a melhor coisa que um homem com problemas pode fazer é não fazer simplesmente nada, mas deixar tudo nas mãos de Deus. “Acalmai-vos e vede o livramento que o Senhor vos trará” (Êx 14.13). Quando os israelitas saíram do Egito, Deus os guiou de uma forma que poderia muito bem ter provocado murmurações. Não havia nada diante deles a não ser o mar, e trás deles vinha o faraó com toda a sua fúria, gritando:“perseguirei, alcançarei, repartirei os despojos; o meu desejo se fartará deles; arrancarei a minha espada, a minha mão os destruirá” (Êx 15.9). Qual seria agora o caminho de Deus para o escape deles? Exatamente através do mar vermelho. E do outro lado eles cantaram, quando os egípcios morreram afogados: “Cantarei ao Senhor, pois trinfou gloriosamente; lançou no mar o cavalo e o seu cavaleiro” (Êx. 15.1). Teria sido lamentável se tivessem tentado escapar usando métodos próprios ou se tivessem tentado voltar para lutar contra o faraó. Tais alternativas não teriam tido êxito, mas o Senhor preparara para seu povo o melhor caminho de escape que pode haver.

Observe também que o Senhor provê o caminho de escape “juntamente com a tentação”. Ele permitiu a prova e, ao mesmo tempo, preparou o caminho para escapar dela. Deus planejou tudo, meu irmão. Não só que você, o campeão dele, sairá e lutará bravamente na força do Senhor, mas também que ele será seu escudo e sua grande recompensa. Ele o guiará ao fogo perigoso; no entanto, providenciará o escape da mesma forma que proveu os meios para você entrar nessa situação. Por isso, vai leva-lo em segurança. Não foi o salmista quem cantou: “àquele que conduziu o seu povo pelo deserto, pois seu amor dura para sempre” (Sl 136.16)? Não só os guiou para o deserto, mas os guiou através dele. Bendito seja seu santo nome! E, se o Senhor o levou para o deserto da angústia e da aflição, preparou o caminho para a saída ao mesmo tempo em que criou a aflição. “Confia no Senhor e faze o bem; assim habitarás na terra e te alimentarás em segurança. Agrada-te também do Senhor, ele satisfará o desejo do teu coração. Entrega teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele tudo fará. Fará tua justiça sobressair como a luz, e teu direito, como o meio-dia. Descansa no Senhor e espera nele; não te aborreças por causa daquele que prospera em seu caminho, por causa do que trama o mal” (Sl 37. 3-7). Busque “primeiro o seu reino e a sua justiça” (Mt 6.33), e tudo o mais precisar lhe será dado. Mantenha-se afastado do pecado da tentação e não precisará temer o sofrimento da tentação. Se as provas não o levam a seus próprios expedientes de escape, mas o levam aos joelhos, elas serão, afinal, bênção para você.

Esse é o quarto conforto, que Deus preparou o caminho para seu povo escapar das provações. “Bem”, dirá alguém, “então vou escapar dessa provação”.Espere um momento, meu amigo, e ouça as palavras de encerramento da passagem bíblica com as quais vou concluir meu discurso.

V. Este é o último conforto:

O SUSTENTO QUE DEUS DÁ NA PROVA.
“para que a possais suporta”.

O caminho traçado por Deus para o livramento da provação não deve ser evitado pelo povo de Deus, de modo que ela não tenha de trilhá-lo. Antes, constitui um escape que faz o povo de Deus atravessar o problema até a saída na outra extremidade. Não foi uma fuga do mar vermelho, mas uma fuga através do mar vermelho que evitou uma provação ainda maior. Se você, amado, está exposto à prova ou à tentação, ele o capacitará a suportá-la. Todavia, ore antes de sair deste prédio, para que essa última palavra, sobre a qual não tenho tempo de me alongar, possa ser cumprida em sua experiência: “para que possais suportar”.

Suponhamos que você tenha de ser pobre. Bem, se Deus assim designou, você será pobre; por isso, ore para que seja capaz de suportar tal situação. Como diligência honesta e com integridade inflexível, lute para chegar a uma posição melhor, mas, se todos seus esforços falharem, então diga ao Senhor:“todavia, não seja feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22.42). Talvez seu querido filho esteja morrendo ou sua esposa esteja enferma; você se apavora com o pensamento de perdê-los e estaria disposto a dar a vida por eles, se pudesse. Bem, faça todo o possível para a recuperação deles, pois a vida é preciosa, e todo o dinheiro gasto para salvá-los será bem gasto; mas, se a saúde não lhes for concedida, ore para que possa ser capaz de suportar até mesmo essa prova tão pesada. É maravilhoso como Deus verdadeiramente ajuda seu povo a passar por problemas que seriam para eles absolutamente esmagadores. Tenho visto mulheres pobres e frágeis que pensei fossem morrer em seu luto, mas se tornaram corajosas e fortes, e vi homens antes covardes diante dos problemas bendizerem ao Senhor pela provação quando o golpe realmente lhes sobreveio. E você pode fazer o mesmo.

Suponhamos que você tenha de ficar doente. Bem, essa uma dura provação, e eu, pessoalmente, faria qualquer coisa que pudesse para escapar da aflição que muitas vezes me atinge; mas, se não tem de se assim, então preciso mudar minha lista de oração e pedir que eu seja capaz de suportar o sofrimento. Recebi uma carta de um homem de Deus esta manhã que me sustentou muito. Ele diz: “Meu querido irmão, senti muito por ouvir que você estava de novo com dores e com o espírito deprimido, entre outras coisas; mas, quando me lembrei de como Deus o tem abençoado de muitas formas, pensei comigo mesmo: “Talvez o sr. Spurgeon não continuasse a pregar as doutrinas da graça e não fosse tão capaz de confortar os fracos filhos de Deus, se não sofresse essas dores agudas de vez em quando”. Por isso quero parabeniza-lo por tais provações”. Aceitei as congratulações. Você não vai fazer o mesmo, meu irmão ou irmã em aflição? Ore: “Meu Pai, se possível, afasta de mim este cálice” (Mt 26.39), mas se ele não afastar, então aqui está aquela outra forma de conforto: “para que possais suportar”.

E lembrem-se, queridos amigos, embora eu os incentive a fazer dessa passagem uma oração, ela é, de fato, uma promessa, e não há oração melhor que uma promessa que se transforma, por assim dizer, em oração. Deus mesmo disse, por seu inspirado apóstolo, que ele “não deixará que sejais tentados além do que podeis resistir. Pelo contrário, juntamente com a tentação providenciará uma saída, para que possais suportar”. Hasteiem as bandeiras, então! Em frente, seja o que for que obstrua o caminho! Catemos, com o bom e velho John Ryland:

Em meio a inundações e chamas, se Jesus guiar,
eu o seguirei por onde quer que for.
“Não me impeça” deve ser meu exclamar,
Embora a terra e o inferno venham a se opor.

A vida imortal dentro de nós nunca pode ser destruída; a natureza divina que Deus Espírito Santo implantou nunca será pisoteada. “Não te alegres a meu respeito, inimiga minha; quando eu cair, me levantarei; quando eu estiver em trevas, o Senhor será a minha luz” (Mq 7.8).

Mas, ah, sinto muito, muito, muito, muito, do fundo da minha alma, por você que não conhece o Senhor, pois esse conforto não é para você! Busque-o, rogo-lhe, busque-o como seu Salvador. Olhe para ele e confie nele; então, todas as bênçãos da aliança eterna serão suas, pois o Pai concedeu a ele ser o Líder e o Comandante sobre seu povo, e os que olham para ele e o seguem viverão para sempre e sempre. Deus o abençoe, por amor de Cristo! Amém.

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Trecho extraído do livro “Desintoxicação Sexual”; CHALLIES, Tim ; Ed. Vida Nova. P. 90-112



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Educação e Simbolismo em G.K. Chesterton





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segunda-feira, 9 de junho de 2014

Psicanálise e educação infantil: diálogos a partir de uma pesquisa.



Leda Mariza Fischer Bernardino

Rosa Maria Marini Mariotto

 Resumo
O artigo parte de uma pesquisa realizada pelas autoras com bebês e suas educadoras em centros de educação infantil, através da aplicação do protocolo IRDI-18, cujos resultados apontaram uma insuficiência do cumprimento da função materna nestes ambientes; embora a função paterna seja cumprida a contento. Discutem-se as possíveis conseqüências disto para a construção do psiquismo dos bebês e o papel da psicanálise e do discurso psicanalítico na educação infantil. Debate-se a questão da pesquisa em psicanálise e a idéia de prevenção, contraposta ao só-depois próprio do funcionamento inconsciente. Como conclusão, propõe-se a intervenção do psicanalista como promotor da circulação da palavra em três níveis: com os bebês, com as educadoras e com os pais.
Palavras-chave: bebês, educadoras, psicanálise na Educação Infantil, prevenção, pesquisa em psicanálise.

Abstract
This paper results from a research realized by the authors involving babies and their educators at children education centers through the application of the protocol IRDI-18. The results indicated an insufficiency of the accomplishment of the maternal function at these places, even though the paternal function was fulfilled on a satisfactory manner. It is discussed the possible consequences for the construction of these babies’ psychism and the function of the psychoanalysis and the psychoanalytical discourse in children education. It is also discussed the issue of the research in psychoanalysis and the idea of prevention, opposed to the “deferred” so characteristic of the unconscious functioning. As a conclusion, it is proposed the psychoanalyst’s intervention as a promoter of the circulation of words in three levels: with babies, educators and parents.
Key-words: babies, educators, psychoanalysis in Children Education, prevention, research in psychoanalysis.


A introdução do discurso psicanalítico no ambiente da educação infantil começou a ganhar consistência a partir de trabalhos que demonstram os frutos possíveis desta interlocução; (Carvalho, 2000; Aragão, 2001; Baptista 2002; Flach 2006; Bernardino e outros, 2008; Atem, 2009; e Mariotto, 2009), para citar apenas propostas de cunho investigativo acadêmico.
A relevância destes estudos neste campo social se destaca pelo fato de que a escola de Educação Infantil é um lugar de inscrição e inserção da criança no espaço público, ultrapassando as funções assistencial e pedagógica que lhe são concernentes, pois dá continuidade ao trabalho de subjetivação que já se supõe ter sido iniciado na intimidade da família de origem.
Neste ambiente, os berçários recebem os bebês de poucos meses até cerca de dois anos, tempo que a psicanálise destaca como fundamental para a construção do psiquismo, desde a proposta fundamental de Winnicott (1978), ao dizer que é no primeiro ano de vida que se estabelecem as bases para a saúde psíquica. Este mesmo autor fez a afirmação de que só se pode conceber o bebê humano dentro de um ambiente, a partir dos laços que ele estabelece com os adultos significativos para ele. Para Bénamy e Golse (2007) o bebê “não pode ser pensado fora de relação, isto é, fora de sua relação com o adulto no cerne de um funcionamento diático e triádico” (p. 76), referindo-se aos cuidados maternos que permitem ao bebê não somente “enfrentar sua imaturidade biológica e funcional”, mas principalmente “assumir a instauração de seu aparelho psíquico” (p. 76), e a relação com o mundo a partir desta instauração. Ao passar grande parte do dia no ambiente de creche, é essencial que o bebê encontre aí uma continuidade destes cuidados desta mesma ordem, ou seja: tanto cuidados referentes ao seu bem-estar físico, quanto cuidados referentes à organização de seu mundo interno. Assim, o que se requer de um educador neste ambiente de berçário é que ele possa dar continuidade aos cuidados maternos do corpinho do bebê, como também, que ele seja capaz de estabelecer um laço significativo com este bebê, para dar sequência às construções mentais do mundo que ele precisa continuar realizando neste ambiente extrafamiliar. Neste aspecto, o estatuto do corpo do bebê para o cuidador/educador adquire especial realce, pois embora seja o ponto de encontro entre eles, não pode ser tomado apenas como objeto de cuidados, mas como sede de experiências prazerosas e desprazerosas que – ao serem compartilhadas – permitirão ao bebê dar sentido ao mundo que o cerca. Ainda segundo Benamy e Golse (2007) “pode-se dizer hoje que o corpo do bebê representa a via real de acesso aos processos de simbolização, de subjetivação, de semantização e de semiotização na espécie humana” (p.9).
Estas experiências e reflexões teóricas apontam que o trabalho do psicanalista em creches e pré-escolas orienta-se a partir de três eixos de intervenção: em relação aos educadores, às crianças e aos seus pais. Propostas de trabalho que contemplem cada um dos elementos em jogo, na montagem das redes discursivas características deste campo, tornam-se fundamentais.
Foi seguindo esta diretriz que um projeto piloto, de aplicação do Protocolo Clínico de Risco para o Desenvolvimento Infantil IRDI-18, foi realizado em 2007 em um Centro Municipal de Educação Infantil. Este protocolo é decorrente da validação de dezoito indicadores do Protocolo IRDI, na Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil, realizada no período de 1999 a 2008, e cujos resultados foram relatados em Kupfer et alli, 2010. Os resultados obtidos no projeto piloto de uso do IRDI-18 em ambiente de educação infantil indicaram a viabilidade e a relevância desta iniciativa (Bernardino, Vaz, Quadros & Vaz, 2008), já verificada igualmente por Mariotto (2007; 2009), o que incentivou a realização de um estudo de maior porte.

Uma experiência de pesquisa
Assim, no período de 2009 a 2010, foi realizada uma pesquisa com uma amostra representativa de bebês dos Centros Municipais de Educação Infantil do Município de Curitiba, com fins de detecção de riscos precoces na clientela dos berçários ali existentes, para implantar no ambiente de Educação Infantil ações efetivas de prevenção em saúde mental na primeira infância, bem como para o aprimoramento dos profissionais que ali trabalham. Esta pesquisa se deu com a aplicação do Protocolo IRDI-18, já testado com sucesso no projeto piloto neste ambiente de educação infantil.
Nesta pesquisa, ao todo foram avaliadas 35 crianças na faixa etária de 4 meses a 18 meses incompletos, sendo 20 de sexo masculino e 15 do sexo feminino, no período de março a dezembro de 2009, distribuídas em 09 CMEIS selecionados. Todas as crianças foram avaliadas no mínimo duas vezes, por estagiárias de psicologia previamente capacitadas para a aplicação do instrumento, em faixas etárias diferentes (atual e pregressa). Dos 35 protocolos aplicados, contendo cada um 18 indicadores, chegou-se a um total de 630 indicadores avaliados. Os dados obtidos na aplicação do protocolo IRDI foram analisados e discutidos a partir de três categorias: (1) Análise por indicadores ausentes, (2) Análise por CMEI e (3) Análise por criança.
De modo geral, destacamos que 64 indicadores obtiveram resposta Ausente (A), ou seja, 10,1% do total da amostra. Levando em consideração que os indicadores são sinais de que os elementos necessários para o processo de constituição psíquica estão em curso, este percentual de respostas ausentes aponta um risco relativo na população pesquisada. O conjunto dos resultados analisados demonstra que nas creches pesquisadas, as educadoras cumprem a contento seu papel educativo no que se refere às regras sociais, mas seu papel de cuidados que refletem uma educação mais ampla – educação para o surgimento de um sujeito, apresenta-se pouco desenvolvido.
Das 35 crianças avaliadas, 11 foram consideradas CASOou seja: apresentaram dois ou mais indicadores ausentes na relação com pelo menos uma das educadoras e não os apresentaram presentes com nenhuma outra educadora, sendo 31% da amostra. Observa-se que se trata de um percentual alto, que excede a faixa de 12 a 29 % prevista em estudos já realizados com populações de países em desenvolvimento segundo dados da OMS (Giel e outros, 1981), do ponto de vista de riscos psíquicos. Dos nove CMEIs pesquisados – denominados de A a I – notou-se o grande número de crianças-caso no CMEI B: 04, para um total de 05; seguido dos CMEIs H (2 casos para um total de 2),  C (2 casos para um total de 5) e A (1 caso para 2 crianças que compunham a amostra). Já os CMEIS E, G e I não tiveram crianças/caso. Resultados que ajudam não apenas na detecção de crianças em risco psíquico, mas também na reflexão em cada ambiente educacional a respeito do trabalho desenvolvido pela equipe de educadores.
Os resultados da pesquisa atual confirmaram pontos já explorados nas pesquisas anteriores: do ponto de vista dos profissionais das creches pesquisadas, as ações tradicionalmente entendidas como educativas, de introdução dos bebês no sistema de funcionamento coletivo, nas regras e leis do mundo social, são bem delineadas e se exercem a contento, resultando em um cumprimento do que psicanaliticamente se descreve como “função paterna”, como Mariotto (2009) já apontou: “Parece ser este o estatuto mais pertinente a ser dado à creche e àqueles que a representam junto ao bebê, cuja função é promover o afastamento da relação primordial entre a mãe e sua cria, introduzindo o registro assimétrico do terceiro” (p.119).
Entretanto, no que concerne às ações que poderiam ser empreendidas no sentido do estabelecimento de uma relação educadora/bebê de qualidade para garantir a continuidade do que se conhece como “função materna” e que concerne aos aspectos psíquicos que estão em início de constituição, foram observadas ausências de indicadores importantes, sinalizando uma não ocupação deste lugar pela educadora da creche e uma falta deste elemento constitutivo para o bebê. Desta forma, os bebês em creche ficam muito tempo à deriva, sem encontrar nos adultos que os cercam um ponto de referência para sua relação com o ambiente social no qual se encontram. Além disso, alguns aspectos que são extremamente importantes do ponto de vista subjetivo, como a inserção no campo da linguagem e da fala de modo acessível aos bebês, são pouco ou mal entendidos pelo educador, que não foi preparado em sua formação para estes aspectos. Por exemplo, a função do brincar como elemento chave na compreensão e elaboração de experiências vividas; ou a prática do mamanhês como maneira preferencial de capturar a atenção dos bebês, solicitando-os em um lugar de sujeitos falantes, são pontos praticamente desconhecidos das educadoras. A possibilidade de dar um lugar singular para cada bebê fica muito restrita, diante das demandas urgentes do ambiente coletivo, o que produz por parte do educador uma fala mais coletiva, sem o direcionamento do olhar e da palavra para cada criança em particular. Por outro lado, a suposição do que cada bebê estaria manifestando em cada momento, a espera para “ler” em suas manifestações um determinado afeto, determinada demanda, determinado desconforto, dão lugar a afirmações muito decididas do que a educadora, de seu ponto de vista, decide coletivamente propor para os bebês.
Do ponto de vista dos bebês, o que mais chamou atenção foi a ausência do “estranhamento”, dado já obtido nas pesquisas anteriores supracitadas, mas realçado aqui nesta pesquisa, tendo em vista o número e a variedade de bebês pesquisados. Este organizador psíquico proposto por Spitz (1979) e retomado como um dos indicadores do protocolo, a “capacidade de estranhamento do bebê” encontra-se muito ausente na creche, ambiente em que o número de adultos não significativos para as crianças é grande – desde os estagiários até os pais dos coleguinhas, é um conjunto de pessoas que circula em torno dos bebês sem lhes dizer particularmente respeito. Os bebês convivem com esta realidade – de ver várias faces, de ouvir várias vozes – e mesmo sendo cuidados preferencialmente ou habitualmente por um ou mais adultos, não dão indícios de que façam uma diferenciação entre estes e os outros adultos que circulam no local. Somos levados a questionar vários pontos quanto à relação com o outro e com o Outro aí estabelecidas. Embora saibamos que o bebê tem como eixo central de constituição subjetiva suas figuras parentais e familiares – pois é deles que vai receber os significantes primordiais para suas identificações, a indicação de um lugar na família e as coordenadas para suas relações pulsionais fundadoras do campo do desejo – o grande número de horas que os bebês permanecem em creche nos tempos atuais nos leva a refletir sobre o efeito subjetivo desta permanência continuada em um ambiente social no qual não há um outro situado nesta função de Outro, principalmente se verificamos, através de dados empíricos de pesquisa – que esta relação não é significativa o suficiente para lhes permitir distinguir este outro dos demais adultos anônimos do ambiente.
Outro resultado que trouxe um número preocupante de indicadores ausentes foi no indicador (11), que se refere à construção de uma linguagem particular entre educador e bebê, num total de 25,7% de respostas A. Podemos observar a partir deste dado o pouco lugar fornecido à singularidade do pequenino no laço com seu adulto cuidador, que se dirige aos bebês de modo coletivo e não particular. Sabemos que o bebê não tem capacidade de se apropriar da linguagem se não houver um intermediário que o introduza na língua falada, e isto precisa ser feito na medida das capacidades – bem incipientes – de fala do bebê. Por isso, desenvolver pequenos vocábulos acessíveis e que são tomados como manifestações da linguagem é uma etapa importante no reconhecimento de si no lugar de sujeito, fazendo do bebê um falante quando ainda tem poucas possibilidades reais de ascender à linguagem como função. Da forma como costuma ocorrer neste ambiente coletivo de berçário, o bebê é chamado a ser “ouvinte” e realmente entende o que lhe falam nesta fala coletiva, mas o que ele poderia manifestar de singular e que lhe outorgaria um lugar de “falante” é pouco explorado.
Estes dados corroboram a necessidade de implementar, neste ambiente da Educação Infantil, ações de prevenção no que concerne aos bebês e de aprimoramento da formação no que concerne aos profissionais de creche, pois, como indicam Bénamy e Golse (2007) “uma atitude de prevenção só se justifica a partir da detecção de distorções do vínculo”.

SOBRE A PREVENÇÃO EM PSICANÁLISE
Uma relação aparentemente insólita envolve estes dois significantes: prevenção e psicanálise. Freud nos apontou que o tempo que vigora para a psicanálise é o tempo lógico, aquele do só-depois, de um a posteriori que permite ressignificar as experiências vividas. Como seria possível prevenir com esta lógica do só… depois? Tanto mais que estamos falando de bebês, ou seja, seres no início da vida?
É bem verdade que os bebês acabaram de nascer, do ponto de vista orgânico e social. Mas simbolicamente, eles vêm fazer parte de uma história, de uma série, de movimentos anteriores que vão desde o sonho da menina encenado na brincadeira de bonecas de um dia vir a ser como sua mãe, até o projeto em conjunto do casal que resolve se unir pra um dia ter uma família. Vem fazer parte de uma cadeia de gerações, vem dar continuidade a uma história familiar há tempos começada. Na sua própria e incipiente história, nasce depois de todo um tempo gestacional de sensações proprioceptivas, táteis, sonoras, de palavras em torno de exames, de imagens, de experiências que marcam o período pré e perinatal. Assim, do ponto de vista simbólico, os bebês já estão no depois, eles já têm experiências a ressignificar.
Além disso, prevenir sempre foi uma prática alheia à da psicanálise, apesar das ambições de Freud (1932) de que poderia haver uma “profilaxia das neuroses”, pois a prática mesma da psicanálise de crianças questiona esta possibilidade de garantir um destino ou prever um desfecho. Sabemos que o fato de ter feito uma análise quando criança não previne uma neurose no adulto.
Entretanto, sabemos também que a vivência de uma análise ensina ao sujeito – de qualquer idade – o caminho da cura pela palavra, ou, dizendo de outra forma, quem faz análise sabe que falar, recordar, transferenciar, dá outro direcionamento às questões essenciais da vida e permite uma elaboração diferente do vivido, uma subjetivação das crises.
Quando recorremos à psicanálise para elaborar um instrumento de detecção de riscos psíquicos e para dar chance de intervenção a tempo para os casos de crianças que foram percebidas em risco, fundamentamo-nos discurso psicanalítico sobre o processo de constituição do sujeito e sobre o lugar da palavra e do desejo neste processo. As vicissitudes neste processo representam o campo da psicopatologia da infância, que engloba as defesas da criança diante das dificuldades inerentes ao encontro faltoso entre natureza e cultura. Neste âmbito, o que se previne a tempo é a instalação de defesas maciças de proteção do psiquismo em risco, que podem se fixar em um encaminhamento estrutural de tipo patológico grave, quando as condições relacionais, interpsíquicas e intrapsíquicas da criança se deparam com o mesmo nível de dificuldades por muito tempo. Neste caso, defesas acionadas provisoriamente, para lidar com uma urgência psíquica, tornam-se permanentes. Evidentemente, a própria estruturação subjetiva é uma defesa – da subjetividade – como Freud (1894) muito cedo em sua obra apontou. Mas quando as defesas são acionadas à contramão do exercício subjetivo – caso das patologias graves da infância, como o autismo, a psicose, as depressões graves, os distúrbios psicossomáticos precoces – cobrando um custo subjetivo muito alto, o que se destaca é o sofrimento psíquico, é a fixação de defesas incapacitantes.
Prevenir, a partir da psicanálise, é sustentar possibilidades de fala e de desejo que são veiculadas pela palavra e pelo outro situado na posição privilegiada de Outro que sustenta a suposição do sujeito ainda por vir. Significa permitir à criança, principalmente ao infans, trilhar um caminho mais amplo e mais diversificado de significantes, no qual a vida parece digna de ser vivida em toda sua plenitude, porque tanto o elemento pulsional está presente quanto os elementos simbólicos que servem de âncora à existência subjetiva.
Sendo assim, conjugar estes dois verbos aparentemente distantes – prevenir e psicanalisar – parece ser possível quando se considera que um sujeito se constitui na linguagem, um sujeito se organiza e se positiva pela fala, um sujeito pode desejar desde que seja possível uma enunciação própria. Deste modo, fazer circular a palavra é criar condições para o livre exercício da subjetividade. Esta é a regra fundamental da psicanálise, que se aplica ao pé da letra na psicanálise em intensão, na clínica psicanalítica. Esta também é a regra quando a psicanálise é praticada em extensão e vai, por exemplo, à escola de educação infantil.

PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO INFANTIL
            Há muitos anos trabalhando neste ambiente de creches e pré-escolas, nossas experiências tendo como norte a psicanálise, apontam para várias possibilidades de intervenção, sempre com a diretiva de promover, neste ambiente de educação infantil, a circulação da palavra, pois, segundo Kupfer (2000) “quando há circulação de discursos, as pessoas podem se implicar em seu fazer, podem participar dele ativamente, podem se responsabilizar por aquilo que fazem ou dizem. Mudam ativamente os discursos, assim como são por eles mudadas, de modo permanente” (p. 137). Assim, podemos propor três principais níveis de atuação: junto às crianças, junto aos pais, junto aos educadores,
Nas experiências com as próprias crianças, o brincar é a técnica por excelência, tal qual na clínica psicanalítica. A diferença está no fato de que se trata de grupos em um ambiente coletivo e do âmbito escolar. O brincar com este sentido de dar lugar ao sujeito e ao seu desejo pode acontecer na educação infantil através da hora da brincadeira com os bebês no colchonete, na visita a cada berço pra trocar palavras e olhares em torno de um chocalho, um móbile, pretexto para entrar em relação; pode acontecer em brincadeiras de grupinhos, quando se resgatam canções de roda, do folclore e se propõe compartilhar estes jogos; pode ser nos jogos de dramatização de historinhas infantis, com constantes trocas de papeis, em que cada criança pode fazer de conta, alternadamente, que é vários personagens – desde o vilão até a fada. O fio condutor de todas estas situações não está no que se faz, mas na posição que se ocupa ao conduzir o que se faz: supondo sujeitos, estabelecendo demandas, fazendo alternância de presença/ausência e transmitindo função paterna. Isto se destaca na maneira como se escuta cada criança, no modo como se resolve um conflito, no estilo de marcar o início e o término dos encontros. Além disso, são experiências que recorrem ao que o campo simbólico nos oferece de significantes próprios para a infância – os contos, os cantos, as lendas, os brinquedos – desde tempos imemoriais até a atualidade.
No que se refere aos pais, a escuta de suas questões quanto ao desenvolvimento do filho, a impasses familiares, a dúvidas quanto ao processo escolar, são conduzidas de forma a reconhecê-los no lugar de pais e a convocá-los a exercer seu saber a partir de sua história, sua cultura. As entrevistas de pais e os grupos de pais, mesmo que tenham como mote uma questão a ser debatida, mesmo que eles venham com a expectativa de “aprender” dos ditos “especialistas”, são conduzidos de forma a devolver-lhes o lugar de saber sobre seu filho, a reconhecer nas queixas e nos sintomas do filho sua pertença familiar e a articular as dificuldades dos filhos com as suas próprias, às vezes recuperando uma infância que parecia perdida e que irrompe a partir de um dilema com o filho.
Finalmente, no que se refere aos educadores, o trabalho pode ser com duas vertentes: da transmissão e da formação do profissional. Da transmissão, falamos do que é importante que eles saibam para poder atuar na educação no sentido pleno do termo: transmitir marcas simbólicas (Lajonquière, 1997). Como concebe Kupfer (2000, p. 35) o ato de educar é “o ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na carne doinfans, transformando-a em linguagem”. É importante poder transmitir-lhes o valor do mamanhês, por exemplo; a importância de falar particularmente a cada criança; o valor do brincar na vida da criança, mais além do aspecto pedagógico; os diferentes impasses pulsionais envolvidos nos cuidados cotidianos de um bebê e de uma criança pequena. Da formação, falamos de um cuidado daquele que cuida: ouvir e acolher o educador em sua subjetividade, para que ele possa ocupar o lugar daquele que cuida das crianças enquanto sujeitos. Como observa Crespin (2005): é um desafio ocupar este lugar de “substituto materno”, pois segundo a autora “de modo algum se trata de substituir alguém (…) mas sim de sustentar, no lugar do Outro, um desejo e uma presença capazes de permitir ao sujeito aí se apoiar para se construir” (p. 105). Os trabalhos que se podem propor são os grupos de discussão de situações de sala de aula, por exemplo, ou reuniões para refletir sobre as situações do cotidiano da creche. O psicanalista pode ser, como aponta Missonnier (2003) “um agente de ligação, que abre na inter e na intrasubjetividade representações de uns e de outros”. Segundo este autor, é preciso buscar “manter a coerência do grupo, apoiando-se em sua capacidade de conter e esclarecer os investimentos relacionais dos cuidadores” (Missonier, 2003). Percebe-se que esta intervenção é indireta, como assinalam Nezelof, Ropers e Duquet (2002), pois visa “favorecer a emergência dos recursos relacionais inerentes a cada profissional, a aumentar sua segurança profissional, a manter continuidade e coerência em suas intervenções”.

SOBRE A PESQUISA EM PSICANÁLISE
A psicanálise é ao mesmo tempo uma teoria sobre o psiquismo, uma práxis clínica e um método de investigação do inconsciente. Para Freud (1913) tratamento e investigação coincidem.
Isto por si só exige do pesquisador psicanalista uma posição de confronto com o desejo, devendo reconhecer no seu trabalho a quota de impossibilidade de revelação da verdade. Se o psicanalista como pesquisador visa a um saber, ele não poderá contar com saberes já estabelecido que serão ou não verificados. A surpresa da descoberta é parte integrante da própria investigação.
O redimensionamento da relação entre psicanálise e ciência, permite que se reafirme o método e o estilo de pesquisa, produzindo também uma particular articulação entre seus objetivos, seus fins e seu produto.
O pesquisador psicanalista constrói o percurso por conta dos passos que dá. É um processo que inclui o pesquisador e não apenas a pesquisa em si. É, portanto, este o eixo da investigação, diferentemente de outras concepções teórico-científicas que acentuam o resultado obtido e o caminho percorrido para tal.
Em primeiro lugar porque a pesquisa carrega em si a marca da singularidade do pesquisador, fazendo oposição ao universalizante e objetivante. Ao se debruçar sobre o dito ‘objeto’ de pesquisa, este por sua vez, sofre transformações, perde sua unidade. Como conseqüência, os conceitos entram numa crise epistemológica, produzindo rupturas de concepções e exigindo seu tensionamento máximo. É neste sentido que a pesquisa em psicanálise opera mais do lado da interpretação do que do postulado, já que se impõe a ela novos arranjos, reordenações metodológicas e conceituais, em que a certeza precisa se transformar em pergunta e onde será necessário contemplar o ‘caso a caso’ com o universal. Assim, um método que se diga psicanalítico de pesquisa dirige seu olhar não para o que teria de comum entre os sujeitos da pesquisa, mas paro o que surgisse de singular, de peculiar a cada um. Isso não quer dizer que a quantificação estatística, por exemplo, perca seu lugar, mas sim que ela muda de posição, deixando de ser um fim em si mesmo.
Assim, uma condição fundamental desta singular forma de fazer pesquisa é a de que o pesquisador faça uma imersão no material de pesquisa como forma de se aproximar do objeto a ser pesquisado, respeitando assim, sua natureza dinâmica. Não é possível isolar o objeto do investigador, e é por isso que a relação entre o objetivo e o subjetivo é peculiar. Até porque nosso objeto está longe de configurar como linear e contínuo, muito menos materializável e porque nosso método permite – ou exige? – que o pesquisador se debruce sobre seu campo enquanto psicanalista.
A pesquisa que ora apresentamos, permitiu verificar alguns elementos teórico-práticos que ainda nos surpreendem, que exigem mais estudos e que requerem novas formulações.
Circular por um ambiente especialmente criado para a criança e a infância sugere que a equipe esteja voltada para este sujeito. No entanto, a aplicação do IRDI revelou um dado preocupante: a fragilidade discursiva entre a educadora e bebê, não fazendo deste seu interlocutor principal. Não raro, a equipe fala dos bebês, mas não com eles.
No que tange à ausência de estranhamento por parte dos bebês, este dado impõe necessária reflexão a respeito da qualidade e consistência do educador/cuidador ao se revestir da função de Grande Outro. Se, para Lebrun (2004), o pai é o primeiro estranho familiar, função esta desempenhada pelo educador, o que é que se produz nas creches onde ninguém opera como estranho? Isto também não afetaria a condição ‘familiar’ deste outro cuidador? O que faz com que a estranheza causada pela eclosão, no seio mesmo do familiar (em ambos os sentidos da palavra), de uma não-familiaridade conhecida e antiga não tenha lugar neste ambiente?
Por outro lado, seria este um indicador pertinente ao espaço educacional, na medida em que é essencialmente público e, portanto, estranho em sua natureza? Haveria algum comprometimento no devir psíquico destas crianças que muito precocemente passam a viver de modo mais público e menos privado?
Como se pode perceber, alguns conceitos psicanalíticos foram postos à prova, bem como nossa “escuta”, ao tentarmos “ler” os achados de nossa investigação à luz de nossas concepções de sujeito, de desejo, de falasser, de Outro primordial, de funções materna e paterna, e outros. Ao irmos à pré-escola, deixamos um pouco o setting analítico e seu manejo, para esticar o discurso e a prática psicanalíticos ao máximo. No só-depois desta escrita, para concluir, retomamos o ponto inicial que nos instigou: fazer pesquisa é também psicanalisar.

Sobre as autoras:
Leda Mariza Fischer Bernardino é professora titular da PUCPR, pós doutora em Tratamento e Prevenção Psicológica pela Université de Paris 7, Denis Diderot. Psicanalista, analista membro da Associação Psicanalítica de Curitiba e da Association Lacanienne Internationale.
Rosa Maria Marini Mariotto é professora da PUCPR, Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pelo IPUSP, membro da ABEBE, psicanalista, analista membro da Associação Psicanalítica de Curitiba.

REFERÊNCIAS
ATEM, L. M. Pensando a psicopatologia na creche – formação de educadores e prevenção. Disponível em :www.fundamentalpsychopatology.org/8_cong_anais/TR_4106.pdf> Acesso em 20 de setembro de 2009.
ARAGÃO, R. O. A Psicanálise no campo da educação infantil: uma aplicação possível. In: Em Aberto, v. 18, n.73, p.70-77, Brasilia, jul. 2001.
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Recebido 20 de abril
Aceito 18 de maio


fonte; http://www.apccuritiba.com.br/artigos/ed-20-psicanalise-e-educacao-infantil-dialogos-a-partir-de-uma-pesquisa/

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