PGM 4 - Currículo, escola & sociedade
Currículo: um elo importante na parceria escola/família?
Carmen Teresa Gabriel *
Discutir as diferentes modalidades possíveis de articulação entre escola e família nas sociedades contemporâneas pressupõe refletir também sobre o currículo e suas implicações para o cotidiano escolar e a prática docente.
Mas o que se quer nomear quando se fala "currículo"? Basta um breve mapeamento sobre o que tem sido escrito a respeito deste termo para percebermos que existem diferentes maneiras de compreendê-lo e significá-lo.
De uma concepção tecnicista e reducionista de currículo - associada comumente a listagens de conteúdos tidos como universais e indispensáveis para serem ensinados nas diferentes disciplinas - até a sua percepção como prática social cotidiana que produz significados e dá sentido ao mundo, existe uma distância semântica enorme, tradutora de diferentes olhares e perspectivas sobre a temática curricular.
Não cabe aqui desenvolver as diferentes correntes ou teorias curriculares, mas chamar atenção para o fato de que os laços entre escola e família se afrouxam ou se estreitam em função, também, da concepção de currículo privilegiada no olhar de quem percebe esta relação.
Assim, a questão que me parece pertinente para começar esta breve reflexão pode ser assim formulada: Que concepção de currículo melhor contribui para consolidar, fortalecer a parceria entre escola e família, entendida como um processo permanente de construção entre atores diferentes mas com projetos coletivos comuns? Projetos esses que, ainda que de forma diferenciada, expressam a intencionalidade da construção de uma sociedade mais justa e democrática.
Um novo olhar sobre o currículoUma possibilidade de resposta a esta questão consiste em explicitar a escolha do campo semântico construído em torno do termo currículo. Dependendo do enfoque teórico adotado, estabelecem-se associações entre este e vários outros conceitos dando visibilidade ao sentido que se lhe quer atribuir.
Dessa forma, pensar currículo associado apenas à técnica, ao planejamento do que deve ser ensinado, às inúmeras diretrizes e documentos oficiais, ou pensá-lo a partir da ampliação do campo conceptual e articulá-lo a outros conceitos como cultura, representação, poder ou identidade, são posturas e escolhas cujas implicações políticas e pedagógicas são bem diferentes. Elas traduzem a própria compreensão do significado de escola e das relações que esta instituição estabelece com a sociedade na qual está inserida.
As tendências mais atuais hoje do campo do currículo vão no sentido de privilegiar a inserção deste termo em uma rede conceptual mais ampla e complexa, sem no entanto perder de vista a especificidade do espaço no qual ele é pensado e produzido. Esta abordagem permite pensar o currículo escolar tanto em termos de mudanças como de permanências.
Em termos de mudança, podemos destacar algumas evidências. Em primeiro lugar, a associação entre currículo e cultura permite a ampliação da noção de "conteúdos escolares". Ao invés da conotação recorrente com "a matéria a ser ensinada", este novo olhar prefere relacionar os conteúdos escolares com a noção de "elementos de cultura", incluindo entre estes elementos diferentes saberes, valores e comportamentos.
Em segundo lugar, a articulação entre currículo/cultura/representação, em uma mesma rede de significados, permite não só ampliar como também questionar a natureza e as condições de produção desses conteúdos escolares. A idéia de representação social vinculada sugere que o termo cultura está sendo significado na perspectiva mais antropológica, relativista e pluralista, pela qual ele assume a conotação de visões de mundo ou grades de leitura e de interpretação produzidas por grupos sociais específicos em função dos seus interesses e possibilidades. É nesse sentido que pensar e trabalhar com o currículo refletem as diferentes visões de mundo dos atores envolvidos na produção dos saberes escolares (autores de propostas curriculares ou livros didáticos, professores e alunos).
O currículo, visto dessa forma, desmistifica a idéia de neutralidade dos conteúdos disciplinares, reafirmando o seu aspecto seletivo, trazendo à tona a discussão sobre os critérios adotados para a escolha deste ou daquele conteúdo nas grades curriculares de uma determinada disciplina. Quem decide o que se ensina em Matemática, História ou Literatura? Para quem estes conteúdos são significativos? Existem conteúdos universais que devem ser ensinados a todos? Estas e outras tantas questões emergem no debate do campo curricular e traduzem o terceiro aspecto inovador que merece ser apontado: a assunção da dimensão política inerente às práticas pedagógicas e expressa na inclusão do conceito de poder na rede de significados da qual faz parte o termo currículo.
Pensado como uma construção histórica e social, o currículo traduz, assim, os diferentes interesses em disputa, produzindo e reproduzindo as relações sociais desiguais, assimétricas, que caracterizam as sociedades contemporâneas. Através dele é possível legitimar e/ou contestar valores, saberes e culturas. É possível produzir, reafirmar, negar ou silenciar identidades e diferenças sociais. Nesse sentido, o currículo se transforma igualmente em um importante instrumento de negociação política entre os diferentes atores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.
Uma outra dimensão inovadora consiste no fato de este novo olhar colocar em evidência os limites de uma concepção de currículo centrada apenas na sua dimensão formal, como um produto acabado e materializado nas propostas curriculares. Pensar currículo a partir do campo conceptual acima mencionado, implica igualmente percebê-lo como prática social viva, dinâmica e processual traduzida pelo conjunto de experiências produzidas e vividas por professores e alunos no cotidiano da sala de aula. É nesse sentido que se distingue o "currículo formal" do "currículo real", este último incorporando as noções de incerteza, urgência, dinâmica, acaso, contingência, processo, pluralidade que caracterizam o processo de ensino-aprendizagem a partir das condições objetivas e subjetivas que estão postas.
Em termos de permanência, este novo olhar se caracteriza pelo fato de que, apesar dos questionamentos sobre a natureza e função dos conteúdos escolares, ele não nega a centralidade e importância dos mesmos nas discussões curriculares. O currículo é visto assim como o conjunto de representações e práticas que se organizam em torno do conhecimento escolar. Conhecimento esse produzido num espaço social com funções sociais formativas e normativas, que precisam ser devidamente consideradas. Assumir a não-neutralidade dos conteúdos escolares e as suas implicações político-ideológicas e culturais não autoriza, no entanto, cair em um relativismo radical que permite afirmar que qualquer saber ou valor ético-cultural pode e deve ser ensinado nas escolas. Não se trata de negar a necessidade de selecionar os conteúdos escolares, mas sim de explicitar os critérios desta seleção de forma consciente e em sintonia com o projeto de escola e de sociedade no qual se acredita e pelo qual se luta.
Mas em que medida a parceria escola-família pode sair reforçada quando se opta por uma concepção de currículo como esta acima privilegiada? Em que medida as mudanças e as permanências apontadas na percepção deste novo olhar sobre o currículo podem estreitar esta parceria?
Um novo olhar sobre a parceria escola /famíliaPensar o currículo de forma contextualizada, ampliada e dinâmica acarreta, em primeiro lugar, uma abertura dos canais possíveis de diálogo entre o mundo da escola e o mundo da família, permitindo não apenas o estreitamento desta parceria, mas igualmente, e principalmente, a possibilidade de repensá-la a partir de outras bases.
Na medida em que os conteúdos escolares deixam de ser percebidos como verdadeiros "pacotes de conhecimento universais a serem digeridos" e passam a ser considerados como práticas culturais que se manifestam no domínio da representação e leitura do mundo dos atores envolvidos, eles permitem um novo olhar sobre as concepções de mundo do aluno e do seu meio familiar, refletindo diretamente na forma de pensar esta parceria.
Não se trata mais de pensar esta parceria apenas em termos de gestão administrativa ou emergencial, mas sim de concebê-la e construí-la também no momento da concepção de escola, da produção e/ou reelaboração do projeto político-pedagógico, onde a questão do currículo desempenha um papel central. Os conhecimentos, valores, desejos e expectativas vindos dos diversos horizontes familiares passam a integrar o campo dos saberes de referência a serem considerados no momento da escolha dos conteúdos escolares.
Ao invés de serem desvalorizados culturalmente, ou percebidos como obstáculos e handicaps à aprendizagem - como ocorre com freqüência, em especial quando são produzidos nos meios socioculturais mais desfavorecidos - esse cabedal cultural formado pelos conhecimentos cotidianos, populares e/ou do senso-comum, podem ser confrontados com os demais saberes - acadêmicos, científicos, disciplinares - de forma a fazer do saber escolar produzido nas salas de aula algo mais significativo, mais prazeroso e mais libertador para todos os atores envolvidos na prática educativa.
Os laços entre família e escola, assim considerados, vão além do controle meramente burocrático ou da aquisição, pelos alunos, dos conteúdos escolares. Ao invés da família ser chamada ou convocada na escola apenas quando as coisas não andam bem, quando as notas estão baixas, ou quando se precisa de uma ajuda pontual, ela passa a ser encarada como co-autora do projeto de escola e conseqüentemente se envolvendo mais diretamente na concretização do mesmo.
Para além desta mudança na perspectiva do planejamento mais geral da própria instituição escolar, a concepção de currículo aqui privilegiada permite ao professor organizar a sua prática pedagógica cotidiana de sala de aula de forma mais dialógica e interativa com a realidade dos seus alunos. As opções didáticas do professor partem de critérios que "trazem a família" para dentro da sala de aula de forma positiva e afirmativa, por aquilo que elas têm e que pode contribuir na construção do conhecimento escolar. Não pelas ausências e carências que fazem desta inclusão pretexto para mais uma forma de exclusão.
Ao quebrar as concepções hierárquicas de saber, este novo olhar sobre o currículo abre a possibilidade de valorizar outras formas de conhecimento sem confundi-las, no entanto, entre si. A valorização dos saberes sociais oriundos dos meios familiares não deve ser confundida com homogeneização dos papéis sociais atribuídos à família e à escola. Esta última, como já foi sublinhado, é um espaço específico de produção e transmissão de conhecimento. Um espaço que estabelece relações privilegiadas com o saber. Um espaço, onde é possível para o/a aluno/a estruturar e sistematizar os saberes plurais criados em outros lugares.
Esta concepção de escola e da "cultura escolar" defende que na escola os saberes sociais dos alunos devem ser vistos muito mais como ponto de partida do que como ponto de chegada. À escola e ao professor compete organizar, sistematizar, complexificar esses conhecimentos, isto é compete ensinar. Complexificar não no sentido de complicar, mas de facilitar aos alunos a construção de novas grades de leitura do mundo, no sentido de permitir a esses alunos se situarem em um mundo por definição extremamente complexo.
Nesta perspectiva, o currículo é, sem dúvida, um elo importante e indispensável na parceria escola e família. Uma parceria que, por ser selada muito mais no domínio das representações e do simbólico, não é facilmente perceptível e nem fácil de ser construída. No entanto, sem ela qualquer outra modalidade de parceria pode ficar seriamente comprometida. O desafio está posto. O enfrentamento apenas começando.
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NOTAS:
* Doutoranda em Educação - PUC/Rio.
Fonte: http://www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2002/pef/peftxt4.htm
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