A Questão Ética na Educação Escolar
Júlio Groppa Aquino*
Júlio Groppa Aquino. A questão ética na educação
escolar. O presente artigo visa à problematização
da questão ética no espectro das práticas escolares,
particularmente no que diz respeito à ação docente.
Para tanto, propõe uma configuração inicial do tema
em diferentes âmbitos da ação humana, para depois configurá-lo
teoricamente, distinguindo alguns de seus matizes conceituais. Em seguida,
discute a inclusão do tema no campo educacional por meio da proposição
de alguns valores e preceitos mínimos no que tange à ação
pedagógica e ao convívio entre os pares escolares.
*Júlio Groppa Aquino é docente da Faculdade
de Educação da USP (área de Psicologia da Educação),
com graduação em Psicologia pela UNESP, e mestrado e doutorado
em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP.
No Brasil, a década de 80 e, em particular, a de 90 testemunharam
mudanças vertiginosas no que se refere à estruturação
da vida social, à ordenação do cotidiano das pessoas.
Com a lenta e gradual democratização das instituições
políticas, que culminou com a solidificação do processo
eleitoral em todos os níveis de representação política,
viu-se nascer igualmente novas formas de organização no interior
das diferentes instituições sociais, antes amalgamadas de
acordo com uma espécie de padrão dominante e estável
de funcionamento.
A família, a mídia, o mundo do trabalho, isso é
fato, não são mais os mesmos de vinte anos atrás. E,
em geral, damos conotações positivas a essas transformações
como algo positivo, afinal de contas, passamos a viver em um mundo mais
flexível, mais democrático, ou, se se quiser, menos uniforme,
menos opressivo. O mesmo pode ser dito com relação aos padrões
de comportamento, de sexualidade, de consumo, de educação
dos filhos, de relação entre as pessoas, etc.
Entretanto, não se pode negar que essas mesmas transformações
findaram por produzir rachaduras indeléveis nos modos de funcionamento
dessas instituições clássicas, e, por conseqüência,
na maneira com que vínhamos concebendo os papéis e funções
desses atores sociais nucleares. Todos já ouvimos, ou sentimos na
própria pele, o bordão: "a crise da família",
"a crise do casamento", "a crise das relações
de trabalho", "a crise da democracia".
Essa idéia tão disseminada de descompasso ou desarranjo
das instituições parece sinalizar um paradoxo: se, por um
lado, as múltiplas e rápidas transformações
sócio-históricas das últimas décadas propiciaram
uma vivência civil mais democratizante e pluralista, por outro lado,
elas têm sido tomadas, não raras vezes, como motivo de instabilidade
e, portanto, de exasperação para esse homem de fim de século.
No dia-a-dia, o que desponta, quase sempre, é um tipo de indagação
comum: nos dias de hoje, o que é exatamente ser um bom pai, um bom
companheiro, um bom profissional, e assim por diante?
Uma situação exemplar dessa espécie de "mal-estar"
civil pode ser verificada em alguns programas televisivos em voga, já
há algum tempo, nas emissoras brasileiras. Em alguns deles se vêem
personagens confrontando-se com situações dilemáticas
cujo desfecho é "decidido" pelo telespectador, convocado
a exercer alguma coisa parecida com o "sagrado direito" do voto.
Em outros, sensivelmente mais explícitos, se vêem dilemas corriqueiros
da vida narrados, em ato, pelos seus próprios protagonistas, sempre
enredados em algum tipo de trama confrontativa e de difícil solução
imediata.
Verídicos ou não, sensacionalistas ou não, esses
"shows da vida" parecem chamar a atenção de "gregos
e troianos" pelo seu teor de perplexidade e comoção.
Identificamo-nos com esses personagens/protagonistas sempre que eles se
mostram incertos, inseguros quanto a como proceder frente às agruras
de sua existência concreta, às exigências voláteis
de seu lugar social. Afinal, qual a conduta sustentável ou desejável
ante determinados problemas da vida contemporânea: pais às
voltas com filhos rebeldes, enfermeiras e médicos diante de quadros
complexos, juízes e advogados premidos por circunstâncias ambíguas,
políticos assediados por propostas ilícitas, consumidores
insatisfeitos com vendedores ou prestadores de serviços inescrupulosos,
vizinhos em litígio aberto, relações civis permeadas
por intolerância ou discriminação.
O que parece se evidenciar quando se colocam em xeque esses impasses
da vida coletiva é uma demanda de "ressignificação"
dos papéis e funções dos atores das diferentes instituições
que estruturam e condicionam nossa vida em sociedade. Em certo sentido,
pode-se afirmar que tais discussões apontam invariavelmente para
a questão ética, uma vez que se referem a procedimentos, condutas
e aos valores aí embutidos.
Assim, a ética é um daqueles temas que, a partir dessas
duas décadas, passaram a figurar como um dos grandes eixos de preocupação
e discussão entre as pessoas. Discutimo-la, por exemplo, em determinados
campos sociais: a ética na política (é correto trocar
votos por facilidades?, receber propinas?); a ética na ciência
(é correto fabricar clones humanos?; utilizar doentes como cobaias
sem a sua anuência?); a ética na religião (é
correto condenar o aborto em quaisquer circunstâncias?; trocar absolvições
por doações?).
Discutimo-la também em certas práticas profissionais: a
ética na medicina (é correto sonegar informações
ao paciente?; prolongar um tratamento visando lucro?); a ética na
mídia (é correto expor tanta violência?; desvelar publicamente
a intimidade das pessoas?); ou ainda, a ética no aparelho policial
(é correto perseguir mais freqüentemente cidadãos negros?;
atirar antes e perguntar depois?).
Para todas essas perguntas temos respostas óbvias, na ponta da
língua - o que significa que, mesmo que não consigamos vislumbrar
uma conduta invariavelmente ética nesses campos, pelo menos deduzimos
o que deve ou pode ser feito por esses atores institucionais, assim como
o que não se deve ou não se pode fazer nesses âmbitos
da ação humana. Em linhas gerais, o que está em foco
no enfrentamento ético de uma determinada prática social ou
profissional são as fronteiras desta ação (até
onde se pode chegar?) e a "qualidade" do trabalho desenvolvido
(como fazê-lo?).
Sobre o conceito de ética
A despeito de se tratar de uma idéia nebulosa e, de certa forma,
controvertida, mas bastante recorrente nos dias de hoje, é importante
estabelecer um solo comum de significação para o termo. No
dicionário especializado de Lalande a ética é entendida
como "a ciência que toma por objecto imediato os juízos
de apreciação sobre os actos qualificados de bons ou de maus1".
Já em um dicionário comum, uma das acepções
do verbete ética remete ao "conjunto de princípios morais
que se devem observar no exercício de uma profissão; deontologia"
(Michaelis,2).
Amparados por esses dois significados clássicos, e ao mesmo tempo
divergindo deles, entendemos que se trata do valor (o para quê) e
da direção (o para onde) que atribuímos a - ou subtraímos
de - determinadas práticas sociais/profissionais, desde que atreladas
a certos preceitos, a certas condições de funcionamento. Ou
seja, certas ações humanas requerem uma razoável visibilidade,
tanto por aqueles que as praticam quanto por aqueles que delas são
alvo, quanto a seus princípios e fins específicos, para que,
na qualidade de meios, possam ser julgadas como procedentes, ou não,
legítimas, ou não, eficazes, ou não.
Nessa perspectiva, a ética pode ser compreendida inicialmente
como aquilo que vetoriza determinada ação, ao ofertar-lhe
uma origem e uma destinação específica. Assim, por
exemplo, estamos sempre a julgar se a conduta de um profissional foi condizente
com o que dele se esperava, com aquilo que ele "deveria" fazer
ou ter feito. Em outras palavras, acalentamos expectativas sobre determinadas
práticas (e, por extensão, sobre determinadas condutas) e
as "avaliamos" de acordo com o crivo de um "dever ser"
característico. É talvez por essa razão que existem
códigos de ética para algumas carreiras, que sinalizam regras
de conduta razoavelmente consensuais e, até certo ponto, suficientemente
claras não só para o conjunto dos profissionais, mas também
para os outros envolvidos.
Isso não significa que tais regras implicariam necessariamente
um conjunto invariante de normas pré-programadas que deveriam ser
reproduzidas ipsis litteris por cada profissional em sua ação
específica, e, portanto, generalizadas para toda a categoria profissional.
Mesmo porque a conduta é sempre particularizada pelas condições
pontuais: a clientela é outra a cada vez e o próprio profissional
é diferente a cada vez porque constantemente transformado pela própria
ação.
Não obstante, é imprescindível que algumas regras
comuns de conduta sejam conhecidas e praticadas pelos agentes daquela determinada
prática profissional em seu exercício concreto, de tal forma
que o campo de atuação seja preservado, resguardado de ações
espontaneístas, não sistematizadas, e, portanto, passíveis
de engodo ou ludíbrio. Desse modo conseguimos obter, principalmente
como clientes ou como usuários de determinado serviço ou instituição,
um pouco dessa clareza sobre a ética do agente institucional ou do
profissional em questão, assim como sobre a validade da prática
em foco, quando nos damos por satisfeitos com o atendimento prestado, ou,
ao contrário, quando nele detectamos negligência e/ou inoperância.
Entretanto, nem sempre essa relação entre aquele que avalia
e aquele que é avaliado é simétrica, ou mesmo congruente,
o que pode desencadear certos equívocos. E é aí que
a noção de "ética" desponta como uma espécie
de árbitro da ação, no que tange à sua procedência,
sua legitimidade, sua eficácia.
Nesse ponto, faz-se necessária uma distinção conceitual.
O campo da ética não se confunde com o das leis, e tampouco
com o da moral. Trata-se de um campo suportado por regras até certo
ponto facultativas, isto é, que não exigem uma submissão
inquestionável, mas um engajamento autônomo, uma assunção
voluntária, na medida em que prescrevem, no máximo, pautas
possíveis de convivência entre os pares de determinada ação.
Tais regras não são, portanto, nem dogmáticas, como
no caso da moral, nem compulsórias, como no caso das leis. Desta
feita, as regras - vetores por excelência do espectro ético
de determinada ação - não primam por absolutização.
Elas, sempre relativas, não figuram necessariamente nem como verdadeiras
nem como falsas, mas apenas funcionam ou não, podem ser obedecidas
ou não, podem metamorfosear-se ou não, dependendo do contexto
em que se concretizam. Trata-se de preceitos regionalizados, particularizados,
nunca universais.
Os campos legal e moral, por sua vez, são mais afeitos às
normas, às prescrições tácitas. Assim, os postulados
morais e os legais são praticamente idênticos para todos, em
detrimento do contexto específico da ação, das circunstâncias
de sua execução. Pode-se dizer que, em determinado contexto
sócio-histórico, eles sobrepairam, ou atravessam, o conjunto
das práticas humanas indistintamente. Não matar ou não
roubar, por exemplo, são, atualmente, postulados relativos a quaisquer
ações humanas, e, mesmo vale lembrar, num caso limite como
o da guerra. Nessa situação de conflito generalizado, pode-se
dizer que é possível e necessário matar, mas apenas
militares inimigos, jamais os civis. Não é essa, afinal, uma
das principais razões de ser dos tribunais de guerra?
Outra diferença fundamental é que o campo da ética
é muito mais mutante do que o da moral e o das leis, uma vez que
se encontra em ebulição constante: julgamos "caso a caso",
ponderamos "as circunstâncias", levamos em conta os "antecedentes",
etc. Além disso, nem tudo o que é considerado ético
hoje o será amanhã. O mesmo não se pode dizer com relação
à moral e às leis. Seus preceitos nucleares persistem, são
nossos velhos conhecidos.
Note-se, assim, que a violação de um postulado ético
não é considerada automaticamente nem uma contravenção
legal nem uma transgressão moral, mas tão-somente uma "falta",
uma vez que contraria um conjunto de preceitos tomados como necessários,
eficazes ou apenas positivos, "bons". Algo, pois, que teria sido
"melhor" se tivesse sido de outra maneira. E isso é o máximo
a que a interpelação ética pode chegar.
A propósito, de um ponto de vista psicológico, pode-se
dizer que só nos tornamos alguém à medida que nos posicionamos
numa relação com outrem. São relações,
portanto, que nos constituem como sujeitos. Disso decorre que não
se pode afirmar algo com absoluta segurança sobre Ana ou João
se tomados em si mesmos, mas sobre Ana como mãe, ou como filha, como
profissional, como amante, ou sobre João como amigo, como pai, como
consumidor. Além disso, há que se levar necessariamente em
conta o outro, parceiro compulsório da equação que
nos institui como sujeito no (e do) mundo, a quem tomamos ora como objeto,
oponente, modelo ou auxiliar em nossas ações. Ana só
é filha em relação à sua mãe, ou profissional
em relação a um cliente; João só é pai
em relação a seu filho, ou consumidor em relação
a um vendedor. Portanto, disso decorre que as relações/lugares
institucionais passam a ser o núcleo e foco de atenção
quando nos dispomos a enveredar pelo âmbito ético das práticas
sociais/profissionais.
Partindo, então, do pressuposto de que toda ação
implica uma parceria entre semelhantes, embora desiguais, poder-se-ia sustentar
que, de um ponto de vista institucional, uma espécie de "contrato"
nos entrelaça, posicionando-nos imaginariamente em relação
ao nosso outro complementar, bem como delimitando nossos respectivos lugares
e procedimentos, e, conseqüentemente, marcando a diferença estrutural
que há entre eles. Um contrato invisível mas com uma densidade
extraordinária, posto que suas cláusulas balizam silenciosamente
o que fazemos e o que pensamos sobre o que fazemos. Uma espécie,
enfim, de "liturgia" dos lugares, se se quiser.
Em suma: o campo da ética fundamenta-se em torno da fidelidade,
ou não, às regras de um determinado "jogo" instituído/instituinte,
as quais evidenciam-se, principalmente, quando o jogo é mal jogado.
Uma vez bem jogado, elas submergem novamente, silenciam-se, retornam à
qualidade de pressuposto básico. Um enunciado sintético talvez
possa aglutinar a complexidade do conceito: ética é aquilo
que, implicitamente, regula (ou deveria regular) determinada prática
social/profissional para os nela envolvidos. Ou, ainda mais condensadamente,
aquilo a partir do que deriva nossa confiança no outro - aquela espécie
de segurança íntima e apaziguadora a que se acede quando em
boa companhia.
A ética na educação escolar: do
currículo ao convívio
Se, como cidadãos (ou mesmo usuários), temos experimentado
o hábito de avaliar certas práticas sociais e profissionais
a que estamos ligados no dia-a-dia, não se pode dizer que o mesmo
venha ocorrendo explicitamente e com a mesma freqüência quando
colocamos a educação escolar em pauta. Raras são as
vezes em que a discussão ética é presenciada de modo
explícito no campo pedagógico, principalmente entre os pares
escolares - e a lacuna bibliográfica sobre o tema é uma evidência
mais que suficiente do estado incipiente das discussões na área.
Além disso, se a escola é uma das práticas sociais
(e o trabalho pedagógico, uma das práticas profissionais)
fundamentais da vida civil contemporânea, algo neles parece estar
fora da ordem ou, no mínimo, em descompasso quando comparado à
efervescência de outras instituições sociais.
Entretanto, é preciso reconhecer que, apesar dessa espécie
de anacronismo e auto-isenção, alguns esforços concretos
vêm sendo formalizados com o intuito de inaugurar um corpo de discussão
sobre a questão ética na educação escolar. Estamos
nos referindo aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),3 e particularmente
aos "temas transversais" neles inseridos, os quais se referem
a um conjunto de temáticas sociais, presentes na vida cotidiana,
que deverão ser tangenciadas pelas áreas curriculares específicas,
impregnando "transversalmente" os conteúdos de cada disciplina.
Foram eleitos, assim, os seguintes temas gerais: ética, pluralidade
cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual,
além de trabalho/consumo.
Visando à formulação de um conjunto de diretrizes
pedagógicas gerais e específicas capaz de nortear os currículos
e seus conteúdos mínimos em escala nacional, os PCNs são,
sem sombra de dúvida, uma iniciativa digna de interesse. No volume
8, dedicado à apresentação dos temas transversais e
especificamente à ética, lê-se o seguinte:
Como o objetivo deste trabalho é o de propor atividades que
levem o aluno a pensar sobre sua conduta e a dos outros a partir de princípios,
e não de receitas prontas, batizou-se o tema de Ética /.../.
Parte-se do pressuposto que é preciso possuir critérios, valores,
e, mais ainda, estabelecer relações e hierarquias entre esses
valores para nortear as ações em sociedade. 4
Dentro desse espírito dignificante, quatro eixos de conteúdos
relativos ao tema foram selecionados, todos eles atrelados ao princípio
básico de dignidade do ser humano, a saber: respeito mútuo,
justiça, diálogo e solidariedade. Em que pesem as possíveis
controvérsias em torno dos próprios PCNs, quanto mais da inclusão
dos temas transversais nos currículos brasileiros, é necessário
destacar que se trata de uma sistematização substancial, uma
vez que estrutura uma série de questões imprescindíveis
a serem incluídas nos planos curricular e dos conteúdos da
"educação moral" dos alunos.
Não obstante, o próprio documento alude a algo, a nosso
ver, inusitado. Vejamos:
Ao lado do trabalho de ensino, o convívio dentro da escola
deve ser organizado de maneira que os conceitos de justiça, respeito
e solidariedade sejam vivificados e compreendidos pelos alunos como aliados
à perspectiva de uma "vida boa". Dessa forma, não
somente os alunos perceberão que esses valores e as regras decorrentes
são coerentes com seus projetos de felicidade como serão integrados
às suas personalidades: se respeitarão pelo fato de respeitá-los.
5
Há que se destacar, de imediato, a singularidade e a potência
de idéias simples como as de "vida boa" e "felicidade".
O que mais se quer quando se almeja a ética? No limite, poderíamos
acrescentar: a alegria e o bem-querer.
Outro dado importante refere-se ao fato de que não basta ensinar
conceitos e valores democratizantes, é preciso que eles sejam "vivificados"
no convívio intra-escolar, entre os pares da ação escolar,
especialmente entre professores e alunos. É esse, no nosso entender,
o grande diferencial, ou ponto de partida, para uma discussão abrangente
sobre a ética no terreno escolar - o que, em certo sentido, os PCNs
deixam a desejar.
Convém destacar que as reflexões aqui desenvolvidas em
torno da ética como "convívio" não se confundem
com os esforços de sistematização da ética como
"tema transversal", como se vê nos PCNs. Embora uma não
prescinda da outra, trata-se de discussões paralelas e até
certo ponto autônomas, visto que a primeira visa os dilemas imanentes
ao trabalho pedagógico lato sensu, enquanto a segunda enfoca prioritariamente
o currículo e os conteúdos escolares stricto sensu. É
sobre o primeiro eixo, ou seja, o da ética como reguladora do convívio
escolar, que pretendemos nos debruçar a partir de agora.
Se afirmamos anteriormente que o espectro ético de determinada
prática social/profissional se dá a conhecer, pelo menos em
parte, por meio das expectativas e da avaliação que a clientela
e o público mais geral (a comunidade e as famílias, por exemplo)
operam quanto à ação dos agentes/profissionais, cabe-nos
agora indagar: o que se tem pensado e dito a respeito de nós, profissionais
da educação? Estamos sendo avaliados, mesmo que informalmente,
o tempo todo, e a imagem social da escola e do professor é um bom
exemplo do vigor de tal processo. O que, então, tal imagem tem revelado
particularmente sobre a profissão docente?
Não é preciso reiterar que um nível significativo
de descrédito ronda a imagem que se cultiva de nós, tanto
quanto uma considerável desesperança que nós próprios
acalentamos sobre nosso trabalho. Em geral, conotamos essa profissão
como algo "difícil", "penoso", um campo de trabalho
povoado por obstáculos, que vão desde aqueles ligados ao reconhecimento
financeiro até aqueles de ordem metodológica, processual.
Para alguns mais insatisfeitos, chega-se à imagem da docência
como "fardo" ou até como "sina".
Duas passagens são exemplares nesse sentido: um adesivo que se
viu circular com certa freqüência nos automóveis brasileiros
que exclamava ironicamente "hei de vencer mesmo sendo professor",
e uma decisão do Congresso Nacional sobre a aposentadoria dos professores
por ocasião dos debates em torno da reforma previdenciária.
No primeiro caso, supomos, pela negativa, a profissão docente como
um investimento inviável, fadado ao insucesso. No segundo, de acordo
com nossos legisladores atuais, trata-se (nos casos do ensino fundamental
e médio - e por que não o superior?) de uma profissão
digna de aposentadoria precoce, no mesmo patamar de outras profissões
consideradas "insalubres" ou "perigosas", em que há
risco de vida mediato ou imediato. Por que será? A bem da verdade,
valeria indagar: o que acaba sendo mais inviável, perigoso ou insalubre:
a profissão mesma ou as condições de trabalho atuais?
De todo modo, vale lembrar que essa imagem não parece ser tão
arbitrária, ou mesmo maquiavelicamente "tramada", como
alguns gostam de pensar. Temos contra nós uma evidência factual:
grande parte do contingente de crianças que ingressam nas escolas
não consegue "atravessar" impunemente o ensino fundamental,
sedimentando a célebre "pirâmide" educacional brasileira.
Isto é, a repetência renitente, a evasão e a baixíssima
qualidade do ensino brasileiro findaram por constituir aquilo que alguns
teóricos, com propriedade, denominaram "cultura do fracasso
escolar".
Nesse aspecto, o trabalho escolar atual (o público com apenas
maior evidência do que o particular, embora ambos atados ao mesmo
processo) seria responsável por uma contraprodução.
Em vez de produzirmos alunos/cidadãos, estaríamos, de fato,
produzindo futuros excluídos em larga escala. Se levarmos em conta
- e temos formalmente de fazê-lo - que sem escolaridade não
há a possibilidade concreta de cidadania, e que, portanto, o que
está em jogo na produção do fracasso escolar é
uma ameaça iminente ao direito constitucional dos "oito anos
de escolaridade mínima e obrigatória", haveremos de convir
que um misto de constrangimento e perplexidade habita - ou deveria habitar
- todo aquele envolvido com o trabalho escolar.
Pois então, o que estaria acontecendo com essa instituição
secular a ponto de, na prática, invertermos seus preceitos formais?
Por que a existência extensiva de uma escola que, além de não
produzir os frutos esperados, expurga sua clientela? Mais ainda, por que
a persistência de uma escola que não consegue se democratizar
plenamente, tanto do ponto de vista do acesso/permanência da clientela
quanto do ponto de vista da qualidade dos serviços prestados? Por
que fracasso em todo canto, tanto dos excluídos quanto dos incluídos?
Do confronto cotidiano com o peso de tal realidade, algumas justificativas
para esse estado de coisas vêm sendo dadas pelos agentes escolares
em sua lida diária, especialmente pela categoria docente. É
bem verdade que atribuímos responsabilidades e, muitas vezes, chegamos
a beirar uma espécie de tese "conspiratória", como
se vê a seguir.
Interpelações ao âmbito ético
das práticas escolares
Embalados por uma perspectiva politizante, acostumamo-nos a atribuir
a suposta causa das inflexões escolares a instâncias como:
o Estado, o governo, os órgãos governamentais, os setores
burocrático-administrativos, o staff técnico da escola. Mas
não é só. Freqüentemente atribuímos a suposta
"culpa" de nossos entraves profissionais às condições
conjunturais da clientela. Aí então surgem: a sociedade, as
transformações históricas, o background cultural da
clientela, a (des)estruturação das famílias, as carências
de diferentes ordens, etc.
O processo, como já ninguém desconhece, desenrola-se mais
ou menos assim: diante das dificuldades que se apresentam no dia-a-dia,
professores culpam os alunos, que culpam os professores, que culpam os pais,
que culpam os professores, que culpam o governo, que culpa os professores,
que culpam a sociedade, e assim por diante, estabelecendo-se um círculo
vicioso e improdutivo de imputação de responsalidades sempre
a algum outro segmento envolvido.
Contudo, do "atacado" das causas abstratas ao "varejo"
dos seus efeitos concretos, uma tônica comum parece perpassar o modo
com que temos enfrentado nossos dilemas profissionais: a responsabilização
cabal da clientela pelas dificuldades conjunturais, quando não pela
inviabilidade estrutural, do trabalho pedagógico - o que se traduz
concretamente nos altíssimos e inadmissíveis níveis
de reprovação. Uma máxima muito freqüente no meio
escolar ilustra esse processo com clareza: "se o aluno aprende é
porque o professor ensina; se não aprende é porque ele apresenta
alguma defasagem ou disfunção".
Nesse enunciado estranho e, curiosamente, familiar parece residir uma
contradição lógica e uma armadilha ética. Ao
mesmo tempo em que responsabilizamos o professor pelo sucesso escolar, o
desassociamos inteiramente do fracasso. Mas, como é possível
arcarmos com apenas o efeito esperado de nossa ação e, concomitantemente,
nos desincumbirmos dos seus efeitos indesejáveis ou, no limite, colaterais?
Como é possível a coexistência de dois âmbitos
de julgamento dissociados e, em certa medida, antagônicos para a mesma
ação?
Convenhamos que esse tipo de entendimento do trabalho escolar seria algo
equivalente a uma afirmação do tipo: "o problema do médico
são os doentes", ou "o empecilho do escritor são
os leitores", ou então "o entrave do político são
os eleitores". Estranho? No caso escolar não parece sê-lo,
tamanha a naturalidade com que temos depositado na clientela grande parte
da responsabilidade sobre os nossos acidentes de percurso, os obstáculos
que permeiam o trajeto dessa profissão - o que, por sinal, não
é nenhum desprivilégio em relação a outras profissões,
posto que todas elas se definem, a rigor, como uma resposta pontual a um
determinado conjunto de problemas concretos materializado nas demandas da
clientela.
É aí, então, que a figura do "aluno-problema"
tem despontado, principalmente a partir da década de 80, como uma
justificativa nuclear (inclusive com amparo teórico) para as inflexões
do cotidiano prático do professor. E o que essa intrigante figura
sinaliza? Em geral, é aquele que não apresenta as "condições
mínimas" para o aproveitamento pedagógico ideal, ou seja,
aquele que porta algum déficit, ou mesmo um superávit, em
relação ao padrão pedagógico clássico
ou ao perfil de desenvolvimento psicológico esperado - por exemplo:
alunos limítrofes versus superdotados, imaturos versus precoces,
apáticos versus hiperativos. Em síntese: aluno-problema é
aquele acometido por alguma espécie de "distúrbio psicopedagógico".
E quais são eles?
Podem ser de ordem cognitiva (os famigerados "distúrbios
de aprendizagem") ou de ordem comportamental, e nessa última
categoria enquadra-se um grande conjunto de ações que chamamos
usualmente de "indisciplinadas". Nesse particular, o baixo rendimento
e a indisciplina dos alunos seriam como duas faces de uma mesma moeda, representando
os dois grandes males da escola contemporânea e os dois principais
entraves ao trabalho docente na atualidade.
Ora, é preciso alertar, enfaticamente, que na própria fomentação
traiçoeira dessa imagem origina-se, a nosso ver, grande parte das
"faltas" éticas testemunhadas no nosso cotidiano escolar.
Em maior ou menor grau, acabamos tomando a figura dos "alunos-problema"
como obstaculizadora ou impeditiva de nosso trabalho, quando, a rigor, poderia/deveria
funcionar como propulsora de nossa ação profissional, vetor
ético da intervenção pedagógica e ocasião
privilegiada de afirmação profissional e social do educador,
bem como de (re)potencialização institucional do contexto
escolar.
O que fazer? Talvez uma imersão crítica nos argumentos
que suportam esse tipo de raciocínio, de certa forma linear e superficial,
possa nos auxiliar sensivelmente. Um primeiro passo para reverter esse estado
de coisas exige que repensemos nossos posicionamentos, que revejamos algumas
supostas evidências sobre a clientela escolar que, no final das contas,
apenas justificam o fracasso escolar, mas não conseguem alterar os
rumos e os efeitos do nosso trabalho cotidiano.
Algumas hipóteses pelas quais se tenta explicar o baixo rendimento
e a indisciplina discente valem a pena ser enunciadas. A nosso ver elas
são, grosso modo, de três ordens:
- histórica: "ensino organizado e de boa qualidade é
para poucos, assim como o de antigamente";
- cultural: "a carência (ou a abundância) socioeconômica, logo cultural, é um impeditivo para a ação pedagógica";
- psicológica: "há necessariamente pré-requisitos morais e/ou cognitivos para o bom aproveitamento escolar".
- cultural: "a carência (ou a abundância) socioeconômica, logo cultural, é um impeditivo para a ação pedagógica";
- psicológica: "há necessariamente pré-requisitos morais e/ou cognitivos para o bom aproveitamento escolar".
Por mais que tais argumentos marquem presença constante no imaginário
pedagógico-escolar, é preciso estabelecer que eles configuram-se
como silenciosas apropriações explicativas que não
se podem sustentar por completo, nem do ponto de vista teórico, muito
menos do ponto de vista ético, uma vez que se prestam a sacramentar,
ainda que não explicitamente, a exclusão escolar. A bem da
verdade, um alinhamento ético claro em relação ao trabalho
escolar na contemporaneidade pressupõe o avesso, ou melhor, o inverso
de tais justificativas. No primeiro caso, é importante constatar
a imagem romanceada que preservamos do ensino elitizado e do cotidiano militarizado
das escolas, anterior aos anos 70 e à proliferação
das escolas privadas. Por mais que brademos o contrário, o lema "educação
para todos e de qualidade" tem-se revelado um binômio indigesto
e quase intangível na prática - e o assim chamado "fracasso
escolar" é sua mostra mais contundente e onerosa. A despeito
de intenções politicamente corretas, os protagonistas do cenário
escolar, confundindo democratização com deterioração
da escola, acostumaram-se a um raciocínio que versa algo parecido
com isso: "algo de qualidade não pode ser para todos, e se é
para todos não pode ser de qualidade". A imagem falseada que
temos da suposta excelência do ensino particular (fundamental e médio)
de hoje, em contraposição à também suposta decadência
do ensino público, é um bom exemplo dessa máxima perigosa
e absolutamente antiética.
No caso das outras duas hipóteses, é preciso enfatizar
o seguinte: não há necessariamente pré-requisitos morais
e/ou cognitivos, e muito menos econômicos e/ou culturais, para que
se atinja o aproveitamento escolar ensejado. A não ser em casos extremos
(isto é, em quadros psicóticos muito bem precisos), a ação
escolar prescinde de qualquer tipo de a priori psicológico e/ou cultural,
assim como de competências especiais para além daquelas que
uma criança/jovem em idade escolar apresenta. Se não, corremos
o risco de imaginar que o trabalho escolar deveria destinar-se a um tipo
de clientela específica e já abastada cultural e/ou cognitivamente.
Convém relembrar que não há clientela ideal (a não
ser nas expectativas dos agentes, como oposição à clientela
concreta) e que a resposta bem-sucedida ou fracassada da clientela não
é algo de véspera, mas um produto da intervenção
escolar, ou seja, das relações aí forjadas.
De mais a mais, não se pode aceitar com tanta naturalidade a tese
da existência de condutas "ilegítimas", "impróprias"
ou "desviantes" por parte da clientela. Elas serão sempre,
no limite, uma resposta ao que lhe ofertam os agentes. Decorre desse ponto
de vista que o baixo rendimento e a indisciplina dos alunos devem ser compreendidos
como efeitos sintomáticos das práticas escolares, nunca como
suas causas. Além disso, tais inflexões revelam a crise paradigmática
imanente à relação professor-aluno nesses conturbados
dias em que vivemos. Ou seja, quando não se tem clareza quanto aos
limites e possibilidades da ação escolar e, por extensão,
do seu próprio lugar como educador, a clientela passa a ser tomada
como obstáculo, empecilho, problema. Até quando isso vai persistir
no contexto escolar brasileiro?
Alguns encaminhamentos éticos para a prática
escolar
Apontamos até aqui as "faltas" éticas no interior
das práticas escolares; cabe-nos agora apontar alguns preceitos que,
no nosso entendimento, precisam ser preservados a qualquer custo na intervenção
pedagógica.
O primeiro remete às questões que envolvem a avaliação
da aprendizagem, tão presentes nas preocupações dos
educadores, bem como dos órgãos governamentais do setor. Não
é raro que encontremos alegações do tipo: "é
preciso avaliar constantemente", ou então: "se não
houver reprovação, não há ensino de verdade",
ou mais drasticamente ainda: "professor bom é aquele que reprova".
Note-se que, a partir de enunciados como estes, acabamos tomando a avaliação
(e não a ética) como reguladora da ação pedagógica.
Isto é, avaliar passa ser concebido como um direito "legal ou
moral" do professor, enquanto ser avaliado, um dever também
"legal ou moral" do aluno. Se a avaliação se naturaliza
como a estratégia dominante ou exclusiva da intervenção
pedagógica, corremos o risco de também naturalizar o fracasso
como o objeto contingencial (e inevitável, portanto) da ação
escolar. É o alto preço que se paga por transformar um encontro
que se desdobra em torno de regras construídas processualmente em
um evento balizado por normas apriorísticas, por um padrão
excessivamente normativo (e, por extensão, excludente) como é
o da avaliação escolar, tal como a conhecemos.
Cabe-nos, igualmente, questionar o que temos priorizado como foco de
nossa atuação profissional: os meandros e nuanças do
processo ensino-aprendizagem ou a avaliação dos resultados
formais? E a que se têm prestado nossas práticas avaliativas:
a confirmar os prognósticos fatalistas sobre a clientela, ou ao coroamento
do nosso trabalho docente? Mesmo porque, numa reprovação final,
algo de todos nós está sendo colocado sub judice. Portanto,
um desfocamento do afã avaliativo, além de bastante oportuno,
poderia promover uma ênfase mais nítida no dia-a-dia da sala
de aula, isto é, na "qualidade" mesma do ensino. É
no espaço "sagrado" das aulas, no instigante confronto
cotidiano entre agentes e clientela, no próprio interior da relação
professor-aluno, que a ética (ou a falta dela) presentifica-se com
maior força. O resto, e a avaliação dos resultados
aí incluída, é mera conseqüência!
Outro preceito que conviria ser lembrado é aquele referente aos
modos de relação que estabelecemos em sala de aula. Uma prática
abominável, mas muito em voga, nas escolas brasileiras é a
de "mandar o aluno para fora da sala" ou encaminhá-lo para
outras instâncias sempre que uma atitude dissonante se faz presente.
Ora, expulsá-lo da sala é mais do que um prenúncio
da exclusão que tanto nos desabona; é ela em ato! Abstenhamo-nos,
pois, desse tipo de enfrentamento excludente, e atentemos para o fundamental
diálogo com as diferenças, porque o encontro de sala de aula
é sempre movimento e diversidade, ou, em essência, confrontação.
Dessa forma, uma conduta não excludente implica o enfrentamento in
loco das divergências, a negociação, os ajustes das
demandas. Inclusão: eis a palavra imprescindível, mas tão
pouco exercitada na prática!
Uma situação exemplar nesse sentido advém de uma
afirmação que ouvimos de uma professora ainda muito jovem,
negra, de uma escola pública da periferia de São Paulo, do
período noturno. Ela prognostica enfaticamente: "se retirássemos
algumas maçãs podres, as outras não se estragariam",
ao que lhe foi proposto por nós: "já lhe ocorreu que
os negros foram considerados 'maçãs podres' um dia? E, além
disso, quem somos nós para determinar quais maçãs são
podres e quais não? Você, eu, quem?"
Assim, um posicionamento ético efetivo por parte do profissional
da educação pressupõe necessariamente um caráter
inclusivo e, de certo modo, incondicional - porque "para todos".
Desse modo, a premissa da inclusão passa a ser a regra "número
um" do educador cioso de seus deveres tanto profissionais quanto sociais.
Longe de configurar um ato de benevolência, a relação
que se deve ou pode estabelecer é de parceria, cooperação
(e, por que não dizer, de generosidade?); sempre tendo em mente,
contudo, uma disparidade estrutural que condiciona a relação
professor-aluno.
Há uma assimetria de base entre os lugares docente e discente,
a qual deve ser preservada a todo custo, posto que a partir dela se pode
exercitar a autoridade do professor. Autoridade de quem já é
um iniciado nas regras de um campo de conhecimento específico, e
que se retroalimenta ao partilhá-las de fato com outrem (sempre crivado,
é claro, pelo paradoxo do conflito e da cooperação).
Mas acaba aí sua autoridade! Ou melhor, ela restringe-se ao domínio
de um certo saber teórico-prático assim como de sua transmissibilidade
- é preferível dizer "recriação".
Um bom sinalizador dessa assimetria - ingrediente básico do encontro
entre professor e aluno - é a própria noção
de "contrato pedagógico". É importante que as "regras
do jogo" estejam razoavelmente claras para ambas as partes, e que se
limitem ao campo do conhecimento em pauta, mesmo que as cláusulas
contratuais tenham de ser relembradas ou transformadas intermitentemente.
Muitas vezes os alunos, quando transgridem, o fazem mais por desconhecimento
das (ou inconformidade às) regras implícitas do que por má-fé.
Convém repetir: regras atreladas ao funcionamento do campo de conhecimento
em foco, e, portanto, regras não morais, não genéricas,
que não ultrapassem o domínio de um "dever fazer"
específico. Alertemos mais uma vez: o resto vem por acréscimo,
por conseqüência.
Isso não significa, porém, que as regras tenham de ser
sempre idênticas, partilhadas por todos os professores indiscriminadamente,
uma vez que o campo ético dispensa configurações apriorísticas,
apontando sempre uma processualidade pontual. As condutas docente e discente
em uma aula de matemática não precisam sequer ser semelhantes
às de uma aula de literatura, já que diferentes objetos de
conhecimento estão em jogo, e, portanto, diferentes competências
estão sendo perseguidas. Mas as particularidades e exigências
funcionais de cada qual devem ser explicitadas, se possível no início
dos trabalhos. É a necessária largada do jogo, para que então
possa ser jogado com maestria, tanto por aquele que já o conhece
de perto quanto por aquele que nele está sendo iniciado. Uma vez
dentro do jogo, é muito mais difícil burlá-lo ou impugná-lo;
em verdade, raramente se almeja isto. Não obstante, é bastante
comum ouvirmos que o grupo de alunos nem sempre consegue ter uma conduta
semelhante diante das regras acordadas. O fantasma da "minoria que
sabota" parece perseguir grande parte dos educadores, inclusive aqueles
que prezam por um diálogo aberto e por um caminho construído
passo a passo. É hora, então, de rever o contrato! Se os acordos
prévios não estão sendo levados a cabo ou a contento
- mesmo que seja por uns poucos - o que estaria acontecendo? O que nos estaria
impedindo de alcançar nossos projetos? E, além disso, o que
devemos ou podemos mudar, professor e alunos? Seria mesmo o caso de rever
as regras do jogo a que nos propusemos no início dos trabalhos? Da
resposta "coletiva" a essas perguntas depende, sem dúvida,
o transcorrer e o sucesso do processo pedagógico.
Sob essa perspectiva, cada vez que o jogo é jogado trata-se, de
certa forma, de um jogo novo. Mais correto seria dizer que ele é
reapropriado sempre de um modo singular. Portanto, há que se ter,
como educador, uma certa permeabilidade à mudança e à
invenção de novas estratégias. A clientela obriga-nos
a refazer o percurso de nossa ação, sondar novas possibilidades,
experimentar. Dessa forma, a sala de aula passa a se confundir cada vez
mais com um laboratório pedagógico. O que deu certo com uma
turma certamente não persistirá com outra - o que nos torna,
de certo modo, privilegiados, visto que nos recoloca na salutar posição
de permanentes aprendizes.
É certo que competência teórica e técnica
é uma condição mesma do próprio jogo pedagógico.
Contudo, aquilo que damos conotações positivas usualmente
como "acidentes de percurso" requer, mais do que uma revisão
metodológica e/ou teórica, uma interpelação
ética: o que precisa ser preservado em minha ação?
Afinal de contas, a que ela se presta? Que mundo se vislumbra aqui e agora?
Perguntas ao mesmo tempo sutis e intrincadas, mas intransferíveis,
posto que conclamam a ética pedagógica, e tão-somente
ela, como reguladora da ação escolar. Que resposta se poderia
dar a essas questões?
A título de conclusão e como uma espécie de metáfora,
embora descontínua, de nosso trajeto até aqui, vale a pena
recordar o poeta português Fernando Pessoa. Ele esmiuça, a
partir da imagem de um jogo de xadrez, a questão do enfrentamento
ético nas ações e opções humanas, e nos
ensina como proceder, dentro ou fora das escolas.6
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! Sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
NOTAS
1 LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia.
Porto: Res, [s.d.] v.1.
2 MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São
Paulo: Melhoramentos, 1998.
3 BRASIL. Ministério de Educação e Cultural. Parâmetros
curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais,
ética. Brasília: SEF, 1997. 146 p.
4 Id. ibid., p. 69.
5 Id. ibid., p. 80.
6 PESSOA, Fernando. Obra Poética./ Org., Intr. e Notas de Maria Aliete
Galhoz. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986. O poema transcrito está em Ficções
do Interlúdio / Odes de Ricardo Reis, p. 267-9.
http://www.senac.br/BTS/251/boltec251a.htm
Obrigado pela visita, volte sempre.
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