terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Questão Ética na Educação Escolar

 

A Questão Ética na Educação Escolar


Júlio Groppa Aquino*


Júlio Groppa Aquino. A questão ética na educação escolar. O presente artigo visa à problematização da questão ética no espectro das práticas escolares, particularmente no que diz respeito à ação docente. Para tanto, propõe uma configuração inicial do tema em diferentes âmbitos da ação humana, para depois configurá-lo teoricamente, distinguindo alguns de seus matizes conceituais. Em seguida, discute a inclusão do tema no campo educacional por meio da proposição de alguns valores e preceitos mínimos no que tange à ação pedagógica e ao convívio entre os pares escolares.


*Júlio Groppa Aquino é docente da Faculdade de Educação da USP (área de Psicologia da Educação), com graduação em Psicologia pela UNESP, e mestrado e doutorado em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP.



No Brasil, a década de 80 e, em particular, a de 90 testemunharam mudanças vertiginosas no que se refere à estruturação da vida social, à ordenação do cotidiano das pessoas. Com a lenta e gradual democratização das instituições políticas, que culminou com a solidificação do processo eleitoral em todos os níveis de representação política, viu-se nascer igualmente novas formas de organização no interior das diferentes instituições sociais, antes amalgamadas de acordo com uma espécie de padrão dominante e estável de funcionamento.
A família, a mídia, o mundo do trabalho, isso é fato, não são mais os mesmos de vinte anos atrás. E, em geral, damos conotações positivas a essas transformações como algo positivo, afinal de contas, passamos a viver em um mundo mais flexível, mais democrático, ou, se se quiser, menos uniforme, menos opressivo. O mesmo pode ser dito com relação aos padrões de comportamento, de sexualidade, de consumo, de educação dos filhos, de relação entre as pessoas, etc.
Entretanto, não se pode negar que essas mesmas transformações findaram por produzir rachaduras indeléveis nos modos de funcionamento dessas instituições clássicas, e, por conseqüência, na maneira com que vínhamos concebendo os papéis e funções desses atores sociais nucleares. Todos já ouvimos, ou sentimos na própria pele, o bordão: "a crise da família", "a crise do casamento", "a crise das relações de trabalho", "a crise da democracia".
Essa idéia tão disseminada de descompasso ou desarranjo das instituições parece sinalizar um paradoxo: se, por um lado, as múltiplas e rápidas transformações sócio-históricas das últimas décadas propiciaram uma vivência civil mais democratizante e pluralista, por outro lado, elas têm sido tomadas, não raras vezes, como motivo de instabilidade e, portanto, de exasperação para esse homem de fim de século. No dia-a-dia, o que desponta, quase sempre, é um tipo de indagação comum: nos dias de hoje, o que é exatamente ser um bom pai, um bom companheiro, um bom profissional, e assim por diante?
Uma situação exemplar dessa espécie de "mal-estar" civil pode ser verificada em alguns programas televisivos em voga, já há algum tempo, nas emissoras brasileiras. Em alguns deles se vêem personagens confrontando-se com situações dilemáticas cujo desfecho é "decidido" pelo telespectador, convocado a exercer alguma coisa parecida com o "sagrado direito" do voto. Em outros, sensivelmente mais explícitos, se vêem dilemas corriqueiros da vida narrados, em ato, pelos seus próprios protagonistas, sempre enredados em algum tipo de trama confrontativa e de difícil solução imediata.
Verídicos ou não, sensacionalistas ou não, esses "shows da vida" parecem chamar a atenção de "gregos e troianos" pelo seu teor de perplexidade e comoção. Identificamo-nos com esses personagens/protagonistas sempre que eles se mostram incertos, inseguros quanto a como proceder frente às agruras de sua existência concreta, às exigências voláteis de seu lugar social. Afinal, qual a conduta sustentável ou desejável ante determinados problemas da vida contemporânea: pais às voltas com filhos rebeldes, enfermeiras e médicos diante de quadros complexos, juízes e advogados premidos por circunstâncias ambíguas, políticos assediados por propostas ilícitas, consumidores insatisfeitos com vendedores ou prestadores de serviços inescrupulosos, vizinhos em litígio aberto, relações civis permeadas por intolerância ou discriminação.
O que parece se evidenciar quando se colocam em xeque esses impasses da vida coletiva é uma demanda de "ressignificação" dos papéis e funções dos atores das diferentes instituições que estruturam e condicionam nossa vida em sociedade. Em certo sentido, pode-se afirmar que tais discussões apontam invariavelmente para a questão ética, uma vez que se referem a procedimentos, condutas e aos valores aí embutidos.
Assim, a ética é um daqueles temas que, a partir dessas duas décadas, passaram a figurar como um dos grandes eixos de preocupação e discussão entre as pessoas. Discutimo-la, por exemplo, em determinados campos sociais: a ética na política (é correto trocar votos por facilidades?, receber propinas?); a ética na ciência (é correto fabricar clones humanos?; utilizar doentes como cobaias sem a sua anuência?); a ética na religião (é correto condenar o aborto em quaisquer circunstâncias?; trocar absolvições por doações?).
Discutimo-la também em certas práticas profissionais: a ética na medicina (é correto sonegar informações ao paciente?; prolongar um tratamento visando lucro?); a ética na mídia (é correto expor tanta violência?; desvelar publicamente a intimidade das pessoas?); ou ainda, a ética no aparelho policial (é correto perseguir mais freqüentemente cidadãos negros?; atirar antes e perguntar depois?).
Para todas essas perguntas temos respostas óbvias, na ponta da língua - o que significa que, mesmo que não consigamos vislumbrar uma conduta invariavelmente ética nesses campos, pelo menos deduzimos o que deve ou pode ser feito por esses atores institucionais, assim como o que não se deve ou não se pode fazer nesses âmbitos da ação humana. Em linhas gerais, o que está em foco no enfrentamento ético de uma determinada prática social ou profissional são as fronteiras desta ação (até onde se pode chegar?) e a "qualidade" do trabalho desenvolvido (como fazê-lo?).


Sobre o conceito de ética

A despeito de se tratar de uma idéia nebulosa e, de certa forma, controvertida, mas bastante recorrente nos dias de hoje, é importante estabelecer um solo comum de significação para o termo. No dicionário especializado de Lalande a ética é entendida como "a ciência que toma por objecto imediato os juízos de apreciação sobre os actos qualificados de bons ou de maus1". Já em um dicionário comum, uma das acepções do verbete ética remete ao "conjunto de princípios morais que se devem observar no exercício de uma profissão; deontologia" (Michaelis,2).
Amparados por esses dois significados clássicos, e ao mesmo tempo divergindo deles, entendemos que se trata do valor (o para quê) e da direção (o para onde) que atribuímos a - ou subtraímos de - determinadas práticas sociais/profissionais, desde que atreladas a certos preceitos, a certas condições de funcionamento. Ou seja, certas ações humanas requerem uma razoável visibilidade, tanto por aqueles que as praticam quanto por aqueles que delas são alvo, quanto a seus princípios e fins específicos, para que, na qualidade de meios, possam ser julgadas como procedentes, ou não, legítimas, ou não, eficazes, ou não.
Nessa perspectiva, a ética pode ser compreendida inicialmente como aquilo que vetoriza determinada ação, ao ofertar-lhe uma origem e uma destinação específica. Assim, por exemplo, estamos sempre a julgar se a conduta de um profissional foi condizente com o que dele se esperava, com aquilo que ele "deveria" fazer ou ter feito. Em outras palavras, acalentamos expectativas sobre determinadas práticas (e, por extensão, sobre determinadas condutas) e as "avaliamos" de acordo com o crivo de um "dever ser" característico. É talvez por essa razão que existem códigos de ética para algumas carreiras, que sinalizam regras de conduta razoavelmente consensuais e, até certo ponto, suficientemente claras não só para o conjunto dos profissionais, mas também para os outros envolvidos.
Isso não significa que tais regras implicariam necessariamente um conjunto invariante de normas pré-programadas que deveriam ser reproduzidas ipsis litteris por cada profissional em sua ação específica, e, portanto, generalizadas para toda a categoria profissional. Mesmo porque a conduta é sempre particularizada pelas condições pontuais: a clientela é outra a cada vez e o próprio profissional é diferente a cada vez porque constantemente transformado pela própria ação.
Não obstante, é imprescindível que algumas regras comuns de conduta sejam conhecidas e praticadas pelos agentes daquela determinada prática profissional em seu exercício concreto, de tal forma que o campo de atuação seja preservado, resguardado de ações espontaneístas, não sistematizadas, e, portanto, passíveis de engodo ou ludíbrio. Desse modo conseguimos obter, principalmente como clientes ou como usuários de determinado serviço ou instituição, um pouco dessa clareza sobre a ética do agente institucional ou do profissional em questão, assim como sobre a validade da prática em foco, quando nos damos por satisfeitos com o atendimento prestado, ou, ao contrário, quando nele detectamos negligência e/ou inoperância.
Entretanto, nem sempre essa relação entre aquele que avalia e aquele que é avaliado é simétrica, ou mesmo congruente, o que pode desencadear certos equívocos. E é aí que a noção de "ética" desponta como uma espécie de árbitro da ação, no que tange à sua procedência, sua legitimidade, sua eficácia.
Nesse ponto, faz-se necessária uma distinção conceitual. O campo da ética não se confunde com o das leis, e tampouco com o da moral. Trata-se de um campo suportado por regras até certo ponto facultativas, isto é, que não exigem uma submissão inquestionável, mas um engajamento autônomo, uma assunção voluntária, na medida em que prescrevem, no máximo, pautas possíveis de convivência entre os pares de determinada ação. Tais regras não são, portanto, nem dogmáticas, como no caso da moral, nem compulsórias, como no caso das leis. Desta feita, as regras - vetores por excelência do espectro ético de determinada ação - não primam por absolutização. Elas, sempre relativas, não figuram necessariamente nem como verdadeiras nem como falsas, mas apenas funcionam ou não, podem ser obedecidas ou não, podem metamorfosear-se ou não, dependendo do contexto em que se concretizam. Trata-se de preceitos regionalizados, particularizados, nunca universais.
Os campos legal e moral, por sua vez, são mais afeitos às normas, às prescrições tácitas. Assim, os postulados morais e os legais são praticamente idênticos para todos, em detrimento do contexto específico da ação, das circunstâncias de sua execução. Pode-se dizer que, em determinado contexto sócio-histórico, eles sobrepairam, ou atravessam, o conjunto das práticas humanas indistintamente. Não matar ou não roubar, por exemplo, são, atualmente, postulados relativos a quaisquer ações humanas, e, mesmo vale lembrar, num caso limite como o da guerra. Nessa situação de conflito generalizado, pode-se dizer que é possível e necessário matar, mas apenas militares inimigos, jamais os civis. Não é essa, afinal, uma das principais razões de ser dos tribunais de guerra?
Outra diferença fundamental é que o campo da ética é muito mais mutante do que o da moral e o das leis, uma vez que se encontra em ebulição constante: julgamos "caso a caso", ponderamos "as circunstâncias", levamos em conta os "antecedentes", etc. Além disso, nem tudo o que é considerado ético hoje o será amanhã. O mesmo não se pode dizer com relação à moral e às leis. Seus preceitos nucleares persistem, são nossos velhos conhecidos.
Note-se, assim, que a violação de um postulado ético não é considerada automaticamente nem uma contravenção legal nem uma transgressão moral, mas tão-somente uma "falta", uma vez que contraria um conjunto de preceitos tomados como necessários, eficazes ou apenas positivos, "bons". Algo, pois, que teria sido "melhor" se tivesse sido de outra maneira. E isso é o máximo a que a interpelação ética pode chegar.
A propósito, de um ponto de vista psicológico, pode-se dizer que só nos tornamos alguém à medida que nos posicionamos numa relação com outrem. São relações, portanto, que nos constituem como sujeitos. Disso decorre que não se pode afirmar algo com absoluta segurança sobre Ana ou João se tomados em si mesmos, mas sobre Ana como mãe, ou como filha, como profissional, como amante, ou sobre João como amigo, como pai, como consumidor. Além disso, há que se levar necessariamente em conta o outro, parceiro compulsório da equação que nos institui como sujeito no (e do) mundo, a quem tomamos ora como objeto, oponente, modelo ou auxiliar em nossas ações. Ana só é filha em relação à sua mãe, ou profissional em relação a um cliente; João só é pai em relação a seu filho, ou consumidor em relação a um vendedor. Portanto, disso decorre que as relações/lugares institucionais passam a ser o núcleo e foco de atenção quando nos dispomos a enveredar pelo âmbito ético das práticas sociais/profissionais.
Partindo, então, do pressuposto de que toda ação implica uma parceria entre semelhantes, embora desiguais, poder-se-ia sustentar que, de um ponto de vista institucional, uma espécie de "contrato" nos entrelaça, posicionando-nos imaginariamente em relação ao nosso outro complementar, bem como delimitando nossos respectivos lugares e procedimentos, e, conseqüentemente, marcando a diferença estrutural que há entre eles. Um contrato invisível mas com uma densidade extraordinária, posto que suas cláusulas balizam silenciosamente o que fazemos e o que pensamos sobre o que fazemos. Uma espécie, enfim, de "liturgia" dos lugares, se se quiser.
Em suma: o campo da ética fundamenta-se em torno da fidelidade, ou não, às regras de um determinado "jogo" instituído/instituinte, as quais evidenciam-se, principalmente, quando o jogo é mal jogado. Uma vez bem jogado, elas submergem novamente, silenciam-se, retornam à qualidade de pressuposto básico. Um enunciado sintético talvez possa aglutinar a complexidade do conceito: ética é aquilo que, implicitamente, regula (ou deveria regular) determinada prática social/profissional para os nela envolvidos. Ou, ainda mais condensadamente, aquilo a partir do que deriva nossa confiança no outro - aquela espécie de segurança íntima e apaziguadora a que se acede quando em boa companhia.


A ética na educação escolar: do currículo ao convívio

Se, como cidadãos (ou mesmo usuários), temos experimentado o hábito de avaliar certas práticas sociais e profissionais a que estamos ligados no dia-a-dia, não se pode dizer que o mesmo venha ocorrendo explicitamente e com a mesma freqüência quando colocamos a educação escolar em pauta. Raras são as vezes em que a discussão ética é presenciada de modo explícito no campo pedagógico, principalmente entre os pares escolares - e a lacuna bibliográfica sobre o tema é uma evidência mais que suficiente do estado incipiente das discussões na área. Além disso, se a escola é uma das práticas sociais (e o trabalho pedagógico, uma das práticas profissionais) fundamentais da vida civil contemporânea, algo neles parece estar fora da ordem ou, no mínimo, em descompasso quando comparado à efervescência de outras instituições sociais.
Entretanto, é preciso reconhecer que, apesar dessa espécie de anacronismo e auto-isenção, alguns esforços concretos vêm sendo formalizados com o intuito de inaugurar um corpo de discussão sobre a questão ética na educação escolar. Estamos nos referindo aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),3 e particularmente aos "temas transversais" neles inseridos, os quais se referem a um conjunto de temáticas sociais, presentes na vida cotidiana, que deverão ser tangenciadas pelas áreas curriculares específicas, impregnando "transversalmente" os conteúdos de cada disciplina. Foram eleitos, assim, os seguintes temas gerais: ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual, além de trabalho/consumo.
Visando à formulação de um conjunto de diretrizes pedagógicas gerais e específicas capaz de nortear os currículos e seus conteúdos mínimos em escala nacional, os PCNs são, sem sombra de dúvida, uma iniciativa digna de interesse. No volume 8, dedicado à apresentação dos temas transversais e especificamente à ética, lê-se o seguinte:

Como o objetivo deste trabalho é o de propor atividades que levem o aluno a pensar sobre sua conduta e a dos outros a partir de princípios, e não de receitas prontas, batizou-se o tema de Ética /.../. Parte-se do pressuposto que é preciso possuir critérios, valores, e, mais ainda, estabelecer relações e hierarquias entre esses valores para nortear as ações em sociedade. 4

Dentro desse espírito dignificante, quatro eixos de conteúdos relativos ao tema foram selecionados, todos eles atrelados ao princípio básico de dignidade do ser humano, a saber: respeito mútuo, justiça, diálogo e solidariedade. Em que pesem as possíveis controvérsias em torno dos próprios PCNs, quanto mais da inclusão dos temas transversais nos currículos brasileiros, é necessário destacar que se trata de uma sistematização substancial, uma vez que estrutura uma série de questões imprescindíveis a serem incluídas nos planos curricular e dos conteúdos da "educação moral" dos alunos.
Não obstante, o próprio documento alude a algo, a nosso ver, inusitado. Vejamos:

Ao lado do trabalho de ensino, o convívio dentro da escola deve ser organizado de maneira que os conceitos de justiça, respeito e solidariedade sejam vivificados e compreendidos pelos alunos como aliados à perspectiva de uma "vida boa". Dessa forma, não somente os alunos perceberão que esses valores e as regras decorrentes são coerentes com seus projetos de felicidade como serão integrados às suas personalidades: se respeitarão pelo fato de respeitá-los. 5

Há que se destacar, de imediato, a singularidade e a potência de idéias simples como as de "vida boa" e "felicidade". O que mais se quer quando se almeja a ética? No limite, poderíamos acrescentar: a alegria e o bem-querer.
Outro dado importante refere-se ao fato de que não basta ensinar conceitos e valores democratizantes, é preciso que eles sejam "vivificados" no convívio intra-escolar, entre os pares da ação escolar, especialmente entre professores e alunos. É esse, no nosso entender, o grande diferencial, ou ponto de partida, para uma discussão abrangente sobre a ética no terreno escolar - o que, em certo sentido, os PCNs deixam a desejar.
Convém destacar que as reflexões aqui desenvolvidas em torno da ética como "convívio" não se confundem com os esforços de sistematização da ética como "tema transversal", como se vê nos PCNs. Embora uma não prescinda da outra, trata-se de discussões paralelas e até certo ponto autônomas, visto que a primeira visa os dilemas imanentes ao trabalho pedagógico lato sensu, enquanto a segunda enfoca prioritariamente o currículo e os conteúdos escolares stricto sensu. É sobre o primeiro eixo, ou seja, o da ética como reguladora do convívio escolar, que pretendemos nos debruçar a partir de agora.
Se afirmamos anteriormente que o espectro ético de determinada prática social/profissional se dá a conhecer, pelo menos em parte, por meio das expectativas e da avaliação que a clientela e o público mais geral (a comunidade e as famílias, por exemplo) operam quanto à ação dos agentes/profissionais, cabe-nos agora indagar: o que se tem pensado e dito a respeito de nós, profissionais da educação? Estamos sendo avaliados, mesmo que informalmente, o tempo todo, e a imagem social da escola e do professor é um bom exemplo do vigor de tal processo. O que, então, tal imagem tem revelado particularmente sobre a profissão docente?
Não é preciso reiterar que um nível significativo de descrédito ronda a imagem que se cultiva de nós, tanto quanto uma considerável desesperança que nós próprios acalentamos sobre nosso trabalho. Em geral, conotamos essa profissão como algo "difícil", "penoso", um campo de trabalho povoado por obstáculos, que vão desde aqueles ligados ao reconhecimento financeiro até aqueles de ordem metodológica, processual. Para alguns mais insatisfeitos, chega-se à imagem da docência como "fardo" ou até como "sina".
Duas passagens são exemplares nesse sentido: um adesivo que se viu circular com certa freqüência nos automóveis brasileiros que exclamava ironicamente "hei de vencer mesmo sendo professor", e uma decisão do Congresso Nacional sobre a aposentadoria dos professores por ocasião dos debates em torno da reforma previdenciária. No primeiro caso, supomos, pela negativa, a profissão docente como um investimento inviável, fadado ao insucesso. No segundo, de acordo com nossos legisladores atuais, trata-se (nos casos do ensino fundamental e médio - e por que não o superior?) de uma profissão digna de aposentadoria precoce, no mesmo patamar de outras profissões consideradas "insalubres" ou "perigosas", em que há risco de vida mediato ou imediato. Por que será? A bem da verdade, valeria indagar: o que acaba sendo mais inviável, perigoso ou insalubre: a profissão mesma ou as condições de trabalho atuais?
De todo modo, vale lembrar que essa imagem não parece ser tão arbitrária, ou mesmo maquiavelicamente "tramada", como alguns gostam de pensar. Temos contra nós uma evidência factual: grande parte do contingente de crianças que ingressam nas escolas não consegue "atravessar" impunemente o ensino fundamental, sedimentando a célebre "pirâmide" educacional brasileira. Isto é, a repetência renitente, a evasão e a baixíssima qualidade do ensino brasileiro findaram por constituir aquilo que alguns teóricos, com propriedade, denominaram "cultura do fracasso escolar".
Nesse aspecto, o trabalho escolar atual (o público com apenas maior evidência do que o particular, embora ambos atados ao mesmo processo) seria responsável por uma contraprodução. Em vez de produzirmos alunos/cidadãos, estaríamos, de fato, produzindo futuros excluídos em larga escala. Se levarmos em conta - e temos formalmente de fazê-lo - que sem escolaridade não há a possibilidade concreta de cidadania, e que, portanto, o que está em jogo na produção do fracasso escolar é uma ameaça iminente ao direito constitucional dos "oito anos de escolaridade mínima e obrigatória", haveremos de convir que um misto de constrangimento e perplexidade habita - ou deveria habitar - todo aquele envolvido com o trabalho escolar.
Pois então, o que estaria acontecendo com essa instituição secular a ponto de, na prática, invertermos seus preceitos formais? Por que a existência extensiva de uma escola que, além de não produzir os frutos esperados, expurga sua clientela? Mais ainda, por que a persistência de uma escola que não consegue se democratizar plenamente, tanto do ponto de vista do acesso/permanência da clientela quanto do ponto de vista da qualidade dos serviços prestados? Por que fracasso em todo canto, tanto dos excluídos quanto dos incluídos?
Do confronto cotidiano com o peso de tal realidade, algumas justificativas para esse estado de coisas vêm sendo dadas pelos agentes escolares em sua lida diária, especialmente pela categoria docente. É bem verdade que atribuímos responsabilidades e, muitas vezes, chegamos a beirar uma espécie de tese "conspiratória", como se vê a seguir.


Interpelações ao âmbito ético das práticas escolares

Embalados por uma perspectiva politizante, acostumamo-nos a atribuir a suposta causa das inflexões escolares a instâncias como: o Estado, o governo, os órgãos governamentais, os setores burocrático-administrativos, o staff técnico da escola. Mas não é só. Freqüentemente atribuímos a suposta "culpa" de nossos entraves profissionais às condições conjunturais da clientela. Aí então surgem: a sociedade, as transformações históricas, o background cultural da clientela, a (des)estruturação das famílias, as carências de diferentes ordens, etc.
O processo, como já ninguém desconhece, desenrola-se mais ou menos assim: diante das dificuldades que se apresentam no dia-a-dia, professores culpam os alunos, que culpam os professores, que culpam os pais, que culpam os professores, que culpam o governo, que culpa os professores, que culpam a sociedade, e assim por diante, estabelecendo-se um círculo vicioso e improdutivo de imputação de responsalidades sempre a algum outro segmento envolvido.
Contudo, do "atacado" das causas abstratas ao "varejo" dos seus efeitos concretos, uma tônica comum parece perpassar o modo com que temos enfrentado nossos dilemas profissionais: a responsabilização cabal da clientela pelas dificuldades conjunturais, quando não pela inviabilidade estrutural, do trabalho pedagógico - o que se traduz concretamente nos altíssimos e inadmissíveis níveis de reprovação. Uma máxima muito freqüente no meio escolar ilustra esse processo com clareza: "se o aluno aprende é porque o professor ensina; se não aprende é porque ele apresenta alguma defasagem ou disfunção".
Nesse enunciado estranho e, curiosamente, familiar parece residir uma contradição lógica e uma armadilha ética. Ao mesmo tempo em que responsabilizamos o professor pelo sucesso escolar, o desassociamos inteiramente do fracasso. Mas, como é possível arcarmos com apenas o efeito esperado de nossa ação e, concomitantemente, nos desincumbirmos dos seus efeitos indesejáveis ou, no limite, colaterais? Como é possível a coexistência de dois âmbitos de julgamento dissociados e, em certa medida, antagônicos para a mesma ação?
Convenhamos que esse tipo de entendimento do trabalho escolar seria algo equivalente a uma afirmação do tipo: "o problema do médico são os doentes", ou "o empecilho do escritor são os leitores", ou então "o entrave do político são os eleitores". Estranho? No caso escolar não parece sê-lo, tamanha a naturalidade com que temos depositado na clientela grande parte da responsabilidade sobre os nossos acidentes de percurso, os obstáculos que permeiam o trajeto dessa profissão - o que, por sinal, não é nenhum desprivilégio em relação a outras profissões, posto que todas elas se definem, a rigor, como uma resposta pontual a um determinado conjunto de problemas concretos materializado nas demandas da clientela.
É aí, então, que a figura do "aluno-problema" tem despontado, principalmente a partir da década de 80, como uma justificativa nuclear (inclusive com amparo teórico) para as inflexões do cotidiano prático do professor. E o que essa intrigante figura sinaliza? Em geral, é aquele que não apresenta as "condições mínimas" para o aproveitamento pedagógico ideal, ou seja, aquele que porta algum déficit, ou mesmo um superávit, em relação ao padrão pedagógico clássico ou ao perfil de desenvolvimento psicológico esperado - por exemplo: alunos limítrofes versus superdotados, imaturos versus precoces, apáticos versus hiperativos. Em síntese: aluno-problema é aquele acometido por alguma espécie de "distúrbio psicopedagógico". E quais são eles?
Podem ser de ordem cognitiva (os famigerados "distúrbios de aprendizagem") ou de ordem comportamental, e nessa última categoria enquadra-se um grande conjunto de ações que chamamos usualmente de "indisciplinadas". Nesse particular, o baixo rendimento e a indisciplina dos alunos seriam como duas faces de uma mesma moeda, representando os dois grandes males da escola contemporânea e os dois principais entraves ao trabalho docente na atualidade.
Ora, é preciso alertar, enfaticamente, que na própria fomentação traiçoeira dessa imagem origina-se, a nosso ver, grande parte das "faltas" éticas testemunhadas no nosso cotidiano escolar. Em maior ou menor grau, acabamos tomando a figura dos "alunos-problema" como obstaculizadora ou impeditiva de nosso trabalho, quando, a rigor, poderia/deveria funcionar como propulsora de nossa ação profissional, vetor ético da intervenção pedagógica e ocasião privilegiada de afirmação profissional e social do educador, bem como de (re)potencialização institucional do contexto escolar.
O que fazer? Talvez uma imersão crítica nos argumentos que suportam esse tipo de raciocínio, de certa forma linear e superficial, possa nos auxiliar sensivelmente. Um primeiro passo para reverter esse estado de coisas exige que repensemos nossos posicionamentos, que revejamos algumas supostas evidências sobre a clientela escolar que, no final das contas, apenas justificam o fracasso escolar, mas não conseguem alterar os rumos e os efeitos do nosso trabalho cotidiano.
Algumas hipóteses pelas quais se tenta explicar o baixo rendimento e a indisciplina discente valem a pena ser enunciadas. A nosso ver elas são, grosso modo, de três ordens:
- histórica: "ensino organizado e de boa qualidade é para poucos, assim como o de antigamente";
- cultural: "a carência (ou a abundância) socioeconômica, logo cultural, é um impeditivo para a ação pedagógica";
- psicológica: "há necessariamente pré-requisitos morais e/ou cognitivos para o bom aproveitamento escolar".

Por mais que tais argumentos marquem presença constante no imaginário pedagógico-escolar, é preciso estabelecer que eles configuram-se como silenciosas apropriações explicativas que não se podem sustentar por completo, nem do ponto de vista teórico, muito menos do ponto de vista ético, uma vez que se prestam a sacramentar, ainda que não explicitamente, a exclusão escolar. A bem da verdade, um alinhamento ético claro em relação ao trabalho escolar na contemporaneidade pressupõe o avesso, ou melhor, o inverso de tais justificativas. No primeiro caso, é importante constatar a imagem romanceada que preservamos do ensino elitizado e do cotidiano militarizado das escolas, anterior aos anos 70 e à proliferação das escolas privadas. Por mais que brademos o contrário, o lema "educação para todos e de qualidade" tem-se revelado um binômio indigesto e quase intangível na prática - e o assim chamado "fracasso escolar" é sua mostra mais contundente e onerosa. A despeito de intenções politicamente corretas, os protagonistas do cenário escolar, confundindo democratização com deterioração da escola, acostumaram-se a um raciocínio que versa algo parecido com isso: "algo de qualidade não pode ser para todos, e se é para todos não pode ser de qualidade". A imagem falseada que temos da suposta excelência do ensino particular (fundamental e médio) de hoje, em contraposição à também suposta decadência do ensino público, é um bom exemplo dessa máxima perigosa e absolutamente antiética.
No caso das outras duas hipóteses, é preciso enfatizar o seguinte: não há necessariamente pré-requisitos morais e/ou cognitivos, e muito menos econômicos e/ou culturais, para que se atinja o aproveitamento escolar ensejado. A não ser em casos extremos (isto é, em quadros psicóticos muito bem precisos), a ação escolar prescinde de qualquer tipo de a priori psicológico e/ou cultural, assim como de competências especiais para além daquelas que uma criança/jovem em idade escolar apresenta. Se não, corremos o risco de imaginar que o trabalho escolar deveria destinar-se a um tipo de clientela específica e já abastada cultural e/ou cognitivamente. Convém relembrar que não há clientela ideal (a não ser nas expectativas dos agentes, como oposição à clientela concreta) e que a resposta bem-sucedida ou fracassada da clientela não é algo de véspera, mas um produto da intervenção escolar, ou seja, das relações aí forjadas.
De mais a mais, não se pode aceitar com tanta naturalidade a tese da existência de condutas "ilegítimas", "impróprias" ou "desviantes" por parte da clientela. Elas serão sempre, no limite, uma resposta ao que lhe ofertam os agentes. Decorre desse ponto de vista que o baixo rendimento e a indisciplina dos alunos devem ser compreendidos como efeitos sintomáticos das práticas escolares, nunca como suas causas. Além disso, tais inflexões revelam a crise paradigmática imanente à relação professor-aluno nesses conturbados dias em que vivemos. Ou seja, quando não se tem clareza quanto aos limites e possibilidades da ação escolar e, por extensão, do seu próprio lugar como educador, a clientela passa a ser tomada como obstáculo, empecilho, problema. Até quando isso vai persistir no contexto escolar brasileiro?


Alguns encaminhamentos éticos para a prática escolar

Apontamos até aqui as "faltas" éticas no interior das práticas escolares; cabe-nos agora apontar alguns preceitos que, no nosso entendimento, precisam ser preservados a qualquer custo na intervenção pedagógica.
O primeiro remete às questões que envolvem a avaliação da aprendizagem, tão presentes nas preocupações dos educadores, bem como dos órgãos governamentais do setor. Não é raro que encontremos alegações do tipo: "é preciso avaliar constantemente", ou então: "se não houver reprovação, não há ensino de verdade", ou mais drasticamente ainda: "professor bom é aquele que reprova". Note-se que, a partir de enunciados como estes, acabamos tomando a avaliação (e não a ética) como reguladora da ação pedagógica. Isto é, avaliar passa ser concebido como um direito "legal ou moral" do professor, enquanto ser avaliado, um dever também "legal ou moral" do aluno. Se a avaliação se naturaliza como a estratégia dominante ou exclusiva da intervenção pedagógica, corremos o risco de também naturalizar o fracasso como o objeto contingencial (e inevitável, portanto) da ação escolar. É o alto preço que se paga por transformar um encontro que se desdobra em torno de regras construídas processualmente em um evento balizado por normas apriorísticas, por um padrão excessivamente normativo (e, por extensão, excludente) como é o da avaliação escolar, tal como a conhecemos.
Cabe-nos, igualmente, questionar o que temos priorizado como foco de nossa atuação profissional: os meandros e nuanças do processo ensino-aprendizagem ou a avaliação dos resultados formais? E a que se têm prestado nossas práticas avaliativas: a confirmar os prognósticos fatalistas sobre a clientela, ou ao coroamento do nosso trabalho docente? Mesmo porque, numa reprovação final, algo de todos nós está sendo colocado sub judice. Portanto, um desfocamento do afã avaliativo, além de bastante oportuno, poderia promover uma ênfase mais nítida no dia-a-dia da sala de aula, isto é, na "qualidade" mesma do ensino. É no espaço "sagrado" das aulas, no instigante confronto cotidiano entre agentes e clientela, no próprio interior da relação professor-aluno, que a ética (ou a falta dela) presentifica-se com maior força. O resto, e a avaliação dos resultados aí incluída, é mera conseqüência!
Outro preceito que conviria ser lembrado é aquele referente aos modos de relação que estabelecemos em sala de aula. Uma prática abominável, mas muito em voga, nas escolas brasileiras é a de "mandar o aluno para fora da sala" ou encaminhá-lo para outras instâncias sempre que uma atitude dissonante se faz presente. Ora, expulsá-lo da sala é mais do que um prenúncio da exclusão que tanto nos desabona; é ela em ato! Abstenhamo-nos, pois, desse tipo de enfrentamento excludente, e atentemos para o fundamental diálogo com as diferenças, porque o encontro de sala de aula é sempre movimento e diversidade, ou, em essência, confrontação. Dessa forma, uma conduta não excludente implica o enfrentamento in loco das divergências, a negociação, os ajustes das demandas. Inclusão: eis a palavra imprescindível, mas tão pouco exercitada na prática!
Uma situação exemplar nesse sentido advém de uma afirmação que ouvimos de uma professora ainda muito jovem, negra, de uma escola pública da periferia de São Paulo, do período noturno. Ela prognostica enfaticamente: "se retirássemos algumas maçãs podres, as outras não se estragariam", ao que lhe foi proposto por nós: "já lhe ocorreu que os negros foram considerados 'maçãs podres' um dia? E, além disso, quem somos nós para determinar quais maçãs são podres e quais não? Você, eu, quem?"
Assim, um posicionamento ético efetivo por parte do profissional da educação pressupõe necessariamente um caráter inclusivo e, de certo modo, incondicional - porque "para todos". Desse modo, a premissa da inclusão passa a ser a regra "número um" do educador cioso de seus deveres tanto profissionais quanto sociais. Longe de configurar um ato de benevolência, a relação que se deve ou pode estabelecer é de parceria, cooperação (e, por que não dizer, de generosidade?); sempre tendo em mente, contudo, uma disparidade estrutural que condiciona a relação professor-aluno.
Há uma assimetria de base entre os lugares docente e discente, a qual deve ser preservada a todo custo, posto que a partir dela se pode exercitar a autoridade do professor. Autoridade de quem já é um iniciado nas regras de um campo de conhecimento específico, e que se retroalimenta ao partilhá-las de fato com outrem (sempre crivado, é claro, pelo paradoxo do conflito e da cooperação). Mas acaba aí sua autoridade! Ou melhor, ela restringe-se ao domínio de um certo saber teórico-prático assim como de sua transmissibilidade - é preferível dizer "recriação". Um bom sinalizador dessa assimetria - ingrediente básico do encontro entre professor e aluno - é a própria noção de "contrato pedagógico". É importante que as "regras do jogo" estejam razoavelmente claras para ambas as partes, e que se limitem ao campo do conhecimento em pauta, mesmo que as cláusulas contratuais tenham de ser relembradas ou transformadas intermitentemente. Muitas vezes os alunos, quando transgridem, o fazem mais por desconhecimento das (ou inconformidade às) regras implícitas do que por má-fé. Convém repetir: regras atreladas ao funcionamento do campo de conhecimento em foco, e, portanto, regras não morais, não genéricas, que não ultrapassem o domínio de um "dever fazer" específico. Alertemos mais uma vez: o resto vem por acréscimo, por conseqüência.
Isso não significa, porém, que as regras tenham de ser sempre idênticas, partilhadas por todos os professores indiscriminadamente, uma vez que o campo ético dispensa configurações apriorísticas, apontando sempre uma processualidade pontual. As condutas docente e discente em uma aula de matemática não precisam sequer ser semelhantes às de uma aula de literatura, já que diferentes objetos de conhecimento estão em jogo, e, portanto, diferentes competências estão sendo perseguidas. Mas as particularidades e exigências funcionais de cada qual devem ser explicitadas, se possível no início dos trabalhos. É a necessária largada do jogo, para que então possa ser jogado com maestria, tanto por aquele que já o conhece de perto quanto por aquele que nele está sendo iniciado. Uma vez dentro do jogo, é muito mais difícil burlá-lo ou impugná-lo; em verdade, raramente se almeja isto. Não obstante, é bastante comum ouvirmos que o grupo de alunos nem sempre consegue ter uma conduta semelhante diante das regras acordadas. O fantasma da "minoria que sabota" parece perseguir grande parte dos educadores, inclusive aqueles que prezam por um diálogo aberto e por um caminho construído passo a passo. É hora, então, de rever o contrato! Se os acordos prévios não estão sendo levados a cabo ou a contento - mesmo que seja por uns poucos - o que estaria acontecendo? O que nos estaria impedindo de alcançar nossos projetos? E, além disso, o que devemos ou podemos mudar, professor e alunos? Seria mesmo o caso de rever as regras do jogo a que nos propusemos no início dos trabalhos? Da resposta "coletiva" a essas perguntas depende, sem dúvida, o transcorrer e o sucesso do processo pedagógico.
Sob essa perspectiva, cada vez que o jogo é jogado trata-se, de certa forma, de um jogo novo. Mais correto seria dizer que ele é reapropriado sempre de um modo singular. Portanto, há que se ter, como educador, uma certa permeabilidade à mudança e à invenção de novas estratégias. A clientela obriga-nos a refazer o percurso de nossa ação, sondar novas possibilidades, experimentar. Dessa forma, a sala de aula passa a se confundir cada vez mais com um laboratório pedagógico. O que deu certo com uma turma certamente não persistirá com outra - o que nos torna, de certo modo, privilegiados, visto que nos recoloca na salutar posição de permanentes aprendizes.
É certo que competência teórica e técnica é uma condição mesma do próprio jogo pedagógico. Contudo, aquilo que damos conotações positivas usualmente como "acidentes de percurso" requer, mais do que uma revisão metodológica e/ou teórica, uma interpelação ética: o que precisa ser preservado em minha ação? Afinal de contas, a que ela se presta? Que mundo se vislumbra aqui e agora? Perguntas ao mesmo tempo sutis e intrincadas, mas intransferíveis, posto que conclamam a ética pedagógica, e tão-somente ela, como reguladora da ação escolar. Que resposta se poderia dar a essas questões?
A título de conclusão e como uma espécie de metáfora, embora descontínua, de nosso trajeto até aqui, vale a pena recordar o poeta português Fernando Pessoa. Ele esmiuça, a partir da imagem de um jogo de xadrez, a questão do enfrentamento ético nas ações e opções humanas, e nos ensina como proceder, dentro ou fora das escolas.6

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...

O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! Sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.


NOTAS

1 LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Porto: Res, [s.d.] v.1.
2 MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.
3 BRASIL. Ministério de Educação e Cultural. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Brasília: SEF, 1997. 146 p.
4 Id. ibid., p. 69.
5 Id. ibid., p. 80.
6 PESSOA, Fernando. Obra Poética./ Org., Intr. e Notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986. O poema transcrito está em Ficções do Interlúdio / Odes de Ricardo Reis, p. 267-9.
 

http://www.senac.br/BTS/251/boltec251a.htm

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