terça-feira, 2 de julho de 2019

Por que deixamos de escrever? E por que devemos voltar a escrever? Por RODRIGO GURGEL 1 fevereiro, 2018


Por que deixamos de escrever? E por que devemos voltar a escrever?

Por que deixamos de escrever? Por que deixamos de escrever se, todos os dias, arrastamos nossas ideias através do ócio, às vezes perfurando com elas o cilindro frio que nos separa da realidade? Avançamos sempre sem escrever, apesar do desejo sincero de colocar no papel o que pensamos, não necessariamente um poema ou uma história. Seria fácil definir esse comportamento como um tipo de inércia, mas tal solução esconderia o que se encontra no substrato do problema: a insegurança, a incerteza que temos em relação ao valor dos nossos pensamentos.
É compreensível que seja assim. Não fomos educados para dialogar com nós mesmos, no silêncio, na solidão. E não fomos educados para, dispostos ao diálogo interior, vencer a timidez ou a resistência daquela parte do nosso eu que duvida de nós mesmos. Mas como saber se o que tenho a dizer possui alguma relevância? Por que minha opinião seria importante numa época em que todos consideram suas opiniões não só importantes, mas imprescindíveis?
Aqui reside a melhor aventura: não temos respostas para essas perguntas. Mas a solução é tão simples quanto complexa.
Por que deixamos de escrever?
Samuel Pepys
Complexa porque superar hesitações exige um encontro diário com nosso eu — um exercício de autoconhecimento, uma visita a cômodos mofados, onde nem sempre descobrimos coisas agradáveis ou alegres. Além disso, nossa verdadeira opinião, o que realmente pensamos a respeito de tudo, incluindo os mínimos eventos do cotidiano, nem sempre se revela na primeira frase. Muitas vezes, quanto mais avançamos em nossas reflexões, mais descobrimos que nossa conclusão, nossas certezas são exatamente opostas àquelas que imaginávamos ter. Trinta linhas depois do primeiro argumento, do primeiro juízo, não somos mais aquela pessoa, a investigação sincera do nosso eu, da nossa vontade, nos conduziu a uma conclusão inesperada e, no entanto, mais verdadeira.
Simples por um motivo que corremos sempre o risco de esquecer: se não temos respostas para as perguntas acima, então a melhor resposta é escrever. Escrever sem esperar o julgamento dos nossos contemporâneos — escrever porque temos necessidade de escrever. Escrever porque esse ato é uma continuidade do nosso ser, da mesma forma que respiramos, estendemos a mão para apertar o botão do micro-ondas e damos o primeiro passo assim que levantamos da cama.

Pepys, Hofmannsthal e Leopardi

Imaginem se, a cada linha, o escritor fizesse o julgamento implacável não do seu texto, mas das suas motivações para escrever, dos seus temas. O que aconteceria? Com absoluta certeza, a história da literatura universal, incluindo os diários, cartas e autobiografias, ficaria reduzida a um pobre volume.
Se Samuel Pepys tivesse se deixado dominar pela incerteza em relação ao valor das suas simples atividades cotidianas, não teríamos seu diário, uma fonte inigualável para entender o período da Restauração Inglesa, escrita num tom franco, que nos confirma, a cada página, que nenhuma vida se esgota na mesmice — e quem pensa o contrário precisa rever, com urgência, sua concepção de humanidade. Uma década na vida de Pepys, o tempo que dura seu diário, é a prova de que nossas inseguranças — em relação à importância de nossas opiniões e de nossos escritos — podem ser irrelevantes. E quase sempre são.
Dedicar-se, de antemão, a um gênero literário específico também pode ser motivo de estagnação. Podemos começar a romper nosso angustiado ócio mantendo um caderno em que anotamos uma miscelânea de observações, compilando notas de leitura, comentários diversos, notícias inesperadas ou decepcionantes, insights a respeito de tudo que possa merecer nossa atenção. Um memorando não só das nossas opiniões pessoais, mas do que nossa época despreza ou alardeia — um retrato, em breves notas, a respeito de tudo o que nos parece insano, curioso, empolgante, inaceitável. Um zibaldone como o de alguns comerciantes venezianos do século XIV, em que é possível encontrar de fórmulas medicinais a canções, de uma relação de impostos pagos a breves comentários sobre poetas. Ou trechos, de nossas leituras, que gostaríamos de usar no futuro — algo semelhante aos commonplace books que John Milton, Francis Bacon ou W. H. Auden mantinham.
Por que deixamos de escrever?
Giacomo Leopardi
Hugo von Hofmannsthal escreveu, nesse estilo, seu Livro dos Amigos, conjunto de brevíssimos textos, a maior parte de sua autoria, que se assemelha a uma coletânea de aforismos. Giacomo Leopardielevou esse modelo ao seu próprio Zibaldone, um “laboratório poético e filosófico”, como o definiu Marco Lucchesi. Se Leopardi tivesse sido dominado pela dúvida a respeito da relevância de seus pensamentos, se permanecesse paralisado pela indecisão, não teríamos essa coleção de impressões pessoais — e muito do que o pensamento ocidental ainda promete à nossa sensibilidade, à nossa inteligência, estaria perdido. Leopardi, aliás, não se deixou submeter nem mesmo pelo Mal de Pott, que o condenou, desde a juventude, a dores e inúmeras formas de degradação.
A vida inteira cabe em nossas anotações — e estas, jamais saberemos o quanto, podem garantir conhecimento e inspiração às gerações futuras. Não devemos ter medo de nossa opinião — e, muito menos, de sermos prolíficos. Com algum esforço, conseguimos enxergar centenas de pormenores que passam despercebidos à maioria das pessoas — e dez anos escrevendo notas num ônibus sujo e enferrujado, que somos obrigados a tomar para ir ao emprego, podem se converter num relatório perturbador da vida urbana, um recurso para historiadores e antropólogos se perguntarem por que houve uma época na qual os homens aceitavam passivamente gastar horas de sua vida no desconforto.
Tudo merece nossa atenção. Tudo merece ser preservado pela escrita. Não há nenhum traço da experiência humana que deva ser esquecido. Se nosso cotidiano pode nos oferecer milhares de pequenas epifanias, se a vida está sempre nos surpreendendo, imaginem o que podem fazer por nós os escritos daqueles que não só viveram, mas guardaram suas impressões para o futuro.

Sou crítico literário — e professor de literatura e escrita criativa. Escrevi dois livros: Esquecidos & Superestimados e Muita retórica — Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha). Neles, faço uma revisão crítica dos principais prosadores da literatura brasileira. Minha Oficina de Escrita Criativa, com turmas semestrais, acontece em São Paulo (SP). Publico resenhas e ensaios no Jornal Rascunho e na Folha de S. Paulo.


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