Disciplinas e Interdisciplinaridade
Ilustração: Michele Iacocca |
Há décadas professores e educadores em geral procuram formas de superar a fragmentação do conhecimento provocada pelo olhar acadêmico disciplinar na Educação Básica (Educação Infantil, Fundamental e Ensino Médio). No segmento de 5ª a 8ª série e no Ensino Médio essa fragmentação se torna ainda mais profunda, com professores de formações e visões educativas diferentes trabalhando com os mesmos alunos. Superar essa fragmentação, tornando a aprendizagem um processo significativo para crianças e jovens, é um desafio que procuramos superar em nosso cotidiano de sala de aula.
Quais as condições necessárias para encarar tal desafio? Como podemos planejar e desenvolver nossas práticas educativas de modo a superar, ainda que parcialmente, a fragmentação do conhecimento? Como evitar a velha pergunta "professor, por que eu preciso aprender isso?", tantas vezes ouvida por nós professores, tantas vezes formulada por nós mesmos no tempo em que éramos alunos? Como superar a fragmentação do conhecimento em uma instituição escolar cujo horário de funcionamento é um reflexo dessa própria fragmentação?
:: Conhecimento científico e conhecimento escolar
Para responder a essas questões devemos começar fazendo uma distinção importante: diferenciar as finalidades entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar. Para o estudante as disciplinas acadêmicas "não devem ser o objeto de estudo, mas sim o meio para obter o conhecimento da realidade".
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabelece que a educação básica deve assegurar ao educando "formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores". Para que essa formação se concretize, a mesma LDB estabelece, nas finalidades do Ensino Médio, "a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando teoria com a prática, no ensino de cada disciplina".
Estes trechos da LDB foram escolhidos para dar início a uma reflexão sobre o papel das disciplinas científicas na educação básica do estudante. Essa reflexão é necessária por um motivo que não pode deixar de ser considerado desde o início: as universidades brasileiras escolhem seus estudantes por meio de uma prova de seleção que tem como conteúdos principais os conhecimentos próprios das disciplinas científicas. As provas que constituem os vestibulares exigem que os estudantes tenham conhecimentos próprios das disciplinas acadêmicas, em um nível de detalhe muito exagerado. Essa hipertrofia dos conhecimentos disciplinares acadêmicos tornou-se uma imposição que se reflete em todo Ensino Médio, chegando mesmo às séries finais do Ensino Fundamental. A principal conseqüência desse processo é a confusão que se estabelece entre as finalidades do conhecimento científico e as finalidades do conhecimento escolar.
De acordo com o texto da LDB, um cidadão que termina a Educação Básica deve ter a capacidade não só de compreender os fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, mas também, de aprimorar-se como pessoa humana, incluindo [...] o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. Ou seja, ao terminar a Educação Básica, o educando deve ter autonomia para, compreendendo os fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos, posicionar-se criticamente com relação aos investimentos em ciência e tecnologia que o país faz, utilizando os recursos conseguidos por meio dos impostos. No entanto, a hipertrofia dos conhecimentos disciplinares promovida pelos exames vestibulares, impede que a Educação Básica cumpra sua real tarefa.
"Você é capaz de visualizar imagens? Então pense no senso comum como as pessoas comuns. E a ciência? Tome esta pessoa comum e hipertrofie um dos seus órgãos, atrofiando os outros. Olhos enormes, nariz e ouvidos diminutos. A Ciência é uma metamorfose do senso comum. Sem ele, ela não pode existir. E esta á a razão por que não existe nela nada de misterioso ou extraordinário".
:: Educação unificadora ou fragmentária
Ilustração: Luiz Maia |
Já na antiga Grécia, os filósofos se preocupavam com uma educação que fosse unificadora dos conhecimentos, procurando o desenvolvimento do indivíduo como um todo. Essa tradição se manteve até o surgimento da Ciência moderna. A partir do século XVIII, com o desenvolvimento da Física, da Química e da Biologia, começa a haver uma preocupação em distinguir o que seriam as ciências naturais dos conhecimentos ligados às produções humanas.
"Essa unidade de conhecimentos é quebrada definitivamente quanto Napoleão, em 1808, organiza o sistema de ensino da França criando a Universidade Imperial, na qual pela primeira vez na história diferenciam-se as faculdades de letras e as faculdades de ciências. Essa concepção estende-se a todo o mundo ocidental, formando, assim, uma diversificação intelectual ao criar a necessidade entre os alunos de escolher entre a cultura literária e a cultura científica, já que cada uma dessas culturas é separada da outra. Tal compartimentação do saber provoca o seguinte: um setor considerável do campo epistemológico é construído como se o outro não existisse".
Essa divisão do conhecimento em dois campos distintos repercutiu na educação dos jovens muito intensamente. Para se ter uma idéia, até o ano de 1971, no Brasil, havia dois cursos que correspondiam ao atual ensino médio, seus nomes eram Clássico e Científico. A escolha entre um ou outro era feita em função da carreira profissional que o estudante almejava. Escolhia o Clássico quem pretendia fazer Letras, Direito, Sociologia e áreas afins. Escolhia o Científico quem ia estudar Engenharia, Medicina, Física, Biologia, etc.
Atualmente, a educação escolar vive um dilema: precisa se transformar para atender as reais necessidades de formação dos cidadãos brasileiros, cumprir sua finalidade de assegurar ao educando formação indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Porém, é compelida a manter uma rotina de aulas expositivas voltadas a conteúdos que são determinados quase imperiosamente pelas disciplinas acadêmicas. Há uma identificação entre conhecimentos escolares e conhecimentos científicos, quando, a rigor, estes últimos deveriam se constituir a fonte e o meio para a compreensão da realidade.
Apesar dos grandes esforços empreendidos pela sociedade brasileira com relação à democratização da educação escolar, esta tem ocorrido apenas no que diz respeito ao ingresso à escola. Podemos dizer que no Brasil, atualmente, 97% das crianças em idade escolar conseguem ingressar no sistema educacional. No entanto, essa possibilidade de ingresso não se concretiza em formação escolar, pois a maior parte dos alunos que inicia a 1ª série do ensino fundamental não chega a terminá-lo.
Esse enorme desastre tem como uma de suas principais causas o fato de que, apesar de permitir a entrada de todos, a escola continua funcionando de acordo com a mesma concepção de educação que possuía em décadas anteriores: o ensino praticado em nossas escolas continua sendo propedêutico e seletivo.
Ensino propedêutico é aquele organizado com o único objetivo de levar o aluno a um nível mais adiantado. É sempre um ensino preparatório. A educação infantil prepara para o ensino fundamental que, por sua vez, prepara para o ensino médio. Este prepara para a universidade.
Ensino seletivo é aquele voltado à escolha dos melhores. Os que conseguem fazer as provas, os que conseguem aprender sem precisar de ajuda específica, os que já vêm "preparados de casa".
Nossa escola atual não pode selecionar quem entra, mas seleciona quem pode ficar. Fica quem tem condições de agüentar o difícil caminho de aprender os conteúdos científicos tornados uma quantidade enorme de informações. Uma escola na qual aprender é quase sempre sinônimo de "ter decorado".
Ilustração: Luiz Maia |
Essa escola continua, portanto, seletiva e propedêutica, porém, suas finalidades (ao menos em intenção) mudaram, ela precisa ser uma escola democrática. Uma escola que, além de preparar os cidadãos para a vida democrática, seja o principal agente de democratização do saber em nossa sociedade.
A construção de uma escola democrática passa, necessariamente, pelo rompimento com essa visão "seletiva e propedêutica", e uma das formas de empreender essa construção é desenvolver um ensino interdisciplinar. Um ensino no qual as atividades de aprendizagem dêem prioridade à capacidade de pensar os problemas reais que afligem a sociedade, problemas esses que não pertencem a uma disciplina específica e que para serem resolvidos precisam dos conhecimentos científicos disciplinares.
Falando de forma mais direta. No ensino de ciências da natureza devemos valorizar o aluno que sabe a lista de raízes comestíveis de cor, ou o aluno que ao ver uma mandioca se pergunta "Isso é uma raiz ou um caule? Em que fonte de informação eu poderia tirar essa dúvida?"
O ensino interdisciplinar deve ser uma preocupação permanente em todas as atividades propostas pelos professores a seus alunos. Para isso, é importante ter claro as diversas relações que podemos estabelecer entre os conhecimentos das diversas disciplinas acadêmicas: Lingüística, Literatura, Matemática, Biologia, Física, Química, Astronomia, Astrofísica, Geologia, Geografia, História etc.
"No campo do ensino, pode-se dizer que:
- A multidisciplinaridade é a organização de conteúdos mais tradicional. Os conteúdos escolares apresentam-se por matérias independentes umas das outras. As cadeiras ou disciplinas são propostas simultaneamente sem que se manifestem explicitamente as relações que possam existir entre elas. [...]
- A pluridisciplinaridade é a existência de relações complementares entre disciplinas mais ou menos afins. É o caso das contribuições mútuas das diferentes "histórias" (da ciência, da arte, da literatura, etc.) ou das relações entre diferentes disciplinas das ciências experimentais. A constituição dos diferentes departamentos do ensino médio é um possível exemplo de pluridisciplinaridade.
- A interdisciplinaridade é a interação de duas ou mais disciplinas. Essas interações podem implicar transferências de leis de uma disciplina a outra, originando, em alguns casos, um novo corpo disciplinar, como, por exemplo, a bioquímica ou a psicolingüística. Podemos encontrar essa concepção nas áreas de ciências sociais e experimentais no ensino médio e na área de conhecimento do meio do ensino fundamental.
- A transdisciplinaridade é o grau máximo de relações entre disciplinas, de modo que chega a ser uma integração global dentro de um sistema totalizador. Esse sistema facilita uma unidade interpretativa, com o objetivo de construir uma ciência que explique a realidade sem fragmentações. Atualmente, trata-se mais de um desejo do que de uma realidade. De alguma maneira, seria o propósito da filosofia. Dentro dessa concepção, e descontando as distâncias, poderíamos situar o papel das áreas de educação infantil, em que uma aproximação global de caráter psicopedagógico determina algumas relações de conteúdos com pretensões integradoras.
- A metadisciplinaridade, como dissemos, não implica nenhuma relação entre disciplinas. Ela se refere ao ponto de vista ou à perspectiva sobre qualquer situação ou objeto, mas não é condicionada por apriorismos disciplinares. Na escola, deveríamos entende-la como a ação de se aproximar dos objetos de estudo a partir de uma ótica global que tenta reconhecer sua essência e na qual as disciplinas não são o ponto de partida, mas sim o meio de que dispomos para conhecer uma realidade que é global ou holística. De alguma maneira, podemos situar nessa visão os denominado eixos ou temas transversais."
Edição: Equipe EducaRede
Fonte:http://www.educarede.org.br/educa/index.cfm?pg=oassuntoe.interna&id_tema=12&id_subtema=1
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