O QUE É REDUCIONISMO?
Popularmente, reducionismo, ou
reducionista em sua forma adjetivada, é uma acusação frequente nos
discursos e críticas no meio acadêmico. É usado muitas vezes sem
critério, sem conhecimento de causa, e geralmente de forma pejorativa
para atacar teorias adversárias. É o que ocorre frequentemente nos cursos de psicologia quando fazem afirmações MUITO rasas, dizendo, por exemplo:
“― A psicanálise reduz tudo a sexo!”
ou…
“― Os behavioristas querem reduzir toda complexidade das atividades humanas a simples respostas a estímulos.”
Mas talvez nenhuma seja tão criticada como a neurociência que
“…reduz tudo a ligações físico-químicas.”
Uma resposta contra essas declarações mal
fundamentadas, que apontam um ou outro como reducionista, depende de um
conhecimento mais profundo sobre essas abordagens, o que não é a
finalidade deste artigo. Mas voltaremos a tratar da neurociência como
exemplo ao fim de nossa análise.
Mas, além desse seu uso popular, o que é reducionismo mesmo?
Num exame mais detalhado, identificamos
diferentes tipos de reducionismo dependendo do que se refere:
reducionismo ontológico, reducionismo teórico, reducionismo semântico
etc. Grosso modo, por reducionismo entendemos diferentes teorias que
afirmam que objetos, fenômenos, teorias ou significados complexos podem
ser sempre reduzidos, ou seja, expresso em unidades diferentes a fim de
explicá-los, a suas partes constituintes mais simples. Mas, por ora,
serve pra gente focar a diferença entre dois modos de se falar sobre
reducionismo, de uma maneira mais científica, além da forma usual já
citada acima. Podemos falar do reducionismo como: i) concepção
filosófica e ii) programa de investigação científica.
O reducionismo como concepção filosófica se refere à tese fisicalista¹
que sustenta que toda realidade, em última análise, é determinada por
fatos físicos, ou melhor, leis da física. Ou seja, a linguagem da
Física² deverá ser a linguagem de toda a ciência, pois os fatos dos
quais a ciência trata são de um mesmo tipo ou, pelo menos, podem ser
decompostos em fatos de um mesmo tipo. Essa abordagem já era adotada a
princípio, de forma rudimentar, pelos filósofos jônicos quando reduziam
os fenômenos naturais a elementos básicos. Mas o fisicalismo
propriamente dito só foi consolidado a partir de Galileu, Descartes e
Newton. Nessa época, a física era a ciência que unificava todas as
outras. Os fisicalistas sustentavam que o problema da explicação de um
sistema estava resolvido assim que o sistema fosse reduzido aos seus
menores componentes. Tão logo se completasse o inventário de tais
componentes e se determinasse a função de cada um, afirmavam que seria
uma tarefa fácil explicar também tudo o que fosse observado em níveis
superiores de organização.
Essa concepção sustenta um programa de investigação científica.
Reduzir a realidade estudada apenas a alguns poucos de seus aspectos
revela que esta metodologia reducionista foi capaz historicamente de
suscitar um avanço do conhecimento e que, portanto, ela tem grande valor
epistemológico. Na realidade, grande parte de nossas descrições e
investigações se dão de forma a isolar diferentes aspectos do objeto
estudado ou descrito. Separar, isolar, classificar etc. é um recurso
para o conhecimento humano.
O fisicalismo e a tarefa de empreender a
análise em níveis cada vez mais inferiores foram relevantes durante
bastante tempo. O anatomista não estudava o corpo como um todo, mas
tentava entender seu funcionamento dissecando-o em seus componentes,
órgãos, nervos músculos e ossos. O objetivo da microscopia era estudar
componentes cada vez menores de tecidos e células. Grande parte da
história da ciência é um relato dos triunfos dessa abordagem analítica.
A crença reconfortante numa ciência
unificada em torno das leis da física se tornou cada vez mais difícil de
sustentar com o advento da biologia e o desenvolvimento das ciências
humanas a partir do final século XIX. A ciência não é um todo unificado a
partir da possibilidade de reduzir todos processos a um nível
fundamental. Diferentes teorias e explicações muitas vezes não podem ser
reduzidas uma à outra, no sentido de que não podem ser entendidas como
redutíveis a um nível de explicação básico. Pelo contrário, as
perspectivas reducionistas devem ser vistas como recursos
complementares, como parte da explicação para se entender um processo
complexo.
Conclusão. O reducionismo, como concepção
filosófica fisicalista, que enseja a possibilidade de oferecer
explicações para todos fenômenos complexos em termos de leis e elementos
de níveis mais baixos descritos a partir de leis da Física, caiu por
terra. Embora um ou outro ainda defenda propostas reducionistas
radicais, o modelo fisicalista já não mais se sustenta. Por outro lado, o
reducionismo como programa de investigação científica não tem como ser
rejeitado. O reducionismo é elemento importante no desenvolvimento de
estratégias valiosas para a geração de modelos inovadores e com
capacidade explicativa.
Então, voltando a um dos exemplos no
começo do texto, a neurociência tem ou não uma metodologia reducionista?
Não e sim. Não, pois a neurociência não se apoia na tese fisicalista,
pois os modelos biológicos não podem ser entendidos reduzindo-se o
sistema em elementos cada vez menores que são explicados a partir de
leis da Física. Pelo contrário, cada vez mais é abordada uma perspectiva
mais ampla, tendo como objeto de estudo o sistema como um todo, ou um
conjunto de redes neuronais, sempre em relação a outras partes do
organismo. Além disso, para descrever seus fenômenos e estruturas, ao
contrário de séculos atrás, procura-se atualmente entender o sistema
nervoso numa perspectiva histórica, ou seja, evolutiva. Por outro lado,
sim, o reducionismo é parte de sua metodologia, assim como é parte do
programa de investigação de inúmeras disciplinas: são estratégias que
nos permitem identificar componentes mais simples de sistemas complexos,
os quais, posteriormente, precisam levar em consideração juntos de
outros componentes se quisermos entender a complexidade de níveis
superiores.
O erro está em confundir as duas formas
de se entender o reducionismo, como tese fisicalista e como programa de
investigação científica.
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¹Atualmente, o termo fisicalismo é amplamente utilizado na filosofia da mente, referindo-se a tese segundo a qual os processos ditos mentais são unicamente resultados de processos físicos. ²Não confundir Física enquanto ciência, com física enquanto realidade oposta à metafísica. Neste caso referimos à Ciência Física.
Bibliografia:
MARTÍNEZ, S. Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade, in ABRANTES, P. (org.) Filosofia da Biologia. Porto Alegre: Artmed, 2011.
MAYR, E. Biologia: Ciência Única. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
O Cérebro da Mosca
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