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quinta-feira, 29 de maio de 2008

O papel e o valor do ensino da geografia.

O papel e o valor do ensino da geografia
Pierre Monbeig
Concordamos todos que, se a maior parte do público culto tem uma idéia mais ou menos exata do que são a biologia, a geologia, a economia ou a sociologia, o mesmo público não acompanha o progresso das ciências geográficas, quando não ignora sua existência. Para uns a geografia é confundida com narrativas de viajantes; um geógrafo é um explorador, a rigor um cartógrafo; traz de suas viagens narrativas agradáveis de ouvir-se, sobretudo se tem a habilidade de ilustrá-las com belas imagens. Para outros, talvez mais numerosos, a geografia é uma lembrança extremamente penosa de sua infância. Seu nome evoca listas indigestas de nomes de lugares ou dados numéricos, lições atrozes que somente os menos inteligentes e os mais obstinados de nossos condiscípulos chegavam a recitar razoavelmente. Os espíritos brilhantes, ao contrário, mostravam-se rebeldes. E ficamos satisfeitos quando nossos filhos recebem uma nota má porque não souberam de cor a lista das estações da Central do Brasil entre Rio e São Paulo, ou as altitudes exatas dos vulcões andinos; a fraqueza em geografia é uma espécie de teste de inteligência!
Portanto, na melhor das hipóteses, a geografia é tida como a irmã intelectual do turismo. Na pior elas hipóteses, a geografia é uma tortura gratuita imposta às crianças e pergunta-se como seres sensatos puderam tornar-se geógrafos! Se são corretos esses dois modos de ver, é claro que a geografia é inútil, quando não perigosa; é um absurdo ensiná-la, mais ainda praticá-la, e torna-se urgente fechar também os departamentos de geografia das faculdades de filosofia e instituições como o Conselho Nacional de Geografia! A menos que consigamos mostrar que a geografia contribui para o enriquecimento das mentes jovens e a sua formação. A menos também que possamos provar a sua utilidade num mundo onde toda e qualquer ciência é também uma técnica, onde toda pesquisa leva a dar um instrumento útil à coletividade. É mister, portanto, estabelecer o valor a geografia no ensino e determinar sua utilidade como moderno instrumento de trabalho.
Comecemos fixando a posição exata da geografia moderna, diante da importância quase exclusiva que atualmente se dá à memorização no ensino. Geógrafo algum deixará de condenar esta pseudo-geografia. Todavia, convém lembrar que a verdadeira pedagogia não deixa de recorrer às funções da memória. Estas só se desenvolvem na medida em que passaram por um treino inteligente, assim como acontece com todas as outras atividades psicológicas ou físicas. Também não se trata de oposição sistemática a qualquer ensino de memória, mas de oposição radical ao ensino exclusivamente baseado na memória e que a atravanca com um trambolho inútil. Nada se pode aprender sem esforço de memória e sem a aquisição de uma nomenclatura, por mínima que seja. 0 exercício de matemática pressupõe o conhecimento de certas fórmulas e, nesta aprendizagem, memória e inteligência foram ambas treinadas e desenvolvidas. 0 conhecimento da literatura exige que o aluno retenha não somente nomes de autores e de obras, mas dados cronológicos, sem os quais seria total a confusão. Assim como não se pode ter conhecimentos históricos sem adquirir uma sólida bagagem de datas e de fatos, não se poderia ter bom conhecimento geográfico sem uma base de nomenclatura. É apenas um ponte de partida, mas indispensável. Por fim, ainda no âmbito das preocupações utilitárias, não esqueçamos que a vida corrente requer de cada um de nós esse conhecimento mínimo de nomenclatura geográfica, que é, para a ciência geográfica, o que a tabuada de multiplicação é para a matemática: nomes de cidades, de rios, de montanhas, de produtos nacionais e estrangeiros, aquisições de nossa memória infantil de tal modo integradas em nós mesmos, que já nem nos lembramos de quando as adquirimos.
Um bom ensino de geografia, portanto, como qualquer outro ensino, não pode deixar de recorrer à memória. É necesssário reduzir sem medo a massa de nomes insípidos e de pormenores sem valor; é necessário, sobretudo, reduzi-la a proporções mais justas. Impõe-se uma escolha ao professor, a quem cabe a difícil tarefa de exercitar com inteligência a memória dos alunos. E assim ergue-se diante de nós o problema do preparo do professor de geografia, ao qual teremos que voltar. Mas, mesmo reconhecendo até que ponto a maior parte dos professores de geografia foram pouco ou mal preparados para seu trabalho, ainda assim causa espécie que educadores, e mesmo simplesmente homens normais dotados de bom senso, mostrem-se tão obstinados em transformar a geografia em instrumento de tortura para crianças. Qual a fonte desse erro fundamental que faz confundir ensino da geografia com memorização?
Há o desconhecimento total da geografia e a convicção de boa fé, mas errônea, que um nome, um dado, são "fatos geográficos" e que, a partir deles se elabora a ciência geográfica Ora a geografia não é uma ciência de fatos isolados simples, passíveis de serem conhecidos por si e em si. Neste mesmo erro incorrem os que acreditam ensinar uma história científica porque ensinam "fatos" históricos, acontecimentos e datas. Para melhor me tornar compreendido permitam-me usar a palavra irônica dum historiador da Idade Média, Marc Bloch, que, tomando como exemplo a queda dum grande ministério da III República Francesa, o ministério Jules Ferry, parte para a pesquisa do fato histórico preciso, concernente a este evento político.
Qual o fato e em que momento ocorreu? Surgem as diversas hipóteses possíveis: o momento em que o presidente da Câmara de Deputados proclama o resultado do escrutínio fatal? O momento exato (pois um historiador "científico" deve fazer empenho em ser exato) no qual um deputado, desconhecido, seja dito de passagem, depositou na urna o voto que fez pender para um lado o prato da balança parlamentar? Não seria pre­ferível fazer referência à visita constitucional que o presidente do Conselho, em minoria, fez ao presidente da República para entregar-lhe a demissão ou mais precisamente, e ainda mais cientificamente, ao minuto em que o chefe de Estado aceitou a renúncia do seu ministro? Pode-se ainda hesitar e, desejando-se precisão histórica e jurídica ao mesmo tempo, poder-se-ia admitir que, historicamente, a queda do gabinete Ferry se situa no momento em que saiu das rotativas o número do jornal oficial da República Francesa, no qual estava impresso o texto oficial da demissão.
Desculpem-me por esta digressão pouco séria pelo terreno dos historiadores. Mas a lição que Marc Bloch daí extraiu é clara: o fato histórico não se reduz a uma simples data; o verdadeiro historiador não se esgotará numa investigação, de aspecto po­licial, das aparências do fato, pois sabe que o interesse histórico não reside nas minúcias cronológicas mas sim na seqüência comple­xa das causas e conseqüências da queda do ministério Ferry. 0 bom professor de história procurará tornar compreensível esta seqüência complexa constituída por múltiplos e pequenos fatos cronológicos, cuja reunião constitui um fato histórico. A história é diferente da cronologia.

Transfira-se o exemplo do historiador para o campo da geografia e chegaremos às mesmas conclusões. É erro comum e persistente pretender tomar e ensinar fatos geográficos isolados e atomizados. Não é a altitude das Agulhas Negras que é um fato geográfico, mas o conjunto do maciço, constituído por certas categorias de rochas, situado num determinado conjunto orográfico, submetido a certas condições climáticas que determinam certa distribuição de vegetação, possibilitando certos modos de ocupação do solo pelo homem e tornando possíveis certos produtos. Se quisermos um exemplo de geografia humana, pode­mos encontra-lo na estação D. Pedro II da Central do Brasil. A estação, em si, não é um fato geográfico; o fato geográfico é o movimento dos trens, dos viajantes, das mercadorias, a sua pro­veniência, o seu destino; fato geográfico serão também as con­seqüências da presença dessa estação na paisagem do bairro da capital onde se encontra, a circulação urbana e seu ritmo cotidiano e estacional, uma determinada localização dos ramos de comércio ligados a estação da estrada de ferro, etc.. Dizer­ que as Agulhas Negras tem x metros de altitude ou que a estação D. Pedro II está situada em tal rua do Rio de Janeiro, não satisfará o geógrafo, embora sejam duas afirmativas indispensáveis, mas que são apenas a sombra enganadora do fato geográfico. O geógrafo procurará o conjunto de fenômenos, como os que acima enumeramos rapidamente, e os laços que os unem e fazem deles um todo vivo.
Portanto, a noção de fato geográfico tal como é correntemente admitida é errônea e deve ser corrigida. Se ligarmos a noção de fato à idéia de irredutibilidade, de precisão rigorosa e de valor intrínseco, poderemos quase dizer que não existe fato geográfico e que o geógrafo não se preocupa em estudar "fato" desta ordem. A pesquisa geográfica trata dos complexos de fatos e são esses complexos que, por sua localização no globo, são verdadeiros "fatos" geográficos. Cabe ao geógrafo explicar esta localização, procurar-lhe as conseqüências, examinando as relações, ações e interações que unem uns aos outros os elementos constitutivos do complexo geográfico. Complexo geográfico, sim, porque se localiza e porque implica em ações recíprocas mutáveis do meio natural e do meio humano. A variedade dos componentes do complexo geográfico é tanto maior quanto mais elevado é o grau de civilização técnica alcançado pelo grupo humano, existente há séculos, se não milênios, e muito numeroso. 0 complexo geográfico constituído pela zona açucareira do Nordeste é, provavelmente, de estudo mais delicado que o complexo geográfico amazônico, mas sua análise recorre menos, aparentemente, as disciplinas irmãs da geografia, que não seriam exigidas pelo estudo do complexo geográfico "Rio de Janeiro".
A título de exemplo e de maneira muito esquemática, gostaria de indicar o possível ponto de vista do geógrafo diante de um complexo geográfico industrial. É sabido que a Lorena, região francesa, encerra no seu subsolo enormes reservas de minério de ferro e importantes jazidas de hulha, isto é, as bases de poderosa indústria metalúrgica. Não possuindo esse carvão a qualidade exigida para a fabricação do coque, os metalurgistas lorenos compravam sistematicamente o coque fabricado na Alemanha, mais precisamente no Ruhr. Há quatro ou cinco anos atrás, os técnicos franceses conseguiram novos processos que permitem tratar o carvão loreno e obter assim a moinha de coque, utilizável in loco. Trata-se de uma invenção técnica cujos pormenores não interessam a geografia, mas que começa a ter conseqüências de ordem geográfica pois, a partir desses processos novos, desenvolve-se e complica-se o antigo complexo geográfico loreno. Em primeiro lugar dá-se o desenvolvimento das indústrias metalúrgicas pesadas, que arrasta o das indústrias mecânicas mais leves. Esse desenvolvimento industrial pressupõe um afluxo de mão-de-obra, operários, em­pregados de escritório, engenheiros, diretores, acompanhados ou não de suas famílias. Paralelamente, assiste-se a abertura de novas usinas, ao aumento da população urbana composta de elementos heteróclitos (inclusive numerosos operários norte­africanos). Parece que essas novas atividades industriais atraem uma parte dos trabalhadores rurais e, em conseqüência, a produção agrícola reduz-se ou é orientada para novos produtos. Ao mesmo tempo, as indústrias novas fornecem adubos químicos que, mais numerosos, mais variados, menos custosos, determinarão uma evolução das culturas, dos sistemas agrários, dos rendimentos e, portanto, dos níveis de vida dos agricultores. Encontramo-nos em presença de uni conjunto de fenômenos estreitamente ligados entre si e reagindo uns sobre os outros. Seria ainda necessário ressaltar que, para serem compreendidos, deve-se conhecer a estrutura do solo onde se situam as minas de ferro e de carvão, a hidrografia de superfície ou subter­rânea que condiciona a alimentação dos homens e boa parte do trabalho industrial, e a circulação por via aquática, rios e canais. Igualmente, a rede de vias de comunicação deverá ser ampliada a fim de permitir não somente a saída da produção mas também a chegada dos materiais de construção e produtos de alimentação necessários à enorme população que se reúne a volta das minas, e junto aos escritórios, serviços públicos, etc.. Esta é a razão, entre outras, por que se projeta para breve a execução dos trabalhos do Mosela e a eletrificação da via férrea que une a Lorena à região industrial e agrícola do norte da França. A possibilidade de utilizar o carvão loreno reduzirá as compras de coque proveniente do Ruhr, determinando a modificação das correntes de tráfego. Prevê-se desde logo que esta nova situação econômica, indiretamente dependente da presença da hulha e do ferro em determinada região, facilmente localizável, não deixará de trazer conseqüências que atingirão mais longe que o quadro regional, sairão do domínio econômico e ecoarão no terreno internacional. Por fim o aperfeiçoamento de novos processos técnicos é oneroso (as pesquisas de laboratórios também o foram); não pode ser realizado por empresas medianas, mas por associações novas, financiadas por grandes empreendimentos metalúrgicos. Isto significa que a estrutura econômica das empresas lorenas evolui para unia concentração cada vez mais acentuada. Por sua vez. a estrutura financeira, fortemente concentrada, vai agir como fator geográfico, pois acarreta a concentração espacial. Centros mais modestos de indústria metalúrgica dificilmente poderão resistir á concorrência da poderosa indústria lorena, também apoiada nos recursos naturais, dotada de equipamento moderno e escorada por forte organização financeira. Já se assiste a migrações de indústrias promovidas pelas grandes empresas e a redistribuição regional dos diferentes ramos da produção.
Este é o complexo geográfico, em vias de organização, a partir de aperfeiçoamentos técnicos. Fomos forçados a simplificar e resumir a exposição dum processo infinitamente mais complicado do que aparece aqui. Mais uma prova da delicadeza do complexo geográfico. Este se exprime antes de tudo na paisagem, a qual, formada una e indissoluvelmente pelos elementos naturais e pelos trabalhos dos homens, é a representação concreta do complexo geográfico. Por esta razão o estudo da paisagem constiui a essência da pesquisa geográfica. Mas é absolutamente indispensável que o geógrafo não se limite á análise do cenário, à apreensão do concreto. A paisagem não exterioriza todos os elementos constituintes do complexo. Nem sempre nela se encontrarão expressos com clareza os modos de pensar, as estruturas financeiras que são, entretanto, parcelas apreciáveis do complexo geográfico. Outro perigo: a limitação do campo de estudo geográfico à paisagem ameaça levar o pesquisador ao recurso exclusivo da descrição. Este olha, observa minuciosamente e com perfeito espírito científico, mas tende a esquecer o essencial, que é a explicação. Satisfaz-se com ser uma excelente máquina fotográfica e, nesse jogo atraente, pren­de-se menos à análise dos processos do que à sua descrição. Passa ao lado dos problemas, pois, submerso pela massa dos fa­tos observados, já não pode distingui-los com clareza. A paisagem é um ponto de partida, mas não um fim. Resulta do complexo geográfico, sem confundir-se com ele.




http://www.geocritica.com.br/texto09.htm

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