Olavo de Carvalho
Aula do curso Introdução à Vida Intelectual
Setembro de 1987. Reproduzida sem alterações.
Quando as palavras saem da moda, as coisas que elas designam ficam
boiando no abismo dos mistérios sem nome; e como tudo o que é misterioso
e inexprimível oprime e atemoriza o coração humano com uma sensação de
cerceamento e impotência, é natural que a atenção acabe por se desviar
desses tópicos nebulosos e constrangedores. Pois o que desaparece do
vocabulário logo acaba por desaparecer da consciência: o que não tem
nome não é pensável, o que não é pensável não existe — tal é a
metafísica dos avestruzes. Só que a coisa desprovida do direito à
existência continua a existir numa espécie de extramundo, inominada e
inominável, tanto mais ativa quanto mais secreta, tanto mais temível
quanto mais envolta nas pompas tenebrosas do nada. A restrição do
vocabulário povoa o mundo de temores e presságios. Desprovido da
capacidade de nomear, eis o homem devolvido a todos os terrores que ele
imaginava primitivos, mas que são uma pura criação da mais avançada e
requintada decadência: o barbarismo artificial.
Se a coisa desprovida de nome é, por acaso, alguma realidade
espiritual elevada, um valor excelso ou aspiração suprema da alma — uma
dessas coisas essenciais que se pode expulsar da consciência, mas não da
existência —, é natural que sua reencarnação obscura assuma, mais
ainda, as feições do terrível, do informe, do monstruoso.
É algo assim que acontece com aquela coisa designada pela palavra
“ideal” — uma palavra obviamente fora de moda, cujo significado perde
realidade com a rapidez com que perde sangue um decapitado.
Denomina-se “ideal” a síntese em que se fundem, numa só forma e numa
só energia, a idéia do sentido da vida e a do preço de sua realização:
diz-se que um homem tem um ideal quando ele sabe em qual direção tem de
ir para tornar-se aquilo que almeja, e quando está firmemente decidido a
ir nessa direção.
Complexo de impulso e de esquema, o ideal atrai como um imã e
coordena como um eixo. Pela unidade de sua forma, convoca o sinergismo
da vontade: a concorrência de todas as forças para a consecução da meta.
Pelo seu caráter de síntese projetada para o futuro, ergue-se como um
tribunal soberano e neutro para a arbitragem de todos os conflitos do
presente, que ali se resolvem e superam de modo que mesmo as tendências
mais antagônicas da alma possam convergir num só ímpeto ascensional.
O ideal é, por isto, condição indispensável para a coesão da
personalidade, que sem ele se dispersa em aspirações fortuitas e
esforços estéreis. Miragem e emblema, sua visão nos dinamiza, nos eleva e
enobrece, e é sempre a lembrança do seu apelo que nos reergue após cada
erro e cada desengano. O ideal é semente de juventude e revivescência.
Tem um poder coordenante voltado para o futuro, um poder curativo
voltado sobre o passado.
É ainda pela força do ideal que o homem transcende o sono entorpecido
da subjetividade intra-orgânica, das falsas idéias e aspirações que não
são senão a secreção passiva da fisiologia, para despertar a um mundo
de realidades objetivas que a inteligência discerne e que a consciência
moral obriga a reconhecer; é assim que a alma se liberta do poço escuro
da individualidade estanque, para elevar-se ao mundo maior da sociedade,
da cultura, da vida moral, ao sentimento do universo e ao desejo de
Deus.
Sem a síntese, que o ideal opera, entre o impulso de universalidade e
os interesses do organismo psicofísico, não haveria meio de fazer um
homem sacrificar-se, impor-se restrições, contrariar desejos e reprimir
temores, em prol de algum valor moral, social ou religioso, para
alcançar sua plena estatura humana e tornar-se, talvez, maior do que ele
mesmo. Mas o desejo, que move a alma, não pode ser despertado por uma
simples idéia abstrata, por verdadeira que seja; ele necessita de
imagens plásticas, sensíveis, que lhe dêem como que uma presença
antecipada do seu objetivo. Também não se move, exceto no homem
grosseiro, ao simples apelo de uma imagem atrativa; mas aguarda que a
inteligência examine e aprove o objeto como desejável e bom. Não basta
que a meta seja verdadeira; é preciso que seja bela. Mas não basta que
seja bela; é preciso que seja verdadeira e justa. É a síntese desta
tripla exigência, intelectual, estética e moral, que se denomina
“ideal”. Ele concilia, no homem, o desejo de auto-afirmação, de
autodefesa, de permanência, com o impulso de crescimento, de doação e de
superação de si. Ele dá uma significação universal às tendências
individuais, e põe estas a serviço daquela. Spencer falava dos
sentimentos “ego-altruístas”, intermediários entre o egoísmo e o
altruísmo; neles, uma satisfação dada a si mesmo é, indireta porém
voluntariamente, ocasião de benefício para os outros. O ideal extrai
grande parte do seu dinamismo dessa pulsação ego-altruísta, em que a
felicidade de um homem se identifica com o bem dos demais1.
O ideal é como o fogo em que se transfunde, no forno alquímico da alma,
o egoísmo em altruísmo, a paixão reflexa em ação refletida.
Mas não é só por isto que o ideal dá força, equilíbrio e consistência à personalidade. A escola junguiana tinha razão ao ver no ideal do eu uma instância superior, capaz de absorver e neutralizar os conflitos entre o id e o superego,
entre as pulsões primárias do organismo psicofísico e o esquema de
proibições e deveres introjetado inconscientemente pelo hábito imposto,
automatizado depois numa constelação de rotinas impeditivas. De fato,
quanto mais elevado, nítido, intenso e querido é um ideal, mais o homem é
capaz de, em favor dele ele, se impor sacrifícios inteligentemente,
contornando as exigências do id; porém, na mesma medida, o
ideal o capacita a contrariar, se preciso, as imposições de uma
moralidade meramente exterior e convencional, a reformar e elevar seu
padrão de valores, a superar a obediência servil a exigências
repressivas irracionais. Destituído do ideal, no entanto, o homem
abandona-se à luta cega entre a paixão egoísta e o temor da represália
do superego2.
Embora nascida na nossa consciência subjetiva, a imagem de perfeição
expressa no ideal aponta para uma qualidade objetiva: pelo ideal, as
qualidades latentes do homem tendem a orientar-se para fora e
transformar-se em atos e obras no mundo. O ideal é o caminho pelo qual
as aspirações individuais de felicidade distribuem-se nos sulcos já
abertos da realidade exterior, saem da redoma do sonho e ganham um corpo
no cenário maior dos fatos e das coisas. Sem um ideal definido, todas
as melhores aspirações não passam de sonhos, porque não há um dever
moral imanente a exigir que se amoldem à realidade, que se limitem em
extensão para realizar-se em intensidade. Só o homem idealista é
realista; os demais são sonhadores ou cínicos. Não tendo uma medida do
que as coisas deveriam ser, vêem-nas melhores ou piores do que são.
Ademais, para que as qualidades latentes possam se manifestar, é
necessário um esforço constante numa direção definida; sem ideal, o
esforço gasta-se em gestos reativos, momentâneos e sem proveito. O ideal
é a bússola que assinala para a alma uma direção firme e constante por
entre as incertezas. Por isto, o sentimento de insatisfação, de vazio e
de tédio que experimentamos quando traímos ou esquecemos o ideal é o
sinal de alarma que nos permite corrigir o rumo e reencontrar o sentido
da vida. Se o sentido é aquilo a que se orienta a nossa vida e a que ela
tende com todas as suas forças, então, deve estar colocado num outro
tempo ou num outro espaço que não os do presente e do imediato num
futuro ou num plano mais abrangente de realidade. O ideal é a presença
deste futuro no presente, deste outro espaço no aqui e no agora. Uma
presença incompleta e, por isto, dinâmica e tensional. Por ela, medimos
nossa aproximação ou afastamento do sentido da vida. O ideal é a medida
efetiva do tempo existencial, o padrão de intensidade e profundidade da
significação dos momentos. Sem ideal, os instantes e os lugares se
homogeneizam na massa do indiferente, após a breve excitação casual que
os torna interessantes. O ideal é a coluna mestra e a força da
personalidade. Traí-lo ou esquecê-lo é entregar-se, de ossos quebrados,
nas mãos da contingência e do absurdo.
Quando, porém, a traição é demasiado grave, extensa, profunda, o
sinal de alarma já não soa mais: o clamor da consciência moral imanente
tornou-se tão penoso que a alma o reprime, lacrando-o sob a tampa do
subconsciente, ao mesmo tempo em que procura inventar toda sorte de
razões, de pretextos factícios e ocasionais, para justificar o mal-estar
e o tédio, ou encontra um bode expiatório sobre o qual despejar seu
rancor de si mesma. A repressão da consciência moral, como demonstrou
Igor Caruso3, está na base de muitos distúrbios
neuróticos. A neurose apóia-se num complexo jogo de racionalizações e
compensações que falseia completamente a posição existencial do
indivíduo, como uma bússola viciada. E, já que a consciência, por
definição, é coesão — com + scientia = reunião da ciência4 —,
e uma lei constitutiva impede que suas partes funcionem separadas, logo
o escotoma defensivo se alastra para outros campos e acaba por
obliterar toda a visão, mesmo em áreas que nada têm a ver diretamente
com o conflito que lhe deu origem. O empenho de conservar então um
mínimo indispensável de realismo, necessário à vida social e prática, é
obstaculizado pelo esforço de não enxergar uma determinada área,
circunscrita como tabu; o curto-circuito daí resultante produz
considerável perda de energias, enfraquecendo a capacidade intelectual e
decisória. A vítima torna-se cada vez mais inepta para o ato de
humildade que lhe devolveria o ideal perdido e o sentido da vida ( ser
humilde não é outra coisa senão aceitar a realidade; como diz Schuon,
“ser objetivo é morrer um pouco” ).
Na psicologia e psicoterapia de Paul Diel5, a
divindade é a imagem ideal que orienta todos os esforços para a
auto-realização das qualidades superiores do homem. Pouco importa que,
teologicamente, ela seja muito mais do que isto, pois, para o indivíduo,
a divindade real e objetiva só é acessível através da sua imagem
pessoal de Deus, e é justamente esta é a base da qual tem de partir todo
ensino religioso que não seja mera lavagem cerebral. Psicologicamente,
porém, o interesse maior não reside na veracidade teológica da imagem,
porém na sua ação catalizadora sobre a massa das forças psíquicas.
Encarado psicologicamente ou teologicamente, o ideal de perfeição humana
sugerida pela imagem do divino é a meta obrigatória e universal da
existência humana sobre a terra, e a perda deste ideal é, segundo Diel, a
causa das neuroses. O ideal da perfeição pode ser corrompido ou
desviado, basicamente, de duas maneiras. Diel chama-as exaltação imaginativa e banalização. São processos opostos, sucessivos e complementares.
A exaltação imaginativa é um estado em que a mente, embevecida com o
seu ideal, se identifica mais ou menos inconscientemente com ele e
atribui a si as perfeições que a ele pertencem, como se já as tivesse
realizado. Para Diel, o símbolo por excelência da exaltação imaginativa é
o vôo de Ícaro. As asas de cera representam a força da imaginação, que
só pode elevar aos ares um corpo imaginário. O exaltado toma o potencial
por atual, imaginando possuir as perfeições a que aspira. Por isto
mesmo, sua alma experimenta, como num choque de retorno, um sentimento
de estranheza e de impotência perante o mundo, que não cede, como ele
esperava, aos seus encantos ou poderes. Acuado pelas exigências da
realidade, ele exacerba ainda mais sua adoração de si mesmo diante de um
mundo que ele julga vil, mesquinho e incompreensivo, quando na verdade é
ele mesmo quem não compreende o mundo e, por não compreendê-lo, está
impotente para agir nele. É a síndrome do “jovem incompreendido”, que,
pela simples razão de ter aspirações elevadas — ou que lhe pareçam
elevadas — já se sente ipso facto superior ao seu ambiente e,
portanto, limitado ou coagido pela mesquinhez real ou aparente dos pais,
da escola, da sociedade, do emprego, etc6. Nem sempre
ele declara seu sentimento em voz alta; uma vaga intuição do caráter
doentio do seu estado pode envolver este sentimento numa complexa rede
de disfarces, atenuações e racionalizações muito difícil de deslindar.
Também é certo que seu diagnóstico depreciativo sobre o mundo em torno pode ser, em si mesmo, objetivamente verdadeiro, sendo falso apenas o lugar e a função que ocupa na sua alma,
já que a degradação do mundo lhe aparece, por vezes ao menos, como uma
espécie de contraprova de suas próprias qualidades excelsas7.
Não raro o doente alia-se a outros jovens imbuídos do mesmo
sentimento, em busca de apoio e confirmação de suas queixas contra o
mundo. A comunidade de sentimentos e a repetição das queixas, criando
uma atmosfera de comprovação intersubjetiva, parece dar consistência
real ao diagnóstico distorcido e subjetivista que cada um dos membros do
grupo faz quanto ao estado do mundo, legitimando seu discurso contra a
mediocridade e grosseria das pessoas “de fora”. “Estar dentro” do grupo é
então sinal de uma espécie de eleição, a prova de uma qualidade excelsa
e incomunicável. O sentimento de ter acesso a algo misterioso,
profundo, especial, pode exacerbar a exaltação imaginativa ao ponto de
provocar uma verdadeira ruptura com a realidade ambiente, incapacitando o
indivíduo para o cumprimento dos deveres sociais mais elementares8.
Quando a exaltação imaginativa chega a efeitos tão profundos, é que o
doente já se encontrava à beira de um colapso intelectual e social,
contra o qual provavelmente terá sido advertido pelos pais, por amigos,
ou por uma infinidade de sinais diretos e indiretos. Estes sinais, por
sua vez, aguçam a sensação de estar afundando no completo isolamento e
na impotência; e o pressentimento de abandono, às vezes mesmo de loucura
e morte, contrasta tão dolorosamente com os primeiros vôos de exaltação
imaginativa, que o doente é então tentado a buscar às pressas, como
tábua de salvação, algum tipo de reintegração forçada no mundo que
desprezava9. Como, porém, isto implicaria a humilhação
de voltar atrás nas críticas e a renúncia à independência afetada, a
mente só consegue a reintegração forçada mediante o artifício de operar
uma inversão de valores: ao invés de abandonar somente a
atitude de auto-exaltação, passando a uma postura de humildade perante o
ideal, ela vai, ao contrário, desidentificar-se do ideal para
poder abandoná-lo sem perder o sentimento de sua própria superioridade.
Conserva, assim, sua auto-exaltação, mas sob uma forma destituída de
conteúdo pretensamente idealístico, e revestida, agora, de uma pose de
“realismo” terra-a-terra, e não raro de maquiavelismo, carreirismo
profissional, cinismo, materialismo, etc. É a esta atitude que Diel
denomina banalização.
A inversão banalizante só pode ocorrer mediante uma mutação súbita,
longamente preparada no subconsciente. O processo é bem conhecido e foi
descrito por Pavlov, muito antes de Diel, no que toca às suas bases
neurofisiológicas. O acúmulo de contradições necessário para sustentar
uma posição existencial artificiosa e falsa leva à proliferação de
tensões contraditórias e produz situações novas, incompreensíveis, que
ultrapassam a capacidade de resposta racional e as habilidades de
adaptação do organismo. Quebram-se, assim, inúmeras cadeias de reflexos
condicionados que constituíam a base subconsciente do comportamento, e o
homem se vê num estado de indeslindável confusão. A inversão súbita de
valores pode então sobrevir, porque, segundo demonstrou Pavlov, a
“inibição prolongada dos reflexos adquiridos suscita angústia
intolerável, da qual o sujeito se livra mediante reações opostas às suas
condutas habituais. Um cão, por exemplo, se apegará ao funcionário do
laboratório, que detestava, e tentará atacar o dono, de quem gostava”10.
As tensões provenientes de vários lados, impondo ao cérebro “provas
intoleráveis”, produz então uma inibição protetora que “desorganiza os
reflexos adquiridos, destrói as suas camadas mais recentes e determina,
no sujeito, o abandono de suas crenças”11. O
conhecimento técnico deste mecanismo permitiu a sua utilização
sistemática nos processos de lavagem cerebral e “reforma da opinião”,
nos campos de prisioneiros da China e da União Soviética12.
Porém, o mesmo fenômeno, atenuado ou disfarçado, observa-se disseminado
na vida social contemporânea, graças ao abuso das pressões psíquicas da
propaganda, da persuasão subliminar, dos exercícios psíquicos, das
experiências psudomísticas. Sabe-se hoje que esta mutação pode afetar
não somente este ou aquele grupo de crenças e atitudes, mas a
personalidade total; o crescimento assombroso da incidência destes
fenômenos, nos Estados Unidos, levou alguns psicoterapeutas a falar de
uma “epidemia de mutações súbitas de personalidade”, que constitui
talvez o mais grave capítulo de psicopatologia social conhecido na
história do Ocidente13.
A facilidade com que este processo se desencadeia, mesmo fora do
cenário das seitas pseudomísticas e de toda experimentação de “poderes”
psíquicos, pode ser explicada pelo fato de que, “quando o cérebro é
submetido a tensões ainda mais fortes, a fase de inibição cerebral pode
ser sucedida por uma fase paradoxal. Nesta, estímulos fracos e antes
ineficientes podem causar respostas mais acentuadas do que estímulos
mais fortes”14. ISto significa que basta uma fase de
acúmulo tensional para que o processo de inversão possa seguir atuando
no subconsciente, movido doravante por estímulos insignificantes e
ocasionais. Então, “no terceiro estágio da inibição protetora, a fase ultraparadoxal, as respostas e o comportamento positivos começam, de repente, a se transformar em negativos, e os negativos em positivos”15.
As mudanças de opinião nesta fase, e as justificativas aparentemente
lógicas que o doente oferece a si mesmo e aos outros, não são senão o
disfarce exterior de um processo que tem suas raízes numa sobrecarga de
estimulação neuronal; são um “vestido de idéias” em torno de motivos
reflexos, que permanecem subconscientes.
Na banalização, o indivíduo amortece então sua sensibilidade para
todas as deficiências, injustiças e feiúras que, no seu tempo de
idealismo exaltado, lhe pareciam revoltantes e intoleráveis. É que antes
ele via as feiúras somente no mundo exterior e, como não as enxergava
em si mesmo, as condenava “desde cima”. Agora, ele as admite dentro de
si; porém, como são suas e se identifica com elas, ele as defende como
sinais de superioridade; não raro afeta uma atitude de soberano desprezo
por aqueles nos quais se mantém viva a antiga sensibilidade moral; e,
acusando-os de rancorosos, frustrados ou coisa assim, ele se compraz no
seu novo estado de “homem ajustado” e — no seu entender — adulto. A
banalização consiste neste nivelamento-por-baixo do sentimento moral e
estético. Ela permite que o indivíduo adote, como normais e
indiferentes, atitudes e opiniões que antes lhe pareciam imorais e
desprezíveis. Não raro a mutação apaga blocos inteiros da memória, de
modo que o indivíduo, para sustentar com alguma coerência o seu novo
padrão de comportamento, chega a negar os fatos mais óbvios e patentes
que presenciou. George Orwell, no seu romance 1984, descreve um
caso em que, passando por este gênero de mutação, as testemunhas mesmas
da inocência de um acusado depõem pela sua condenação. A mutação pode
resultar então em total atomização do comportamento e acarretar, com a
perda da integridade psíquica, a dissolução dos padrões morais mais
elementares, produzindo o cinismo, a amoralidade, o descaramento,
aliados, às vezes, a boas doses de autopiedade.
Analisando os conceitos de Diel com os critérios de Caruso16,
vemos que a neurose do idealista exaltado tem sua origem na soberba,
pois o ego, ao identificar-se com a imagem do ideal, atribui a si mesmo,
atual e efetivamente, qualidades que só lhe pertencem de modo virtual e
por espelhismo. É uma forma de autolatria. Quando os teólogos dizem que
a soberba é a raiz de todos os pecados, é isto o que eles têm em vista:
o idealista exaltado corrompe o bem na sua própria raiz, corrompe-o na
medida em que tem por ele um amor egoísta. Sto. Agostinho diz que “todos
os vícios se apegam ao mal, para que se realize; só a soberba se apega
ao bem, para que pereça”. A passagem da exaltação à banalização perfaz
então a mudança, acarretando uma inversão total de valores, instalando o
mal no lugar do bem. Na exaltação, os valores reais ainda são
afirmados, apenas como uma localização falseada; na banalização, a
negação dos valores é afirmada ela mesma como valor. A banalização é o
momento mais grave do processo corruptivo. É claro que a alma doente só
consegue operar esta transformação na medida em que não conscientiza
todos os passos do processo e todas as implicações de seus atos e
decisões, mas se enreda numa trama de racionalizações e sofismas,
destinada a erguer ante seus próprios olhos um simulacro verossímil de
inocência, no instante mesmo em que, traindo a vocação humana, trai o
sentido da vida17.
É interessante observar que, quando o doente vai da exaltação à
banalização, ele passa a representar perante si mesmo o papel de homem
realista e “maduro”, revestida de pose de segurança afetada, destinada a
reforçá-lo no novo papel. Daí que ele seja o último a perceber que a
sua aparente superação da revolta juvenil vem acompanhada, não de um
acréscimo de equilíbrio e força, porém de um decréscimo das capacidades
intelectuais e de uma degenerescência nervosa similar à que se vê na
involução senil. De fato, uma das conquistas que assinalam uma evolução
objetiva do homem na entrada da adolescência é a passagem dos
sentimentos puramente egoístas e orgânicos às tendências ideais ou
suprapessoais: nesta fase, “o indivíduo experimenta um sentimento de
imperfeição, de insuficiência, trata de sair de si, de dar-se”18.
A evolução da vida afetiva “segue a ordem que vai do simples ao
complexo: necessidades, inclinações egoístas, inclinações
ego-altruístas, inclinações altruístas, inclinações ideais”19.
Porém, em certas enfermidades da evolução lenta, como a paralisia geral
dos sifilíticos e também da degenerescência senil, observa-se um
movimento inverso. Escreve Ribot : “A lei de dissolução consiste numa
regressão contínua que desce do superior ao inferior, do complexo ao
simples”20.
“Em alguns enfermos — assinala Challaye — pode-se comprovar a
desaparição momentânea das tendências ideais, altruístas, e mesmo
ego-altruístas. Isto é comprovado sobretudo na maioria dos anciãos (
fora do caso, é claro, dos seres superiores, nos quais esta
degenerescência sentimental pode não se produzir ). Sua vida afetiva se
restringe cada vez mais. Os sentimentos impessoais são os primeiros que
desaparecem. Logo em seguida, as diversas formas da simpatia; e as
necessidades ( econômicas, orgânicas, etc. ) são as que subsistem por
mais tempo. O ancião começa a preocupar-se menos com a ciência e a arte…
torna-se menos generoso… as emoções que persistem maior tempo estão
ligadas à conservação pessoal, à cólera e ao medo. Enfim, o ancião pode
já não ter nada mais que necessidades ; ele recai no estado do menino
pequeno”21.
No homem banalizado, a nova sensibilidade que ele desenvolve pelo seu
interesse material imediato, aliada ao temor da perda e ao crescente
desinteresse pelos ideais, atestam, fora de toda dúvida, que aquilo que
lhe parece ou que ele tenta fazer parecer uma superação é na verdade uma
queda, uma degenerescência que se estende, até mesmo, ao domínio
corporal.
Do ponto de vista causal, entram em jogo, no processo de banalização,
fatores endógenos e exógenos. Os endógenos — aqueles que já estão dados
na alma do indivíduo no instante em que o processo se instala — são os
fatores clássicos levados em conta pela análise psicológica corrente:
tendências hereditárias, defeitos constitucionais, traumas de infância,
falhas da educação, etc. De um lado, estes fatores não exercem senão um
papel predisponente, que em nada pesa se não é valorizado pela
interferência dos fatores exógenos; de outro lado, eles são bem
conhecidos na literatura psicológica.
Os fatores exógenos consistem, essencialmente, nos estímulos com que a
sociedade em torno favorece ou desfavorece a manutenção dos ideais e a
realização humana. Uma sociedade voltada para a busca de um ideal
religioso, moral ou cultural universal, e dotada dos instrumentos
educacionais capazes de viabilizar a realização humana de seus membros,
produz, certamente, uma esplêndida floração de individualidades
vigorosas e ricas que, por sua vez, contribuem para o progresso e o
brilho da sociedade. A história atesta períodos assim brilhantes, como
por exemplo, a Grécia de Péricles, a renascença escolástica dos séculos
XII e XIII, a Idade de Ouro espanhola, a era elisabetana na Inglaterra, o
Califado do Ocidente sob Harum-al-Raschid, e muitos outros. Em escala
menor, pode haver curtos períodos de vigor moral e cultural mesmo em
países pobres e isolados. O que quer que pensemos do conteúdo das idéias
dominantes nestes períodos, o que importa é que neles o desenvolvimento
da personalidade é realmente favorecido. Nem sempre esses períodos
coincidem com épocas de riqueza e progresso material; o que os
caracteriza não é a riqueza, mas o fato de que neles as tarefas
econômicas são inseridas e transfiguradas no quadro maior dos fins e
valores éticos ou religiosos que orientam a vida social como um todo.
Quando, ao contrário, a sociedade perde de vista os valores e
princípios universais e se emaranha na busca obsessiva de soluções para
problemas econômicos imediatos, estes parecem não somente multiplicar-se
no campo dos fatos, mas invadir as almas dos indivíduos, ocupando todo o
espaço que poderia ser dedicado aos valores ideais. Automaticamente, os
indivíduos refluem as suas energias para a busca de interesses que são
conflitantes com os de outros indivíduos e grupos — com os quais somente
os valores ideais poderiam estabelecer uma base de colaboração — e a
sociedade se dispersa numa atomização que pode beirar a anarquia, a
guerra de todos contra todos, a deslealdade generalizada. É evidente
que, neste caso, os instrumentos para a realização da vocação humana
simplesmente desaparecem do cenário social, com o que justamente as
pessoas de maior sensibilidade ética, não encontrando vias de
realização, passam a constituir uma horda de fracassados e desajustados.
É nessa horda que os falsos ideais, criados de improviso para atender a
interesses de grupos ou organizações, encontram seus mais fervorosos
recrutas, oferecendo-lhes uma miragem de valores e uma falsa promessa de
ajustamento social e de participação.
A situação torna-se ainda mais grave em Estados totalitários ou
pré-totalitários, quando a mobilização de massas inteiras da população
para colaborar na “solução” de problemas econômicos recorre ao
expediente de tentar sintetizar, em proveito dos fins do Estado ou das
forças políticas que o disputam, as duas correntes de força tendentes à
exaltação imaginativa e à banalização. As tendências idealísticas são
canalizadas em movimentos de massa — seja de caráter abertamente
político, seja pseudomístico ou pseudocultural —, ao mesmo tempo que as
promessas de sucesso na vida social e profissional postas em circulação
pelos planejadores da operação garantem um eficaz retorno das tendências
de banalização em proveito dos mesmos objetivos.
Isto se observou não somente nos Estados descaradamente totalitários,
como a URSS e a Alemanha nazista, mas também em todo o mundo Ocidental.
As ligações, hoje em dia patentes, entre certas seitas pseudomísticas e
organizações multinacionais mostra que a sociedade moderna tem um de
seus principais esteios numa complexa máquina de “reciclagem” do
idealismo juvenil, que esta máquina primeiro perverte pelo incentivo à
exaltação ( mediante lisonjas às aspirações artísticas, políticas e
espirituais mais descabidas ) e depois reverte no sentido de um
enquadramento social banalizado. O caso mais eloquente é o do jovem
filho de banqueiro que abandona a mediocridade do materialismo familiar
para ingressar no “ensinamento espiritual” de Rajneesh, e depois é
reenquadrado “por baixo” ao ser mobilizado para trabalhar na gigantesca
empresa de limpeza de sedes de bancos, de propriedade do mesmo Rajneesh.
O número destes mecanismos circulares em operação na nossa sociedade é
muito elevado. Eles operam de maneira ubíqua e sorrateira, primeiro
excitando, lisonjeando, pervertendo, depois desviando, reciclando e
reaproveitando para seus próprios fins todos os ideais juvenis, mesmo os
que lhes são mais hostis em aparência. É evidente que, nestas
circunstâncias, um simulacro de auto-realização tende a oferecer uma
falsa alternativa de solução para o conflito entre as tendências de
exaltação e banalização. A alma, colocada sob a pressão esmagadora e
multilateral das forças que, pela lisonja ou pela acusação, pelas
promessas ou ameaças, a comprimem e a dilatam, ora para a exaltação
imaginativa, ora para o ajustamento banalizado, pode agarrar-se a este
simulacro, com toda a fúria e o desespero de um náufrago. Numa sociedade
empobrecida, fortemente empenhada em reduzir à proletarização a
totalidade dos seus membros e na qual, ademais, todos os instrumentos de
defesa espiritual e religiosa foram substituídos pelas multinacionais
da pseudomística e todos os instrumentos de defesa cultural pelo vozerio
onipresente e obsedante das comunicações de massa, nesta sociedade, o
drama acima descrito atinge um máximo de intensidade que deixa entrever
nada menos que um desenlace trágico, com a desumanização brutal da
população e a redução da vida social a um jogo cego de interesses
mesquinhos em disputa, ocultamente orquestrado e dirigido, desde o topo,
por um sinistro grupo de planejadores sociais.
Por todos os meios, esta sociedade espremerá como entre os dois
dentes de um alicate todos os talentos e ideais nascentes, até
esmagá-los e subjugá-los à bestialidade dominante.
No entanto, apesar das pressões maciças e de todos os atrativos
corruptores, a inteligência humana, por sua natureza mesma, continua
essencialmente livre e capaz de objetividade e universalidade. E se é
fato que “chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo
contato material que possa ajudá-lo em sua resistência interior, terá de
encontrar em si mesmo, e só nele mesmo, o meio de aderir firmemente,
pelo centro de sua existência, ao Senhor de toda Verdade”22, não é menos verdade que está somente nas mãos de cada qual dizer a este mundo sedutor e ameaçador: Latrare potest, mordere non potest, nisi volentem:
“Podes latir, mas não podes morder, a não ser que eu o deseje”. Mesmo
as pressões mais formidáveis que o universo concentracionário impõe à
alma humana, na mais temível das tiranias já conhecidas, não eximem o
homem de sua responsabilidade individual.
Todos aqueles em quem ainda reste um grão de consciência das metas
reais e superiores da existência humana têm o dever imediato e
indeclinável de estudar, conhecer e desmascarar os mecanismos do
processo corruptor aqui descrito, para escapar aos falsos conflitos em
que ele nos joga e às falsas alternativas que ele nos oferece.
NOTAS
- Challaye, La Evolución, la Espiritualización y la Socialización de las Tendencias, em G. Dumas, Nuevo Tratado de Psicología, trad. Alfredo D. Calcagno, Buenos Aires, Kapelusz, 1956, tomo VI. Cap. III, p. 76.
- Sobre aimportância psicopedagógica do ideal, v. L. Riboulet, Rumo à Cultura, trad. Maurice Teisseire e Antonio Fraga, Porto Alegre, Globo, 2a. ed., 1960, Cap. I.
- Igor A.Caruso, Análisis Psíquico y Sintesis Existencial, trad. Pedro Meseguer, S.J., Barcelona, Herder, 1954, Cap. II.
- MauricePradines, Traité de Psychologie Générale, 3e. éd., Paris, P.U.F., 1948, t.I, I-1.
- Paul Diel,La Divinité. Étude Psychanalytique, Paris, P.U.F., 1950, e sobretudo Le Symbolisme dans la Mythologie Grecque, Paris, Payot, 1966.
- Não épreciso dizer que esse sentimento é fartamente explorado pelos
aproveitadores de toda sorte: o desejo de aprovação torna o jovem
particularmente vulnerável à lisonja, e a adulação hipócrita da revolta
juvenil é hoje um dos pilares da política e do comércio.
- É interessantecomparar isto com o tema da “revolta degradada contra
um mundo degradado”, assinalado por Lukács e Goldmann no romance do
século XIX, onde aparece toda uma galeria de jovens exaltados, como
Raskolnikoff ( Crime e Castigo ), Julien Sorel ( O Vermelho e o Negro ), Lucien de Rubembré ( Ilusões Perdidas ). , a respeito, Lucien Goldmann, Pour une Sociologie du Roman, Paris, Gallimard, 1964.
- Muito doatrativo da escola Gurdjieff, neste sentido, reside no
ambiente de “secretude quase beatífica” em que se envolvem os
ensinamentos do mestre, como bem assinalou Whitall N. Perry ( Gurdjieff in the Light of Tradition, Bedfont, Perennial Books, 1978 ). As escolas gurdjieffianas e afins têm toda uma requintada tecnologia para esta finalidade.
- Do mesmomodo, várias seitas pseudomísticas, como veremos adiante,
têm meios de canalizar em proveito próprio estes impulsos de rejeição do
idealismo.
- OlivierReboul, A Doutrinação, trad. rev. Heitor Ferreira da Costa, São Paulo, Nacional, 1980, p.88.
- William Sargant,apud Reboul, loc. cit..
- ibid.
- FloConway and Jim Siegelman, Snapping — America’s Epidemic of Sudden Personality Changes, New York, Delta Book, 1979, principalmente caps. 1, 9, 10, 11 e 12.
- William Sargant,A Possessão da Mente. Uma Fisiologia da Possessão, do Misticismo e da Cura pela Fé, trad. Klaus Scheel, Rio, Imago, 1975, p. 25.
- ibid.
- Caruso, loc.
- Uso aexpressão “sentido da vida” não num sentido vago e poético, mas na acepção rigorosa que lhe dá Viktor Frankl em The Will to Meaning, New York, New American Library, 1970.
- Challaye, op., p. 77.
- Théodule Ribot,Psychologie des Sentiments, cit. em Challaye, op. cit., p. 78.
- Ribot, loc.
- Challaye, loc.
- c., “Quelquesremarques sur l’oeuvre de René Guénon”, em Études Traditionnelles, 52e. Année, 1951, ns. 293-294-295, p. 307.