Várias crianças são diagnosticadas com uma enfermidade para justificar seu mau desempenho escolar. Dislexia, hiperatividade, déficit de atenção, déficit do processamento auditivo e deficiência mental são os nomes mais comuns dados ao problema. Porém, o “diagnóstico” feito pelos educadores está correto em menos de 10% dos casos. Isso é o que aponta o trabalho dos pesquisadores do Centro de Convivência de Linguagens, vinculado ao Laboratório de Neurolingüística da Unicamp. Fundado em 2004 pela professora Maria Irma Hadler Coudry, o grupo se destina ao acompanhamento de crianças e jovens a quem foi atribuída alguma doença para justificar o mau desempenho escolar. “Muitas crianças recebem um diagnóstico da escola para justificar suas dificuldades de aprendizagem, mas, quando trabalhamos com elas, percebemos que na maioria dos casos esse diagnóstico não se justifica”, explica Coudry. Muitos pais com filhos diagnosticados com uma enfermidade na escola - diagnóstico que, muitas vezes, recebe respaldo de profissionais da área médica, como fonoaudiólogos - procuram a medicina da Unicamp para tentar tratá-los, e acabam sendo encaminhados a Coudry. “As pessoas me procuram por eu trabalhar com questões de patologia e linguagem. Logo eu tinha uma lista com mais de 10 nomes de crianças com esse mesmo problema, então resolvi montar esse grupo de estudos”, explica. O trabalho realizado no CCAzinho, como é chamado por seus integrantes, vai além da pesquisa científica e envolve também o lado social da questão, dando atenção especial às dificuldades que a criança tem de enfrentar ao receber um “rótulo” de uma deficiência e a exclusão que ela sofre. “O ‘rótulo’ atribuído à criança, seja ‘dislexia’ ou qualquer outro ‘distúrbio de aprendizagem’, repercute de forma negativa em sua vida, pois reforça apenas o que ela não é capaz de fazer, mexendo com sua auto-estima e a desestimulando ainda mais a aprender”, explica a lingüista Michelli Alessandra da Silva, uma das pesquisadoras do grupo. Todas as crianças atendidas pelo centro receberam um diagnóstico que justificava seu mau desempenho escolar. Porém, após avaliação e acompanhamento no CCAzinho, os pesquisadores constataram que das 14 crianças encaminhadas até hoje ao grupo, apenas duas realmente apresentavam uma doença. “Esses diagnósticos geralmente estão errados. O mau sucesso da criança na escola se deve a um conjunto de fatores que, muitas vezes, a escola não considera”, explica Coudry. A falta de acesso a material de leitura; a responsabilidade precoce de ter que ficar sozinho em casa cuidando dos irmãos, ou até mesmo de trabalhar para ajudar a família; a falta de comunicação na escola; o despreparo e a sobrecarga dos professores; e a falta de recursos material e humano nas instituições de ensino são alguns dos fatores apontados pelas pesquisas do grupo como dificultadores da aprendizagem. “São tantas barreiras e empecilhos que chega a ser incrível que algumas crianças consigam aprender num ambiente tão flagelado”, afirma a pesquisadora. Os estudos revelam ainda que a distância entre as tarefas propostas pela escola e a vida da criança é um dos maiores empecilhos para a aprendizagem. Exercícios descontextualizados, tarefas fragmentadas, enunciados equivocados e atividades mecânicas (como ditados, cópia e listas de palavras) não exigem reflexão e não fazem sentido para elas, tornando-se barreiras na hora de aprender. “Como as crianças podem cumprir corretamente uma tarefa que elas não entendem e para qual não vêem sentido?”, indaga Silva. Epidemia “Acho importante esclarecer que em nenhum momento negamos a existência real dessas patologias, o que negamos é que elas tenham se tornado uma epidemia”, afirma Sônia Sellin Bordin, fonoaudióloga e pesquisadora do CCAzinho. E continua: “Quando uma criança nessas condições recebe um diagnóstico de distúrbio de aprendizagem ou mesmo de dislexia, cria-se um ciclo vicioso porque ela passa a corresponder ao diagnóstico recebido e a escola passa a esperar menos dela. Facilita-se sua passagem pela escola, dificulta-se sua entrada ou permanência nos processos de aprendizagens de fato”. Um caso que ilustra bem o problema é o de BN, que foi diagnosticada aos cinco anos de idade como portadora de dislexia. Sem receber atenção da escola, BN foi passando de ano até terminar o ensino médio. Na prova de vestibular, que era de múltipla escolha, conseguiu a pontuação para ingressar no curso de Pedagogia. Mas ao iniciar a graduação, suas dificuldades em compreender e redigir um texto eram tantas que acabou procurando ajuda na Unicamp. Ela não tinha mais idade para participar do CCAzinho, mas mesmo assim foi atendida individualmente por uma pesquisadora do grupo, que a ajudou a enfrentar suas dificuldades. BN conseguiu concluir seu curso e trabalhar na profissão. Outro caso emblemático é o de LS, de nove anos, que por não conseguir ler ou escrever, recebeu o diagnóstico de alteração do processamento auditivo e dificuldade de aprendizagem. Na avaliação para ser atendida pelo CCAzinho, LS mostrou seu caderno, onde havia várias páginas cheias de cópias de seu próprio nome. “Uma das atividades que as crianças que não ‘acompanham’ a classe mais faz é a cópia. Elas apresentam cadernos inteiros apenas de cópia, mas não lêem uma só palavra escrita ali”, explica Bordin. “Essa criança segue todos os dias, quatro horas por dia, nesse compasso. Um dia, alguém resolve que essa criança não aprende porque deve ter algum problema, que supostamente se localiza no corpo da criança”, relata. Aprendendo a entender “Nenhuma das crianças que atendemos hoje tem uma doença, mas todas têm uma dificuldade, e precisamos trabalhar isso”, explica Coudry. Segundo a pesquisadora, é preciso ter “sensibilidade” para perceber os processos de aquisição de linguagem pelos quais a criança passa, e considerar todos os outros fatores externos que interferem nesse caminho. As pesquisas realizadas no centro revelam a diversidade da relação da criança com a fala, a linguagem e a escrita e sobre o modo como o processo de aquisição é conduzido. “É preciso aprender a entender”, afirma. E é isso que o CCazinho se propõe a fazer. Os pesquisadores do centro buscam colocar as práticas da escola mais próximas das crianças, através de atividades que façam sentido para elas, como trabalhar no computador, escrever um jornal, deixar bilhetes para os amigos, criar um roteiro de cinema, encenar peças de teatro, discutir notícias. “Essas são práticas que fazem parte da vida dessas crianças e que portanto fazem sentido para elas”, afirma Coudry. Essa experiência vêm mostrando que as chamadas “patologias” são na verdade dificuldades que podem ser superadas. O resultado já pode ser confirmado: as 10 crianças atendidas hoje pelo centro já apresentaram avanços no desempenho escolar, com sensível melhora da leitura e da escrita. Fonte: ComCiência - Revista Eletrônica de Jornalismo Científico Site: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=3¬icia=369 |
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