METONÍMIA
A retórica tradicional não propõe uma conceituação exacta para a metonímia, e, talvez, por isso, as referências à “metonímia” normalmente encontradas são um reflexo desta atitude geral. Em sentido lato, é a figura de linguagem por meio da qual se coloca uma palavra em lugar de outra cujo significado dá a entender. Ou a figura de estilo que consiste na substituição de um nome por outro em virtude de uma relação semântica extrínseca existente entre ambos. Ou, ainda, uma translação de sentido pela proximidade de idéias. Consiste, assim, na ampliação do âmbito de significação de uma palavra ou expressão, partindo de uma relação objetiva entre a significação própria e a figurada. Nesta definição ampla, a metonímia seria um nome comum a todos os tropos, e abrangeria, principalmente, a sinédoque, que a retórica clássica considera ao lado da própria metonímia stricto sensu, estabelecendo apenas distinções sutis. Em outros termos, podemos dizer que a metonímia coloca uma palavra num campo semântico que não é o seu, baseando-se em agrupamentos onomasiológicos das coisas extralingüísticas, que não coincidem com os agrupamentos semânticos das formas lingüísticas.
As relações objetivas, que conduzem ao emprego metonímico de uma palavra ou expressão, podem ser muitíssimo variadas, mas costumam ser mais lembradas as seguintes:
a) relação entre a parte e o todo _ ex.: cabeça em “cem cabeças de gado”;
b) entre a matéria e seu objeto _ ex.: ouro quando empregado como “dinheiro”;
c) entre um ser e o seu princípio ativo _ ex.: alma em “cidade de cem mil almas”;
d) entre o agente e o resultado _ ex.: mão como “escrita” em “é sua mão!”;
e) entre um ser e alguns de seus traços físicos _ ex.: “respeitemos as cãs”, isto é, “aos idosos”;
f) entre a causa e o efeito ou entre o produtor e o objeto produzido _ ex.: “um Picasso”, isto é, “um quadro de Picasso”;
g) entre o continente e seu conteúdo _ ex.: “beber um copo”, isto é, o conteúdo de um copo;
h) entre o tempo ou o lugar e os seres que se acham no tempo ou lugar _ ex.: a posteridade, isto é, as pessoas do futuro; a nação, isto é, os componentes de uma nação;
i) entre o abstrato e o concreto _ ex.: “o amor tudo vence”, isto é, as pessoas que amam;
j) entre o signo e a coisa que ele significa _ a coroa, isto é, o rei.
A metonímia é, de forma principal, um processo sincrônico pelo qual se multiplicam as ocasiões de emprego de uma palavra além do seu campo semântico específico. Tem uma função importante como recurso estilístico ou estético, porque se presta a destacar aquilo que num determinado contexto é essencial no conceito designado. Como um exemplo de suas vantagens de estilo, basta observar uma numeração do tipo _”sangue, suor e lágrimas” _ usada para sintetizar uma situação crítica de alguém, de um povo, etc. A frase mencionada decorre de três metonímias, em que três tipos de acontecimentos são expressos pelos nomes das manifestações físicas que eles, respectivamente, provocam no corpo humano, ganhando, assim, esses acontecimentos um forte efeito pictórico e impressionista.
O tipo de desvio produzido pela metonímia é, normalmente, menos perceptível de forma imediata do que aquele que, por exemplo, produz uma metáfora. Por isso, na maioria dos casos, uma leitura rápida o aceita de forma automática, sem que sua existência como “desvio” se manifeste claramente na consciência do leitor. A maior parte das metonímias passam despercebidas nas condições normais de comunicação e só serão descobertas mediante uma análise lingüística ou estilística. Posto que a metonímia não é, necessariamente, percebida como uma transferência de denominação por quem a emprega, suas motivações são, muitas vezes, menos conscientes e voluntárias.
Cícero (De Oratore, III, XLII) se mostra bastante reservado quando se trata da metonímia: “ornandi causa proprium commutatum” _ com a intenção de adornar se põe uma palavra “própria” em lugar de outra palavra “própria”. O termo metonímico segue sendo de algum modo “uma palavra própria”, porque sua substância sêmica não se altera. A observação de Cícero, ainda que limitada, é pertinente, porque “adornar” uma elocução é outorgar-lhe um componente estético, e, assim, valorizar a função poética da linguagem, e, por conseguinte, dar-lhe um caráter formal de “literariedade” ou “literaturidade”. Ao mesmo tempo em que pode realçar a substância formal da mensagem, a metonímia completa a função referencial comum da linguagem, superpondo à designação da realidade descrita uma informação sobre a forma especial em que o falante concebe tal realidade.
Há, também, aqueles como Charles Bally, que vêem no deslocamento de referência que se constitui como metonímico um erro de percepção: quem diz “Vejo lá uma vela”, ao ver um barco à vela, o faz porque, positivamente, vendo o barco, somente enxerga a “vela”. Entre as motivações conscientes ou inconscientes do mecanismo metonímico, ocupa, sem dúvida, um lugar importante a busca de uma expressão mais concisa, de um menor esforço, ainda segundo Bally, e, várias vezes, o emprego de uma metonímia não é alheio à função afetiva da linguagem.
Roman Jakobson, na parte de seus estudos em que se refere à metonímia, nela vê a marca por excelência da literatura realista, enquanto que a metáfora caracterizaria melhor uma literatura romântica, ou simbolista. Sendo a metonímia marcada por um deslocamento de referência, é justo pensar-se que um possível efeito estético será produzido _ em primeiro lugar _ devido a este deslocamento, e, mais exatamente, pela direção em que ele se operar. Portanto, a sucessão de deslocamentos, orientados numa mesma direção, constitui-se num processo metonímico, até o ponto de, por meio dele, inscrever-se no texto uma visão particularizada da realidade, bastante afeita à chamada literatura realista. Tal sucessão de deslocamentos metonímicos, que substituem termos mais logicamente esperados pela sinalização de um detalhe mais limitado, mais preciso, mais determinado, etc., contribui para criar uma visão fragmentada da realidade descrita. Um estudo desse emprego estético da metonímia nos permite penetrar no universo imaginário de um escritor, uma vez que, de modo privilegiado, nos proporciona a possibilidade de captar o ponto de vista que leva esse escritor a relacionar-se com o universo real.
Há casos em que a metonímia também funciona por apresentação de imagens: designar a “realeza” pelo “cetro”, pela “coroa”, pelo “trono”, introduz, por exemplo, essas imagens. O mesmo pode ocorrer com a metonímia da parte do corpo que designa a função que ela exerce: os ‘olhos”, pela vista; a “boca”, pela palavra, etc. Aqui encontramos um dos procedimentos privilegiados da linguagem da tragédia clássica: a imagem metonímica, em seu caráter estético, se opõe à imagem associada da metáfora, pelo fato de que não está acompanhada por um processo de abstração e por um menor grau de “imprevisibilidade”, como afirma Michel Rifaterre. A freqüência das imagens metonímicas na tragédia clássica se explicaria por uma harmonia com a estética do gênero e pelas necessidades da linguagem dramática, que admite dificilmente as figuras demasiado “brilhantes” ou demasiado inesperadas: em Fedra, de Racine, a palavra “sangue” designa em sentido próprio o líquido vital que corre nas veias da protagonista, assim como também é o líquido vertido na terra pelo crime, e, por metonímia, o laço orgânico que une os membros de uma mesma família. Desta maneira, é a palavra “sangue” que resume e reúne os temas essenciais da tragédia em questão.
Se em sincronia a metonímia não modifica em absoluto a substância sêmica do lexema utilizado, há que reconhecer que em diacronia a maior parte das modificações feitas a esta substância se explicam pela ação da metonímia e por sua lexicalização. Neste processo de lexicalização da metonímia, é, sem dúvida, por onde se exerce mais claramente a ação da história da civilização sobre a história do vocabulário. Assim, a semântica histórica passou a aplicar o termo metonímia num sentido diacrônico, para indicar a mudança de significação que resulta do emprego sistemático de uma palavra em metonímia, de tal sorte que, pouco a pouco, se perde a relação entre esse emprego e a significação específica, resultando daí mudança de campo semântico para a palavra. Ex.: moeda, cuja origem está em moneta, de monere (em latim “aconselhar”), por causa da locução Juno Moneta _ “Juno Conselheira” _, deusa cuja efígie figurava em dinheiro romano. Há inúmeros casos, também, em que a significação específica é mantida, mas a relação metonímica sofre uma espécie de fossilização e a palavra passa a ter mais uma significação própria, criando-se uma polissemia. Exs.: vapor, empregado como “navio”; tela, como “pintura”; álcool, como “bebida alcoólica”, etc.
Muito freqüentemente se une a metonímia à sinédoque, como faz Du Marsais, no antigo Traité des Tropes, onde tem o cuidado de tentar estabelecer diferenças entre as duas figuras: “a sinédoque é uma espécie de metonímia, por meio da qual se dá um significado particular a uma palavra que, em sentido próprio, tem um significado mais geral; ou, ao contrário, se dá um significado geral a uma palavra que, em sentido próprio tem um significado particular. Em uma palavra: na metonímia, tomo um nome por outro, enquanto que na sinédoque tomo o mais por menos, ou, o menos por mais.”
Entretanto, não há por que conceder demasiada importância a pequenas diferenças entre metonímia e sinédoque, pois, mais que uma diferença de natureza, trata-se de uma diferença de grau: nos dois casos se produz uma modificação que intervém sobre o eixo sintagmático, provocando, por sua vez, um traslado de referência. Sem estabelecer diferença entre as duas figuras (metonímia e sinédoque), Roman Jakobson tenta proporcionar uma base científica à oposição entre metonímia e metáfora: “toda forma de transtorno afásico consiste em alguma alteração, mais ou menos grave, da faculdade de seleção e substituição ou da faculdade de combinação e contextualização. A primeira suprime a relação de similaridade e a segunda, a de contigüidade. A metáfora resulta impossível na alteração da similaridade e a metonímia, na alteração da contigüidade.”
No mesmo estudo, Jakobson considera a contigüidade como uma relação externa e a similaridade como uma relação interna. Desta forma, oferece a possibilidade de se estabelecer uma teoria lingüística da metáfora e da metonímia, que poderia permitir a reconstrução de uma semântica coerente e manejável.
Michel Le Guern, para distinguir melhor, chama a relação externa de referencial, ou, simplesmente, de referência. Por outro lado, um semema apresenta uma relação interna entre dois elementos de significação _ ou semas _ que o constituem. Colocando-se esta distinção no contexto da análise de Jakobson, diz Le Guern, podemos esperar que o processo metafórico seja concernente à organização sêmica, enquanto que o processo metonímico apenas modificaria a relação referencial. A metonímia se caracteriza por um deslocamento com respeito à relação normal entre a linguagem e a realidade extralingüística, ou, preferindo-se, podemos dizer que ela incide sobre a referência: “por exemplo, se eu convido o leitor a reler Jakobson, isto não supõe de minha parte uma modificação interna do sentido da palavra “Jakobson”. A metonímia que me faz empregar o nome do autor para designar uma obra opera sobre um deslizamento de referência; não se modifica a organização sêmica, mas a referência se constitui deslocada do autor ao livro”.
Usando a terminologia de A. J. Greimas podemos dizer que o lexema que forma metonímia (ou sinédoque) não é sentido como estranho à isotopia em que se insere, salvo em casos particulares muito raros. Ao contrário, a metáfora aparece imediatamente como estranha à isotopia do texto no qual está inserida, ou sua imagem não funcionará. Ainda, conforme Greimas, considerando-se o quadro de uma semântica discursiva, a metonímia é o resultado de um procedimento de substituição pelo qual substitui-se um dado sema por outro sema hipotáxico (ou hipertáxico), pertencentes ambos ao mesmo semema. Desse ponto de vista, acredita ele, podemos considerar a metonímia como uma metáfora “desviante”.
À primeira vista, há algo de paradoxal no fato de relacionar-se a metonímia, conforme Jakobson, com um eixo lingüístico de combinação. Como todos os tropos, a metonímia se define por um deslizamento paradigmático: trata-se da substituição de um termo próprio por uma palavra diferente, sem que a interpretação do texto resulte distinta. Assim, confirma-se, aparentemente, uma operação de seleção. Mas, seria uma incoerência se estabelecêssemos o princípio da independência relativa das faculdades de seleção e de combinação, entre os eixos paradigmático e sintagmático. O próprio Jakobson mostra que as concretizações pelos usuários não são mais que a projeção do eixo paradigmático sobre o sintagmático. E, ainda, segundo ele, a função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. Desta forma, os dois eixos estão naturalmente em uma relação de interdependência, que se manifesta constantemente no ato de falar, ou de escrever. Com a intenção de compreender melhor o conjunto da questão em sua complexidade, há que se considerar a seleção e a combinação em suas relações com a função referencial da linguagem, pois não há, no caso da metonímia, uma alternativa puramente lingüística. Trata-se de estabelecer uma combinação entre uma entidade lingüística e uma realidade extralingüística. A metonímia proporciona um magnífico exemplo de um tipo de solidariedade que se estabelece na linguagem entre a relação referencial e o sintagma, no eixo combinatório. Assim, a relação metonímica é uma relação entre objetos, vale dizer, entre realidades extralingüísticas, e tem por base uma relação existente com o referente real, no mundo exterior, independentemente das estruturas lingüísticas que podem servir para expressá-la. A análise do processo metonímico permite, então, confirmar a existência de um parentesco muito estreito, ou, poderíamos dizer, de uma “solidariedade”, entre a função referencial da linguagem e a atividade de combinação num eixo sintagmático.
Assim, uma coisa bem marcante ocorre com a metonímia: ela não cria uma relação inteiramente nova entre os dois termos que associa, porque os objetos que estes termos designam em seu sentido próprio estão já relacionados na realidade exterior, inclusive, antes que sejam momeados e independentemente da maneira como o são. Então, não se trata de uma relação rigorosamente objetiva, considerando-se que a linguagem não pode ser uma cópia direta da realidade existente; supõe, necessariamente, uma interpretação intelectual. Se, por metonímia, a palavra “coração” designa certos sentimentos, isto não significa que exista uma relação real entre o coração e esses sentimentos, mas, que em uma época dada da história da língua, a crença na influência do coração sobre a produção de certos movimentos afetivos permitiu a criação de uma metonímia que, naquele momento, se considerou fundada sobre uma relação objetivada.
Uma outra idéia é que, na medida em que é possível traduzir a metonímia por um equivalente que suprima a figura, agregando ao enunciado unicamente a formulação explícita da relação que constrói a alteração de referência, nada se opõe a que pudesse ser interpretada quase como elipse. Voltando à classificação tradicional dos diferentes tipos de metonímias, podemos constatar que a cada categoria corresponderia a elipse de um termo particular a esta categoria, mas comum a todos os casos que se considerem: 1. A causa pelo efeito: elipse de “o efeito de”; 2. O efeito pela causa: elipse de “a causa de”; 3. O continente pelo conteúdo: elipse de “o conteúdo de”; 4. O nome do lugar em que a coisa acontece pela própria coisa: elipse de “produto fabricado em”; 5. O signo pela coisa significada: elipse da “realidade simbolizada por”. A lista poderia ser facilmente completada. Assim, todas as categorias da metonímia, em sentido estrito, correspondem à elipse da expressão de uma relação que caracteriza cada categoria. Realmente, isto apenas estabelece a possibilidade de um parentesco estreito entre a metonímia e a elipse, sem provar, propriamente, sua existência. Não obstante, esta hipótese, à qual nada se opõe no plano teórico, pode ser considerada se observarmos o modo como os falantes não predispostos a favor de tal ou qual concepção teórica explicam espontaneamente as metonímias: com freqüência, como modificação do enunciado proposto, só apontam a inserção de um elemento cuja elipse produzisse a metonímia. Por outro lado, se a metonímia puder ser explicada por uma elipse, é evidente que seu mecanismo opera sobre a disposição do relato no sentido do eixo sintagmático. Mas esta análise é válida unicamente para a metonímia propriamente dita. As dificuldades que se encontram para aplicar esta explicação por elipse à sinédoque seriam suficientes para justificar que, tradicionalmente, se estabeleçam distinções sutis entre metonímia e sinédoque.
Enfim, o fato de que a metonímia se explique por uma elipse permite dar conta de outra de suas possíveis motivações: para suprir as insuficiências do vocabulário de uma língua, pode recorrer-se com toda naturalidade ao mecanismo metonímico, designando um objeto que não tem nome na língua dada por um outro objeto que com ele guarde uma relação evidente.
Bibliografia
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa (edição revista e ampliada), Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 37ª ed., 1999; ELIA, Sílvio. Dicionário Gramatical Globo, Rio de Janeiro/ São Paulo/ Porto Alegre: Ed. globo, 3ª ed., 1962; GREIMAS, A. J. e COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica, São Paulo: Cultrix, s/d; JAKOBSON, Roman. Essais de Linguistique Générale, Paris: Les Éditions de Minuit, 1963; LE GUERN, Michel. La Metafora y La Metonimia, Madrid: Ediciones Catedra, 1976; MATTOSO CÂMARA Jr., Joaquim. Dicionário de Lingüística e Gramática, Petrópolis: Vozes, 11ª ed., 1977; RIFATERRE, Michel: Essais de Stylistique Structurale: Paris: Flammarion, 1971.
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