segunda-feira, 3 de maio de 2010

A INFÂNCIA DOS TRÊS PORQUINHOS, um olhar psicopedagógico.


A INFÂNCIA DOS TRÊS PORQUINHOS
 
por Rubem Queiroz Cobra






Os três porquinhos! Um muito inteligente, outro nem tanto, porém trabalhador, e o terceiro, preguiçoso e imprevidente. Mas, por que têm eles três “personalidades” diversas, e até mesmo opostas? Pois não eram três irmãos, nascidos e crescidos na mesma família?

Não é de admirar. Entre os humanos também acontece isto, de uma família ter um filho mais inteligente, um outro que não é nada brilhante, mas que pode ser útil ao pai ou à mãe, e outro ainda que é o filho problemático, difícil. E não são três irmãos, da mesma família, apenas com idades diferentes? Os pais não compreendem porque aquele filho, ao qual educaram para o bem, como aos demais, saiu-lhes ao contrário dos outros, tornando-se a ovelha negra da família. Não parece filho deles e chegam a suspeitar que tenha acontecido uma troca na maternidade...

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Para compreender como tudo começa, vamos nos fazer hóspedes invisíveis e sentar à mesa do almoço com a família Silva, cujo caçula é um filho problema. Somente quando recebe visitas a família Silva goza de uma refeição sem brigas e consegue chegar à sobremesa sem choros e recriminações. Uma vez que estamos invisíveis, não vamos perder o mais importante: as discussões que levam a Sr. Silva à fúria, a Sra. Silva às lágrimas, e deixam a ambos, o Sr. e a Sra. Silva, convencidos de que a causa de tudo foi o filho problema, que se desentende com eles e com os irmãos.
O Sr. Silva e a Sra. Silva não percebem que eles mesmos começam a crise à mesa do almoço, pois não estão alertados para os preconceitos que têm em relação aos seus filhos. Mas nós podemos observar que o Sr. Silva trata o filho mais velho com muito respeito, e a Sra. Silva, a filha do meio com mais atenção, e que ambos se voltam sempre um pouco impacientes para o caçula, o filho problema. A Sra. Silva inicialmente o trata com doçura, mas o seu cenho franzido indica que isto é apenas o começo do jogo. As observações do Sr. Silva vão fazendo crescer a tensão e a impaciência de todos, e mesmo que falte um “grande” motivo como no dia que o caçula traz seu péssimo boletim escolar, basta que diga não gostar de cebolas e a discussão começa.

Vamos, em seguida e facilmente, a uma segunda constatação. Nós percebemos com clareza que é na hora das refeições que a família Silva põe em prática uma coisa descoberta por um respeitado psiquiatra inglês, Ronald David Laing. A essa coisa que descobriu, o Dr. Laing chamou Política da Família. Para compreender a problemática da família Silva, e por que motivo na família Silva existe um filho problema, precisamos dessa idéia brilhante do Dr. Laing, a de “política da família”, e vamos observar como o Sr. e a Sra. Silva usam os instrumentos dessa política.

Mas, em primeiro lugar, vamos clarear bem qual é a idéia do Dr. Laing, do que é a política da família. Ele verificou em sua clínica para doentes mentais que os pais, sem o perceber, dão a um dos filhos um tratamento discriminatório capaz de levá-lo à loucura, e criam uma verdadeira política ao fazerem com que os seus irmãos o tratem do mesmo modo, isto é, como um sujeito errado e maluco. E porque é tratado assim por toda a família, o filho eleito para essa provação de fato se torna louco, seus próprios pais e irmãos o levam à loucura. Dr. Laing obteve grande sucesso e tornou-se mundialmente famoso com sua técnica simples de curar loucos, que era simplesmente a de convencer o doente de que não precisava mais acreditar que fosse realmente louco.

Dirá o leitor que vai uma diferença muito grande entre um filho problema e um filho demente, mas a minha opinião é de que não há diferença importante, pois o filho problema só não é oficialmente um louco, e por isso geralmente vai parar na prisão e não em um hospício. De qualquer modo, o que afirmo é o poder que tem a política da família para criar o filho problema. Pois se tal política é tão eficaz a ponto de fazer uma pessoa sã virar louca, terá poder para qualquer outra coisa de menor peso, como levá-la ao vício e ao crime ou deixá-la lúcida, porém incapaz.

O filho problema, quando ainda criança, é o que escapa totalmente ao controle dos pais, não faz o que lhe dizem, não se deixa dominar, passa o tempo fora de casa, não diz a que horas tenciona estar de volta, não se interessa por ler nem por escrever e, por último, não se aflige com nada. No estágio crítico, ele está envolvido com drogas e com o crime, passa por várias instituições de tratamento e reeducação, necessita freqüentemente ser salvo de embaraços financeiros que terminam por comprometer o patrimônio da família, envolve-se em escândalos, e finalmente desaparece de cena, ou porque vai preso, é vítima de um acidente, é aniquilado por uma gang, ou simplesmente vai atuar em outra praça.

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A Política da Família não é apenas o modo como os pais rebaixam ou promovem seletivamente seus filhos, mas o modo como todos os membros da família agem com respeito uns aos outros, ou como cada membro se dá bem com um e com outro, ou persegue a um e faz o outro útil para si, ou lhe é indiferente. Nela se infiltram até os empregados da casa, tomando partido e fazendo intrigas. Ter uma política de família não é privilégio das famílias ricas nem das famílias mais cultas. Essa diabólica sofisticação na seleção de alvos para o êxito e para o fracasso é praticada também nas famílias mais pobres e mal estruturadas. Onde a promiscuidade é grande, participam dela todos que estiverem sob o mesmo teto: pais, avós, tios e primos, e mesmo em um orfanato existe, sob esse aspecto, uma família.
Para tão diversificados ambientes e personagens, é forçoso, então, que os instrumentos do preconceito e da exploração acabem por variar muito, variar na sua linguagem, nos seus modos de ferir mais diretamente ou com mais sutileza, passando da simples e cruel pancadaria até formas astuciosas de convencimento. E os resultados, ao final, também variarão desde o internamento em uma clínica de luxo ao internamento numa escola correcional, dos escândalos da alta sociedade ao tiroteio na favela, do recurso a um psicólogo ou a um policial.

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Laing diz que o melhor modo de fazer alguém se tornar um certo tipo de pessoa é através de “atribuições”, ou seja, é dizer-lhe que ele já é aquele tipo que, na verdade, ainda se deseja que ele venha a ser. “É minha convicção”, diz Laing, “que a maioria das instruções que recebemos no princípio e no fim da nossa educação nos é transmitida sob a forma de atribuições. Dizem-nos que as coisas são de determinada maneira, e nós aceitamos. Por exemplo, dizem-nos que somos um bom ou um mau rapazinho. Poderíamos ser qualquer das duas coisas, mas, uma vez que somos uma delas...” Se é dito à criança que ela é um bom menino ou uma boa menina, ele ou ela assumirão o papel de bom menino ou boa menina. Será ainda melhor se uma terceira pessoa transmite para ela a opinião ouvida a seu respeito. Isto tem muito a ver com o hipnotismo.
As ordens hipnóticas não são determinações claras, porque não são dadas na forma de instruções. Por exemplo, o hipnotizador não ordena à pessoa hipnotizada que sinta frio. Ele diz que está fazendo frio, que a pessoa hipnotizada está sentindo frio, ou que ela está alegre, ou que ela está triste, e então ela sentirá frio ou ficará alegre ou triste como lhe é dito o que ela sente ou como está. Na opinião de Laing uma criança começa a sua aprendizagem num estado semelhante, pois os seus pais farão que seja uma certa coisa apenas lhe dizendo que ela já é aquilo que querem que ela seja. Não lhe dirão para ser desobediente; os pais lhe dizem que ela é desobediente. Dizer à criança para fazer alguma coisa, dizendo-lhe, ao mesmo tempo, que ela é uma criança desobediente (ou que não presta), equivale a querer ser desobedecido, porque já lhe indicam que ela não faz o que eles querem. Deste modo, a criança aprende que é desobediente e de que modo deve mostrar sua desobediência no contexto particular da sua família.
A técnica que o Dr. Laing exemplifica com as frases abaixo é eficaz para tornar a criança teimosa, tímida ou descuidada, assim como para, ao contrário, fazê-la dócil, obediente e útil.
“Estou sempre a tentar que ele faça amigos, mas ele é tão voltado para si mesmo. Não é verdade, querido?”
“Ele é tão teimoso. Nunca faz aquilo que eu lhe digo para fazer. Não é verdade, filho?”
“Estou sempre a dizer-lhe que seja mais cauteloso, mas ele é tão descuidado; não é filho?”
“Ele sabe distinguir por si próprio o bem do mal; nunca tive de lhe dizer para proceder em conformidade com esses princípios.”
“Ele faz tudo sem eu ter que lhe pedir.”
“Ele próprio sabe quando deve parar.”
Dr. Laing pergunta: “Até que ponto é conseqüência de hipnose interessada aquilo que normalmente sentimos? Até que ponto aquilo que somos é conseqüência de uma ação hipnótica visando que sejamos assim? Uma relação entre duas pessoas pode ser tão forte que uma seja levada a ser o que a outra pretende através de um simples olhar, toque, ou mesmo por um discreto tossir, sem ser preciso dizer nada.”
Algumas atribuições são projeções.
É obrigatório projetar o mal naquilo que constitui o Inimigo, seja ele quem for; e é obrigatório negar que essa ação seja uma projeção. A Sra. Silva detesta sua sogra e acha que sua filha se parece com ela. Embora possa jurar que isto em nada diminui seu amor pela filha, não é assim que parece a um observador de fora da família. Ao projetar a sogra em sua filha, para ela a criança assumirá o valor da sua sogra: isto é a projeção. Porém, será ela capaz ou não de induzir a filha a encarnar sua avó paterna? Sim, bastando repetir-lhe que ela é igual à avó ou se parece com ela.
A projeção é efetuada pela Sra. Silva conforme a sua própria experiência em relação à sogra, portanto, obviamente ela projetará na filha aquilo que, em sua sogra, é a causa de seu desafeto. As boas qualidades da sogra serão ignoradas nessa projeção.
A filha da Sra. Silva poderá começar a agir e sentir como a sogra de sua mãe, mesmo que nunca a tenha conhecido. “Na realidade, é até mesmo absolutamente possível induzir alguém, através das minhas ações, a sentir e agir como alguém que eu próprio posso nunca ter conhecido”, diz Dr. Laing.

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As desconsiderações são outra manifestação da antipatia inconsciente dos pais por um determinado filho. Os maltratos físicos são todos eles formas violentas de desconsideração, mas poderão não ter o mesmo efeito que têm as desconsiderações verbais que negam a pessoa, que fazem a criança sentir-se envergonhada, estúpida ou suja. Estas acontecem quando as coisas lhe são ditas com visível repugnância pela sua pessoa: “Não dê palpites!”, “Não se intrometa”, “Esfrego o seu nariz nisso que fez”, são exemplos.
Mas Laing descreve algumas formas muito sutis de desconsideração, nem por isso menos poderosas. Dá um exemplo, que ficou muito conhecido, do modo como certa mãe recebe o bebê em seus braços. Ela tinha no colo uma criança de seis meses e nem uma só vez correspondeu aos seus sorrisos com um sorriso seu. Mas, quando era ela que provocava os sorrisos no bebê, fazendo-lhe cócegas e brincando com ele, então ela sorria também, mas respondia com um olhar inexpressivo sempre que era o bebê quem tomava a iniciativa de lhe sorrir.
Outro exemplo de Laing veremos repetir-se à mesa da família Silva, quando a Sra. Silva passar um prato feito ao caçula, que é o filho problema: o prato será passado com um gesto mecânico, sem qualquer reconhecimento, “de modo que o outro o pegue dois segundos antes de tornar-se um peso morto”.

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O termo injunção tem, na teoria do Dr. Laing, o sentido de proibição de sentimentos. A injunção consiste em uma programação imposta à criança que diz o que ela deve e não deve fazer. Proibições do comportamento livre como “Não faça barulho”, “Não fique por aí”, “Não ria”, “Não cante" correspondem à injunção “Não seja feliz”, e pertencem a essa categoria de exigências opressivas, feitas comumente pelos pais e adultos à sua volta. A injunção “Não seja feliz” pode ser dada com grande intensidade e, neste caso, a mínima expressão de felicidade pode trazer severa repressão. A injunção “Não seja feliz” corresponde à antipatia que os pais têm por todas as formas de felicidade que um determinado filho manifesta.

Uma injunção como “Não seja espontâneo” pode ser dada por instruções como “Não corra para ser o primeiro”, ou “Seja sempre um cavalheiro”, “Peça desculpas”, “Não incomode as pessoas”, “Faça o que lhe dizem e não faça perguntas”, etc.

As proibições são especialmente duras porque existe para a criança a proibição de questionar as proibições: é proibido indagar porque é proibido. A injunção “Seja prestativo para seus pais” incluiria, certamente, proibições tais como “Não pense”, “Não seja vadio”, “Não discuta”, “Não esqueça”, etc. Uma proibição poderá ainda não ser dada verbalmente, mas constituída pelo persistente reforço do comportamento desejado e reforço negativo para o comportamento oposto, através de desconsiderações.

As regras negativas podem gerar ações que elas próprias proíbem. As proibições podem ser dadas de modo inconsistente e não convincente, e até maldoso, quando é pelas próprias proibições que a criança aprende sobre algo proibido, ou seja, a proibição quebra a inocência da criança. Diz Laing: “Podemos verificar, por experiência direta, que algumas ordens negativas têm um efeito paradoxal, induzindo a pessoa a fazer aquilo que lhe disseram para não fazer.” Exemplo: “Espero que não fique grávida antes de poder cuidar do seu bebê”, dito a uma menina que não chegou à idade nem ao risco de ficar grávida.

Somos instruídos no sentido de sermos honestos. Mas também somos instruídos a efetuar operações destinadas a levar vantagens que não podem escapar à designação de desonestas. Neste caso, a verdadeira instrução para a criança é de que ela seja espertinha e use duas medidas. Se aquilo que lhe deram instruções para atingir não é atingível pelo modo como lhe ensinaram, esta é uma dificuldade que pavimenta o caminho para os estados ansiosos.

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Ao fazerem atribuições a seus filhos, os pais tendem a seguir uma regra que eu chamo “das três atribuições básicas”. Se têm três filhos, eles usualmente buscam fazer de um deles, geralmente o mais velho, a criança prodígio (enquanto lhe é fácil obter êxito, ele é uma criança feliz; quando cresce e encontra competitividade, sente-se despreparado e ressentido com os pais). Outro filho, provavelmente o segundo, será treinado para ser responsável e prestativo, útil à família sob variadas formas (pode mostrar seu ressentimento esquecendo tarefas, guardando objetos fora do lugar, confundindo recados, mas, depois de adulto, poderá ser útil aos pais até o fim). Outro, possivelmente o terceiro, será treinado para ser o filho difícil, repulsivo e estúpido, ou mesmo o “bobo” da família, podendo, no entanto, ser charmoso e desligado, ou muito linda, se for mulher (aceita o seu fado ou o sacode, abandonando o lar). Essa ordem pode, é claro, ser modificada, pois se há preconceito contra filhos do sexo feminino, o preferido será um filho homem, ainda que seja o último a aparecer. No caso de mais filhos, diluem-se as posições, compartilhadas por dois ou mais, e até mesmo o caçula, geralmente o filho difícil, quando vem depois de muitos anos de diferença para os outros filhos, pode destronar o predileto para tornar-se ele o preferido.

Para conseguir seus propósitos quanto às mencionadas três atribuições básicas, os pais não precisarão mais que dizer a cada filho, respectivamente, por exemplo, que ele é inteligente, ou que é prestativo e útil, ou que é um fracasso, atribuições que as crianças aceitam sem duvidar. Para reforçar essas atribuições fundamentais, os pais presentearão os filhos de acordo: ao mais velho darão livros e jogos que requeiram reflexão ou o que quer que esteja em relação com a excepcionalidade que buscam desenvolver nele. Ao segundo, darão miniaturas de oficinas ou, se é uma menina, ferrinho de engomar, vassourinhas, miniaturas de cozinhas e lavanderias, etc. Ao mais novo, no caso o perdedor (ele aprende a não esperar muito nas datas de seu aniversário, que inclusive caem sempre em dias inconvenientes para a família), não se dão ao trabalho de escolher muito para presenteá-lo, ou escolhem dar-lhe coisas que não sejam bem o que ele gostaria de ganhar.

Em um inquérito que fiz entre meus alunos, somando um total de 71 famílias e envolvendo 350 jovens, o irmão problemático nunca foi o mais velho dos irmãos de sexo masculino. Houvesse um fator hereditário, haveria também um percentual de filhos problemáticos entre os primogênitos. O inquérito revelou ainda que o filho que é problema para o pai pode ser diferente do filho que é problema para a mãe, e, quando a família é grande, parece surgir um quarto tipo de irmão, sobre o qual o entrevistado nada tinha a declarar. Esse quarto tipo correspondia a um filho, ou filhos, poupados do determinismo dos pais e em condições de gozar de um mínimo de liberdade e fugir ao caos familiar.

Excluírem-se das brigas e existirem como sombras discretas talvez lhes permitirá apresentarem-se, mais tarde, como os verdadeiros vitoriosos, embora não muito felizes, pois ficaram limitados a possibilidades escassas de escolha, para que pudessem escolher discretamente.

Não importa, no entanto, quantos e quão variados tipos, bons ou maus, possa a política da família criar em seu seio. O que importa é que mesmo um tipo “bom” não é verdadeiramente bom, porque não representa uma personalidade desabrochada em todo o seu potencial. Não é um filho que tenha contado com todas as possibilidades correspondentes aos seus dons e talento, livre e respeitado, estimulado e amado pela família. O fato é que desde o nascer, ou mesmo desde antes do nascer, aquela criança já estava predestinada a receber um determinado rótulo, a ser preparada para um determinado papel.

Por quê?

A capacidade inata de reconhecer o que é bom e o que é mau na competição pela sobrevivência tornou-se, com a civilização, em reconhecer o bem e o mal para os costumes, e o belo e o feio para a estética, juízos que, no entanto, não superam por completo as formas residuais de juízos instintivos sobre o bom e o mau, que formam as preferências e os preconceitos. Talvez, por força desse julgamento primitivo – que leva as pessoas a terem na caderneta os nomes daqueles com quem elas não simpatizam desde o primeiro instante que os vêem –, o Sr. e a Sra. Silva estejam habituados a ver um mundo dividido – no qual o mau lhes parece predominar –, e levaram essa divisão gratuita para dentro do lar. Estão, portanto, predispostos – sem o saber –, a ver também os seus filhos divididos entre bons e maus, e isto os cega para o fato de que são iguais.

Entre outras várias razões possíveis, estão aquelas de natureza estritamente psicológica, como o fato de o casal haver feito planos para ter apenas dois filhos, e, portanto, o terceiro não era desejado, ou porque se esperava que o mais velho fosse um homem, e nasceu uma menina, ou pelo temor de que a filha fique mais bonita que a mãe, etc.
Pode haver uma razão ainda mais sutil, como as que expõe o Dr. Laing. Pode ser, por exemplo, que os pais, apesar de terem passado pela cerimônia do casamento com várias dezenas de pessoas como testemunhas, não sintam seu casamento uma realidade e seus filhos como uma experiência real de ter filhos. Pode ser que o Sr. Silva nunca se tenha sentido “psicologicamente” casado com a Sra. Silva ou vice-versa, e que a situação de particular antagonismo com um dos filhos tenha raiz na falta de entusiasmo de ambos, ou de um deles, em relação à família. Ou pode ser uma espécie de programação atávica, espécie de hipnose que os pais sofreram quando eles próprios eram crianças, e que agora aplicam aos seus filhos, passando-lhes as instruções recebidas e deste modo hipnotizando-os também, de modo a que estes, futuramente, hipnotizarão, também, os próprios filhos. Neste caso, o Sr. e a Sra. Silva não percebem que estão a agir como mensageiros de instruções anteriores, e isto porque uma das instruções transmitidas é que se não pense que se está recebendo instruções. Sob hipnose, a pessoa visada vai realmente sentir; e não sabe que sofreu os efeitos de uma hipnose para sentir.

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Evitar criar ovelhas negras significará menos viciados, menos desocupados, menos lares traumatizados.
Dirá o leitor bem intencionado que o amor cristão é o antídoto, é o remédio, contra todas as formas de preconceito. Mas este amor não pode ser amor à criança rebelde e problemática, ou ao jovem transviado, uma caridosa resignação dos pais e irmãos em aceitá-los como a uma cruz, do jeito que eles são. Isto seria lavar as mãos e manter o preconceito. Tratando-se ainda de uma criança, basta descobrir e pôr um fim à política preconceituosa; a consideração e o respeito farão o resto.
No caso do jovem, é necessário que os pais o vejam como igual aos irmãos: a diferença está no que fazem, e não no que são essencialmente, e por isso mesmo será possível que ele mude o que faz, porque não é a sua natureza que ele tem que mudar.
Mas pode ser também que as coisas se resolvam para o filho problemático devido ao grande poder que uma pessoa tem de se auto-resgatar, pela via da razão ou com a ajuda da sua religião. Melhor ainda se for suficientemente forte para despertar, além de si mesmo, também os demais membros da família, do sono hipnótico em que os irmãos desempenham seus papéis de “maus”, de “bons” e de “úteis”, e os seus pais o papel inconsciente de “pais”, que herdaram de seus pais.

Rubem Queiroz Cobra

NOTA: Este conto está no livro de R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85-905519-1-1. Veja, por favor, como adquirir na página Livros do Autor. O texto foi primeiro publicado em livreto intitulado: A Infância dos Três Porquinhos: Lição a Pais e Mestres. Autoria de A. Rubenco, pseudônimo de R. Q. Cobra. Editora Valci, Brasília, 1991. As citações de Ronald David Laing são de A Política da Família (Ed. Martins Fontes, S. Paulo, s/d) e O Eu e os Outros (Ed. Vozes, Petrópolis, 1972).


Fonte.:http://www.cobra.pages.nom.br/ctp-tresporq.html

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