Por Lokasaksi Dasa
Muitas foram as realizações da antiga civilização da Índia na esfera da cultura, arte, arquitetura, matemática, astronomia e ciência. Mas o feito mais importante deu-se no campo do pensamento, onde, numa síntese harmoniosa, se conciliava as atividades práticas da existência com a filosofia, o misticismo e a religião. Esses aspectos da existência não se colocavam numa hierarquia excludente, mas sim como estágios necessários no progresso e evolução do ātmā, o “si mesmo” em direção à sua autorrealização, no mundo, no ser, ou em Deus.
A filosofia da Índia não seria apenas um exercício da razão. Ela, ao contrário do ocidente, que tem uma abordagem teórica de discussão infinita, a filosofia, deve ser “vivida”, “praticada” e não meramente “discutida” ou “teorizada”. O fim do conhecimento não é o próprio conhecimento, mas sim a transformação que ele traz e produz no ser.
A palavra em sânscrito utilizado para “filosofia” é darśana, que vem da raiz verbal dṛś “ver” ou “observar”, significa literalmente “ponto de vista”. Assim, darśana é um modo de ver, uma percepção, um modo epistemológico de conhecer a natureza das coisas. Os sábios hindus tinham discernimento para observar as coisas com seu olho interno, com sua visão intuitiva. Não se tratava meramente de um exercício intelectual, mas de procurar sempre uma visão da verdade. Mesmo a religião inseria-se nesse contexto. Filosofia sem devoção seria mera especulação mental que leva ao ceticismo. Já a religião sem filosofia seria mero sentimentalismo que leva ao fanatismo.
Para que o espírito pudesse elevar-se para além das tendências condicionantes da ilusão e realizar a sua natureza intima e última, as tradições místico filosóficas da Índia utilizavam sistemas práticos de disciplina, que teria como resultado “a evolução”, “o equilíbrio”, “a concentração”, “a meditação”, “a beatitude” ou “a devoção amorosa”. A Realidade última ou a Verdade absoluta, dependendo da técnica ou prática (sādhana) utilizada, poderia ser interpretada ou realizada de diferentes maneiras.
vadanti tat tattva-vidas tattvaṁ yaj jñānam advayam
brahmeti paramātmeti bhagavān iti śabdyate
“Os videntes que realizaram a Verdade chamam essa substância não-dual de Brahman ‘o Ser Absoluto’, Paramātman ‘a Alma Suprema’ ou Bhagavān a ‘a Personalidade todo Opulenta” (Śrīmad-Bhāgavatam, 1.1.12).
O conceito da unidade na diversidade pode ser considerado o maior empreendimento filosófico da tradição védica, nas suas vertentes ária (nigamas ou vedas) e drávida (āgamas ou tantras); bem das outras tradições que ali se desenvolveram paralelamente.
À luz das “histórias da filosofia”, escritas por ocidentais, pouco destaque é dado ao pensamento do Oriente. Como enfatiza E. Dussell, na sua crítica ao pensamento filosófico europeu, a Índia não passa de uma colônia e uma cultura de periferia para o nobre pensador ocidental.
Fazer uma história da filosofia indiana não é algo tão fácil como foi com a história das filosofias europeias. Nunca foi uma das características do povo oriental a preocupação com datas históricas. Durante milhares de anos, os indianos não registraram os primórdios de sua história, e, conforme Aghilar: “É difícil encontrar um povo que tenha menos laços históricos”. A falta de interesse da Índia antiga pela história não se deve a uma incapacidade primitiva de manter os registros; em vez disso, ela aceitou a versão das escrituras védicas como suficiente. Sua visão histórica era mítica.
A grande maioria dos chamados orientalistas, escritores do final do século XIX e início do século XX eram alemães, ingleses e franceses e tiveram grande influência na formação do quadro histórico da Índia. Estes orientalistas, como H.H. Wilson, Max Muller, P. Deussen e outros, induziram os autores hindus a equívocos, na medida em que estes se apoiavam em seus textos em suas referências cronológicas.
Contudo, considerando a própria tradição védica, podemos classificar os darśanas ou sistemas filosóficos oriundos da Índia em dois grupos bem distintos:
1) Nāstika (na āsti “isto não é”) – Sistemas heterodoxos, que, negando a inefabilidade e autoridade dos Vedas, como escrituras reveladas, não se preocupam em estabelecer-se com base na autoridade dos Vedas.
2) Āstika (āsti “isto é”) – Sistemas ortodoxos, que se procuram em harmonizar suas doutrinas filosóficas com a dos Vedas e dos Upaniṣads.
Do ponto de vista histórico, com exceção da escola ortodoxa (āstika) Pūrva-mīmāṁsā, os darśanas representam, cada um de sua forma, a transição de uma visão dogmática das fontes de conhecimentos para um exame do próprio conhecimento. A tradição védica ária do bramanismo ritualístico e sacrifical, sendo contestado pelas heterodoxias do Charvakismo, Jainismo e budismo, seria levada, com o auxílio da tradição védica drávida, a resgatar e aprimorar ao máximo sua tradição mística filosófica. A partir de então a Índia presenciaria um autêntico renascimento, onde a tradição védica, com seus respectivos darśanas, consolidaria o que é hoje conhecido por Sanātana Dharma, ou seja, o hinduísmo.
Darśaṇas Heterodoxos
As escolas materialistas de Cārvaka e Jaina e a niilista de Buddha foram os darśanas heterodoxos, que, apesar de, com suas respectivas teorias, negarem a existência de Deus e a integridade espiritual da alma eterna, contribuíram para a agitação e renovação intelectual e espiritual que floresceu na Índia na mesma época em que surgia Sócrates (469-300 a.C.) na Grécia, Confúcio (551-479 a.C.) na China e Zoroastro (618-541 a.C.) na Pérsia.
Darśanas Ortodoxos (ṣaḍ-Darśanas)
Os seis darśanas ortodoxos constituem os sistemas clássicos da filosofia da Índia. Eles possuem características em comum. Todos surgiram das Upaniṣads, a parte filosófica dos Vedas cuja sua autoridade é inquestionável. Como os próprios Vedas as Upaniṣads são consideradas apauruṣeya, ou seja, não sendo o produto da mente humana, mas recebidas intuitivamente pelos ṛṣis (sábios videntes). Seu estilo é na forma de sūtras, ou aforismos, que são extremamente concisos e evitando repetição desnecessária e com uma economia rígida de palavras e são:
1) Nyāya – Lógica e teoria do conhecimento, sistematizada por Gautama;
2) Vaiśeṣika – Atomística, sistematizada por Kaṇāda;
3) Sāṅkhya – Enumeração cosmologia, sistematizada por Kapila;
4) Yoga – Psicologia mística, sistematizada por Patañjali;
5) Pūrva Mīmāṁsā – Hermenêutica do karma, sistematizada por Jaimini; e
6) Vedānta (Uttara Mīmāṁsā) – Metafísica, sistematizada por Vyāsa.
O estudo dos seis darśanas geralmente e feito em grupos de dois sistemas. Primeiro temos os sistemas do Nyāya e do Vaiśeṣika que apresentam uma atitude mais cientifica e filosófica que os outros. Depois temos o Saṁkhya e o Yoga, que possuem uma filosofia evolucionista eminentemente mística, e são antes de tudo doutrinas de liberação, cujas origens remontam as Upanisads mais antigas. E por fim encontramos os dois Mīmāṁsās, baseados na revelação dos Vedas, um explicando os rituais dos Brāhmaṇas e o outro sistematizando a teologia das Upaniṣads. Segundo Halbfass, de acordo com suas diferentes genealogias, o Nyāya e o Vaiśeṣika estão preocupados principalmente com a apologética [justificação], enquanto que o Mīmāṁsā e o Vedānta são tradições genuinamente exegéticas [de interpretação].
Lokasāki Dāsa (Lúcio Valera)
Educador, filósofo, cientista da religião e sacerdote vaishnava.
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