Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação: problematizações sobre a ação educativa.
Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume mar., Série 26/03, 2011, p.01-10.
Quando pensamos em educação é inevitável discutir seu papel socializador e seu aspecto representativo da cultura.
O que implica em analisar os fundamentos históricos e filosóficos, já que a educação, em si, só é possível através da transmissão do conhecimento ao longo do tempo, por meio do dialogo, do contato entre as pessoas.
Sem socialização, contextualizada no âmbito escolar, não existe educação.
Sendo necessário, portanto, discutir como e se a educação realmente sociabiliza e se este deve ser o seu principal objetivo.
Uma questão amplamente debatida e ainda não esgotada que originou várias tendências pedagógicas, além de inúmeras propostas de direcionamento educacional.
Antes de entrar nesta esfera, no entanto, é necessário debater o âmago do que torna a educação possível, a socialização e sua relação com a educação.
Socialização e educação.
O que é socialização afinal?
A socialização pressupõe a interação social, a capacidade de integrar-se a um grupo, assimilando padrões sociais.
O que interfere na maneira como o sujeito percebe o mundo, o outro e a si mesmo.
O processo de interação, a socialização, inicia-se no nascimento do sujeito e só se encerra com a morte, fazendo uso da linguagem para interagir e integrar os indivíduos.
Um filme que conta um caso real ilustra bem isto, trata-se do Enigma de Kasper Hauser.
Em sentido amplo, a linguagem, através da cultura, constrói significados, embora a equação inversa também seja verdadeira.
Podemos afirmar que o ser humano, neste sentido, só se humaniza a partir da socialização e da assimilação da cultura.
O que conduz a perguntar o que é cultura?
Poderíamos definir a cultura como um conjunto de valores que une e dá identidade a um grupo, espelhando o conhecimento acumulado por gerações.
Assim, sendo a educação a transmissão e assimilação de conhecimentos, cabe perguntar qual é o papel da educação para que a integração entre as pessoas se efetive?
Responder esta questão conduz a outro tema correlato: o papel da educação em sentido amplo e sua distinção dentro e fora do processo de escolarização institucionalizado.
Educação formal e informal.
Para entender o papel da educação na socialização é necessário discutir a transmissão da cultura dentro e fora da escola.
A educação, a transmissão do saber acumulado pela humanidade, não se concretiza somente na escola, acontece também de maneira informal (sem norma ou forma), não possuindo critérios, horários, hierarquia ou sistema de avaliação.
Neste sentido, a educação informal é produzida a partir das necessidades imediatas da vida, configurando o conhecimento conforme as exigências requeridas para a sobrevivência.
Pensando nesta concepção, o saber escolar muitas vezes se distancia da realidade, impedindo a assimilação democrática do conhecimento e excluindo várias categorias sociais, portanto, limitando o acesso ao saber que confere poder.
A escola é uma instituição, como tal possui normas e padrões, impostos por aqueles que controlam o sistema educacional, visando organizar seu funcionamento.
Diferente da educação informal, o conhecimento escolar é sistematizado, transmitido a partir de critérios e métodos, composto por um saber científico, dogmático.
Embora a idéia, teoricamente, seria a escola criar uma proximidade com a realidade concreta, possibilitando uma flexibilidade de conteúdos.
O grande problema é que a educação formal, sendo hierarquizada, é fruto e reflexo do fordismo, dividindo tarefas e limitando o processo de socialização.
O fordismo educacional transforma os professores em tarefeiros, semelhante ao que ocorreu com operários em linhas de montagem, fazendo, por outro lado, o educando perder a noção do conjunto.
No entanto, de certo modo, a educação formal contém em si a informal, já que o educador não se limita a transmitir conteúdos.
Enquanto o professor exerce uma profissão eminentemente técnica, o educador deveria ensinar e praticar a tolerância com o outro, a convivência pacifica, instigando a curiosidade para conhecer as diferenças, ou seja, incentivando a socialização.
O paradigma do consenso e do conflito.
A socialização é o centro de duas visões distintas do que se entende como função da escola, configurando duas abordagens clássicas: o paradigma do consenso e do conflito.
A noção de paradigma envolve um modelo que serve de base a construção da ciência.
Ambos os paradigmas balizam a construção de teorias e tendências pedagógicas e representam pontos de referência e lógicas de pensamento.
Representado por Durkheim, Comte e Spencer, para o paradigma do consenso os valores em comum e a cooperação entre professores e alunos é essencial para que a escola cumpra seu papel socializador, a palavra chave é integração.
Além de ensinar conteúdos, a escola deveria moralizar e, para tal, punir infrações as normas.
Pressuposto que gerou o “mito do controle coercitivo”, segundo o qual, à medida que as sanções coercitivas são usadas conscientemente e de forma rápida, contra os transgressores, a ameaça por si só é suficiente para manter a ordem.
Inversamente, a impunidade gera desordem.
Segundo esta tendência, outros autores, tal como Parson, conceberam a sala de aula como uma agência de socialização, por meio da qual as personalidades individuais são preparadas para o desempenho de papeis sociais, conferindo status conforme os méritos individuais.
Em resumo, o paradigma do consenso busca a conservação da sociedade, a reprodução das estruturas existentes, principalmente a reprodução do sistema capitalista.
O grande defeito do paradigma do consenso é não enxergar os conflitos.
Tentando contornar este problema, representado por Marx, paradigma do conflito enxerga a escola como uma instituição que impõem valores e que, portanto, gera conflitos entre professores e alunos.
Estes conflitos seriam essenciais para mudar a estrutura da sociedade.
Dentro desta concepção, alguns autores, como Waller, descreveram a escola como um centro de difusão dos padrões culturais dos grupos mais amplos, sobrepondo-se as comunidades locais e gerando um conflito permanente entre professores e alunos.
O que aconteceria porque os professores representam a cultura dominante, ligada a erudição, enquanto os educandos teriam domínio apenas sobre a cultura popular e de massa, desmotivando a aprendizagem.
Exatamente por isto, a escola necessita exercer controle sobre os jovens e crianças para efetivar o processo cognitivo, mas este controle cria um conflito que ameaça a existência da escola.
Este processo origina um circulo, pois, diante da ameaça de conflito permanente, a escola acirra o controle para garantir sua existência.
Pensando na questão, dentro do âmbito do paradigma do conflito, Lery defendeu a tese de que a escola educa para o fracasso e para a aceitação deste fato, gerando conflitos.
Assim, o paradigma do conflito é útil para revelar as tensões e oposições dentro da escola.
Entretanto, tende a ver apenas oposições, esquecendo-se que existem também concordâncias.
A escola é socialmente complexa, alunos e professores compartilham situações conflituosas comuns, que terminando unindo ao invés de separar.
Em outras palavras, o professor monda sua classe, mas é também moldada por ela, o que tanto gera conflito como consenso.
Pensando de forma mais ampla, caberia, inclusive, perguntar se o consenso ou conflito é gerado a partir da relação professor/aluno ou pela natureza da estrutura do sistema educacional, ou ainda pelo contexto social.
O paradigma do consenso no Brasil.
O paradigma do consenso influenciou intensamente a educação no Brasil, sobretudo a partir de 1930, representado pelas idéias de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira.
Começou a penetrar no Brasil graças a crescente industrialização, iniciada em 1920, quando a necessidade de preparar o desenvolvimento levou um grupo de intelectuais brasileiros a se interessar pela educação, vista como elemento central para remodelar a realidade.
Em 1932, durante o governo Vargas, um grupo de vinte e seis intelectuais se reuniu para redigir O manifesto dos pioneiros da educação nova, o qual defendia a educação como função essencialmente pública, gratuita, obrigatória, laica e única.
Isto, do jardim da infância a universidade, dos quatro aos dezoito anos de idade.
Dentro deste contexto, Fernando de Azevedo, o principal representante do pensamento de Durkheim no Brasil, enxergava a escola como miniatura da sociedade.
A complexidade da sociedade exigiria coesão social, imposta por valores transmitidos pela escola.
Á medida que o individuo percorre o sistema educacional da base ao topo, passaria da educação comum, de natureza coercitiva, até as experiências diversificadas, possibilitando a manutenção da ordem capitalista.
Assim, deveria ser função da escola estabelecer uma articulação com o meio social, coordenando, disciplinando e consolidando as experiências fragmentadas colhidas no ambiente da criança, servindo de modelo para a sociedade.
No entanto, para Fernando de Azevedo, a escola teria um papel limitado diante do poder coercitivo de outra instituição, a família, responsável pela formação de grande parte dos padrões sociais.
A despeito desta característica, o educador deveria ser um agente social, servindo de exemplo e elemento de ligação do educando com a realidade e a construção do conhecimento.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Anísio Teixeira defendeu a reestruturação da educação com o objetivo de propagar e aperfeiçoar a democracia, propondo trabalhar conteúdos de forma a discutir benefícios para a coletividade.
Para realmente integrar e socializar, a escola deveria ser integral e municipalizada, visando atender os interesses de cada comunidade, sendo por ele fiscalizada.
Os estudos de Althusser.
Althusser pertence a um conjunto teórico conhecido como neomarxismo, uma corrente que mescla o marxismo com outras bases teóricas, como o estruturalismo, fazendo uso da dialética e do materialismo histórico.
Cabe lembrar que o estruturalismo se propõe a analisar sistemas, portanto, estruturas.
A preocupação central de Althusser era tentar entender como as condições de produção, no âmbito capitalista, conseguem se reproduzir; já que o sistema capitalista seria injusto e prejudicial à maioria.
Pensando na questão, o autor chegou à conclusão que a dinâmica de trabalho, assegurada pelo salário, seria o principal fator a reproduzir o sistema, comprando a lealdade de indivíduos em favor da ideologia capitalista.
Para garantir a submissão dos indivíduos ao sistema capitalista, o Estado faria uso de aparelhos de Estado:
1. Aparelhos de Estado: constituído pelo governo e a administração publica.
2. Aparelhos Ideológicos de Estado: o meio de exercer controle sobre o pensamento, através de instituições como igreja, escola, sindicatos, meios de comunicação e até livros didáticos, mascarando e vendendo o domínio das elites.
3. Aparelhos Repressivos de Estado: instituições que exercem domínio por meio da violência, da coerção, tal como policia, justiça, prisões, forças armadas, etc.
Segundo Althusser, a escola teria um papel primordial moldando mentalidades, mas dentro deste aparelho ideológico também haveria aparelhos repressivos, representados por mecanismos de punição e exclusão.
Caso a escola não consiga moldar as mentalidades, fazendo os indivíduos se conformarem com sua posição modesta na sociedade, jogando o sujeito na marginalidade, os aparelhos repressivos dariam conta de excluir o infrator da sociedade.
Uma visão em concordância coma teoria funcional, segundo a qual a sociedade funciona como uma máquina, sendo as pessoas engrenagens.
No caso de uma peça defeituosa, que não se encaixa no que esperado dela, bastaria substituí-la.
Os estudos de Bourdieu e Passeron.
Também pertencentes ao conjunto teórico neomarxista, Bourdieu e Passeron concentraram sua atenção sobre a mesma questão trabalhada por Althusser: o entendimento da reprodução da estrutura social do sistema capitalista.
Para os autores, a escola é a principal estrutura objetiva que molda mentalidades e comportamentos, garantindo a manutenção de privilégios através do status que confere.
Neste sentido, a escola manipula o educando, ocultando uma violência simbólica.
A violência está no fato da escola se revestir de uma aparência de neutralidade, quando na verdade condiciona o educando de acordo com os interesses das elites que controlam o sistema educacional.
É simbólica devido ao seu caráter não material, portanto, circunscrito a esfera mental.
Dentro deste contexto, insere-se o capital cultural, a competência cultural e lingüística herdade, sobretudo, da família, facilitador do bom desempenho escolar.
Usando uma linguagem e cultura pertencentes à elite, o padrão culto, a escola comete uma violência ao impor, ao conjunto da sociedade, valores de um único grupo.
A educação legitima o domínio da elite, impedindo o acesso daqueles que não possuem o necessário capital cultural a estamentos mais elevados, doutrinando para o fracasso.
A proposta de Gramsci.
O italiano Antônio Gramsci criticou o sistema educacional capitalista, apontando caminhos para democratizar o acesso ao conhecimento, buscando tornar a sociedade mais justa.
Os textos de Gramsci influenciaram o pensamento socialista na Europa, refletindo no Brasil na década de 1970 e 1980, possibilitando o moderno conceito de educação voltada para a formação da cidadania.
Para ele, toda relação social é necessariamente pedagógica, já que todo o processo de interação é uma relação de aprendizagem.
Defendia a idéia de que a massa só poderia chegar ao poder através de uma mudança de mentalidade e não pela violência, centralizando esta mudança, principalmente, no instrumento escola, responsável pela construção da cidadania.
Por cidadania, Gramsci entendia a orientação voltada para a elevação da cultura das massas, a libertação do senso comum e a aquisição de uma postura critica.
Para levar a termo esta intenção, ele propôs uma escola unitária, onde todos, independente da classe social, tivessem acesso ao mesmo tipo de conhecimento, no caso a cultura erudita, baseada nos clássicos.
Porém, considerava que a educação deveria seguir o modelo tradicional, para conduzir o educando da heteronomia para a autonomia.
A crítica de Illich.
Amigo e contemporâneo de Paulo Freire, o austríaco Ivan Illich, na década de 1970, fez uma critica a educação institucionalizada.
Em seu livro Sociedades sem escola, defendeu a idéia de que a escola impede o ser humano de desenvolver todo seu potencial.
Para ele, a escola fragmenta o saber e incentiva o consumismo e a reprodução das desigualdades.
Tentando contornar esta situação, propôs substituir as escolas por redes de comunicação e convivência, onde as pessoas pudessem trocar informações e experiências diretamente, através de uma rede de computadores, correios, anúncios de jornais, etc.
Illich pensou em quatro redes educacionais:
1. Serviços de consulta a objetos educacionais (bibliotecas, laboratórios, museus, teatros, etc).
2. Intercâmbio de habilidades (troca de conhecimentos entre as pessoas).
3. Encontro de colegas (formação de parcerias de pesquisa, comunidades de pessoas que interagem para buscar conhecimento).
4. Consulta a educadores (orientadores na busca pelo conhecimento).
Assim, Illich foi o precursor da internet e das redes sociais pensadas como ferramenta de troca de informações e do ensino a distância on-line.
No entanto, sua proposta nunca foi colocada integralmente em prática.
Concluindo.
A educação institucionalizada, a escola, possui muitos defeitos e vícios, muitos dos quais advindos do sistema capitalista e estrutura social; porém, o professor, em sala de aula pode contornar estas barreiras.
Cabe a cada professor realizar um trabalho de formiguinha, tornando-se um educador e agente multiplicador.
Sozinhos somos nada, somos fracos; juntos seremos tudo, seremos fortes e poderemos mudar o mundo através da educação.
Para saber mais sobre o assunto.
ADORNO, T. W. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
ARANHA, M. L. A. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna, 1996.
ARANHA, M. L. A. & MARTINS, M. H. P. Temas de Filosofia. São Paulo: Moderna, 2004.
AUGUSTA, N. F. B. Fragmentos de Uma Obra Inédita: Notas Biográficas. Brasília: UNB, 2001.
CHAUI, M. S. Convite a Filosofia. São Paulo: Ática, 2004.
FILHO, L. M. Introdução ao Estudo da Escola Nova: Bases, Sistemas e Diretrizes da Pedagogia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.
GUIRALDELLI JR, P. Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.
MIZUKAMI, M. G. N. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986.
RODRIGUES, N. Elogio à Educação. São Paulo: Cortez, 2002.
SAVATER, F. O valor do educar. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em História Social pela FFCLH/USP.
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