Paula Schmitt | A realidade, as operações psicológicas e o aperto de mão
Falsificação da realidade tornou-se um mercado profissionalizado, escreve Paula Schmitt
Este artigo vai falar de um serviço que, apesar de bastante usado por alguns empresários, juízes, políticos, bilionários, é praticamente desconhecido do grande público: a manipulação da realidade feita sob medida, ao gosto do cliente. Não estou me referindo ao trabalho da grande imprensa em geral –ao menos não por enquanto. Estou falando de um serviço por encomenda que cria ataques, acidentes, estupros, situações comprometedoras; que fabrica pessoas, perfis, reputação, currículos e até um passado –tudo falso, e tudo por um preço bem alto.
Alguém já falou que a grande imprensa serve essencialmente para nos alimentar de ficção –quem quiser conhecer a realidade vai precisar ver filmes e ler romances. Uma frase atribuída a Albert Camus toca na mesma ideia: “A ficção é a mentira através da qual contamos a verdade”. Existem várias explicações para isso, e uma delas é bastante óbvia: medo da perseguição da justiça –e principalmente da injustiça. O aviso legal “esta é uma obra de ficção” protege o autor que revela verdades, provendo-o de imunidade contra processos criminais que podem levá-lo à cadeia, ou processos cíveis que podem deixá-lo pobre. No meu romance “Eudemonia”, eu me resguardei com um aviso legal um pouco mais longo que o normal –só para garantir.
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Dois grandes escritores de ficção do século 20 foram espiões, e certamente usaram a ficção para expor o que não podiam contar na vida real: Graham Greene e John Le Carré. Um 3º escritor famoso, Frederick Forsyth, só revelou 44 anos depois da publicação do seu best-seller “O Dia do Chacal” que ele também foi espião, e trabalhou por 20 anos para o MI6, o serviço secreto estrangeiro do Reino Unido. Existem ex-espiões, contudo, que escolhem um caminho diferente.
Depois que deixam o governo, em vez de revelar a verdade frequentemente sórdida do trabalho que fizeram para uma nação, um povo, uma ideologia ou um partido, esses ex-espiões optam por continuar ludibriando na iniciativa privada. Ludibriar na vida privada não exclui trabalho para pessoas públicas, ou para projetos de governo. Ao contrário –agências de operações psicológicas são frequentemente contratadas por governos e agentes públicos, terceirizadas para fazer o trabalho sujo que a lei não permite a eles fazer diretamente. Uma dessas empresas é a PsyGroup.
Já na 1ª página, a brochura do PsyGroup (leia aqui na íntegra – 2 MB) declara sua missão de forma inequívoca: “A realidade é uma questão de percepção”. Para quem não entendeu as palavras, a empresa desenhou: em 1º plano, a imagem de um gato é refletida ao fundo como a sombra de um leão. Abaixo do símbolo da letra grega “psi”, um slogan resume a coisa toda: “Molde a realidade”.
Nas páginas seguintes, a empresa mostra alguns dos serviços que ela oferece como “líder no mercado de inteligência e influência”. Essa lista de serviços é precedida com uma mensagem visual que dá o tom do que vem pela frente: o fim da confiança mútua. Em duas imagens –um aperto de mãos, seguido de uma mão com os dedos cruzados– milênios de construção moral e civilizatória são destruídos com uma indolência desconcertante.
A 1ª imagem mostra um aperto de mãos –um gesto que desde a pré-história vem servindo para garantir a dois lados antagônicos que ambos negociam de boa-fé. Ao apertar as mãos, inimigos mostravam estar com as mãos livres, sem arma. Desde a “Ilíada” de Homero, passando por registros artísticos de faraós egípcios, imperadores romanos, líderes da mesopotâmia e aristocratas gregos, o aperto de mão vem selando um acordo de cavalheiros, dois adversários se submetendo a regras mantidas por nada além de sua própria honra. Mas na imagem ao lado, esse pacto milenar é destruído, ridicularizado com a displicência de um moleque que virou velhaco sem nunca ter crescido como homem: com 2 dedos cruzados, o parceiro de acordo, ou o adversário de guerra, mostra por trás que não manterá a honra que prometeu pela frente.
“Psy [group] tem uma vasta experiência em vários setores, incluindo diligência corporativa, apoio de litigância, tecnologia, telecomunicações, finanças, infraestrutura, transportes, indústria, e relações governamentais”. Mas o que faz o Psy nessas áreas? A brochura explica melhor: monitoramento e perseguição de alvos; armadilhas amorosas/sexuais (honey traps); campanhas on-line; coleta de inteligência (informações secretas) via “ações cibernéticas”; “botas no solo” (pessoas de carne e osso perseguindo, monitorando, gravando conversas, armando arapucas); campanhas de influência com a criação e destruição de reputações; criação de perfis falsos.
Um parágrafo explica com sinceridade constrangedora o que a empresa faz na deep web: “Como parte da nossa extensa experiência em inteligência cibernética, o Psy mantém “forte capacidade operacional dentro da Deep Web e da Darknet (geralmente descrita como o “lado escuro” [Dark Side] da internet). Como um lugar de encontro para uma variedade de atividades ilegais (hackeagem, fraude, terrorismo), a Darknet requer habilidades especiais para acessar, navegar e operar por dentro, enquanto mantém total conformidade com a lei”.
O PsyGroup foi dissolvido em 2018, depois que passou a ser investigado por autoridades norte-americanas por seu envolvimento com a empresa inglesa Cambridge Analytica, uma “consultoria política” que trabalhava como uma “agência global de gerenciamento eleitoral” e foi acusada de manipulação da opinião pública. Mas seus executivos já fundaram outras empresas que trabalham nas mesmas atividades, com nomes diferentes. Na semana que vem pretendo contar mais sobre como a “comodificação” do crime, da chantagem e da falsificação da realidade vêm mudando os rumos do mundo com a crescente profissionalização de um trabalho que, até um tempo atrás, era feito apenas por mafiosos.
P.S.: O artigo já está escrito, pronto para ser publicado e devidamente resguardado de imprevistos.
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