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sábado, 29 de março de 2008
AS DIRETRIZES CURRICULARES DA PEDAGOGIA - CAMPO EPISTEMOLÓGICO E EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO PEDAGOGO
AS DIRETRIZES CURRICULARES DA PEDAGOGIA - CAMPO EPISTEMOLÓGICO E EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO PEDAGOGO
José Carlos Libâneo*
O questionamento sobre o curso de pedagogia, sua natureza, currículo e funções, do ponto de vista legal e institucional, na perspectiva crítica, foi iniciado por volta dos anos 1980. Atualmente há vários desacordos entre os educadores em relação àqueles aspectos, mas dois deles parecem ser os mais pontuais: o curso como bacharelado ou como licenciatura e a base curricular assentada na docência ou na pedagogia. No fundo, o debate retoma a antiga discussão sobre a pertinência ou não de se formar especialistas (já denominados técnicos de educação) para atuação nas escolas. O objetivo deste texto é fazer uma análise ampliada da problemática da formação de pedagogos a partir do projeto de Resolução do CNE para as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Pedagogia. Após breve comentário sobre o projeto de Resolução do CNE, o texto faz uma análise do conceito de pedagogia e de pedagogo, cotejando-o com as propostas da Comissão de Especialistas (de 1999) e do ForumDir (de 2005). Apresenta em seguida de algumas características dos atuais cursos de pedagogia em relação ao currículo e à preparação profissional de professores e especialistas e conclui com algumas sugestões para o debate sobre as Diretrizes.
O PROJETO DE RESOLUÇÃO CNE
O projeto de Resolução do CNE tem como objetivo instituir as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Graduação em Pedagogia. Cria duas habilitações: a licenciatura em Pedagogia: Magistério de Educação Infantil e a Licenciatura em Pedagogia: Magistério Anos Iniciais. Define os objetivos de formação dos licenciados, os referenciais curriculares, inclusive o estágio, e a duração de 2800h, sendo h para atividades acadêmicas e pelo menos 300h de estágio supervisionado. O projeto cria, também o bacharelado em Pedagogia pós-licenciatura, com duração de pelo menos 800h, prevê cursos para formação de especialistas. Determina a extinção das outras habilitações não contempladas na Resolução. Mantém o Curso Normal Superior.
Em face dos problemas já sabidos sobre as ambigüidades e confusões da legislação recente sobre a formação de educadores, a Resolução avança pouco no esclarecimento das dúvidas dos educadores das inúmeras instituições de formação do país, por ser vaga e pouco explícita em relação aos temas mais polêmicos. Um dos motivos dessas imprecisões talvez seja o fato de pretender contemporizar as posições em debate entre os educadores e associações. Por um lado, mantém a docência como base do curso e a equivalência do curso de pedagogia ao curso de licenciatura, não se diferenciando, portanto, das propostas da Comissão de Especialistas e do ForumDir. Por outro, institui o grau de bacharel e prevê cursos de formação de especialistas, sem dizer o que são esses cursos e como serão realizados.
O entendimento da Resolução sobre as habilitações é dúbio. Elas aparecem na identificação do curso (art. 2º) quando cria duas habilitações, mas desaparecem quando cria o grau de bacharel em Pedagogia, habilitação essa que não e como também não define quem é e o que fará esse bacharel. Simultaneamente, determina que todas as demais habilitações que não sejam as duas licenciaturas indicadas serão extintas, prescrição essa que pode por a perder experiências bem sucedidas nesse campo. A Resolução presume, também, equivalência entre o curso de pedagogia e o curso normal superior, e não menciona o destino dos Institutos Superiores de Educação.
Em resumo, o projeto de Resolução mantém a mesma falta de unidade e coerência, bem como as ambigüidades e confusões da legislação em vigor.
O CONCEITO DE PEDAGOGIA E PEDAGOGO APRESENTADO NAS DIRETRIZES
O projeto de Resolução do CNE é claro num ponto: a pedagogia é entendida como curso de formação de professores e como tal, uma licenciatura, e o pedagogo é o profissional que ensina na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Tem, portanto, a mesma lógica dos documentos de associações de educadores: da Anfope (cujas propostas foram assumidas pela Comissão de Especialistas de 1999), e do ForunDir (de 2005).
A lógica a que me refiro é a identificação entre trabalho pedagógico e trabalho docente, ou seja, a pedagogia e o ensino dizem respeito a crianças (paidós, em grego = criança), portanto, pedagogo é aquele que ensina crianças. Sendo assim, para ser pedagogo, isto é, para aprender a ensinar crianças, é preciso fazer um curso de pedagogia. Ou seja, a pedagogia é um curso que forma professores para ensinar crianças. Vem daí a idéia antiga, cunhada desde os pioneiros da Escola Nova no Brasil e hoje por um expressivo segmento de educadores, de que o curso de pedagogia é aquele destinado à formação de professores das séries iniciais do ensino fundamental e pedagogo, o professor formado por esse curso.
Penso que este raciocínio decorre de uma concepção demasiado simplificada do mundo da pedagogia, porque não agrega a tradição epistemológica que fornece a fundamentação teórica e a organização do campo conceitual da pedagogia. Obviamente, a pedagogia também trata da formação escolar de crianças, trata de ensino, de métodos de ensino, mas antes disso ela é um campo de conhecimentos, ela diz respeito ao estudo e à reflexão sistemática sobre o fenômeno educativo, sobre as práticas educativas. A pedagogia é a teoria e a prática da educação. O pedagogo espanhol Quintanas Cabanas escreve que a pedagogia é a ciência da educação em geral, ela apresenta as linhas diretrizes a que deve submeter-se a atividade educativa: fundamentos e fins da educação, o sujeito da educação, o educador e todos os tipos e modalidades de educação (1995). Também Sarramona e Marques afirmam o papel da pedagogia de integrar diferentes enfoques para dar coerência e unidade ao estudo do fenômeno educativo. Para esses autores, a ciência pedagógica possibilita uma análise unitária da educação, “análise que dê sentido pleno à ação humana estritamente educativa, isto é, aquela ação com finalidade configuradora para o aperfeiçoiamento do sujeito e da coletividade” (1985, p.5). A definição do pedagogo francês Gaston Mialaret é ainda mais esclarecedora:
A Pedagogia é uma reflexão sobre as finalidades da educação e uma análise objetiva de suas condições de existência e de funcionamento. Ela está em relação direta com a prática educativa que constitui seu campo de reflexão e análise, sem, todavia, confundir-se com ela” (Mialaret, 1991)
O pedagogo alemão, Schimied Kowarzik, chama a pedagogia de ciência da e para a educação, portanto, é a teoria e a prática da educação. Investiga teoricamente o fenômeno educativo, formula orientações para a prática a partir da própria ação prática e propõe princípios e normas relacionados aos fins e meios da educação.
Há uma infinidade de definições desse tipo, que invalidam por insuficiência teórica estas afirmações tais como: “a base do curso de pedagogia é a docência”, “a pedagogia é um curso de licenciatura”. No entanto, elas são reiteradas no projeto de Resolução do CNE, dentro das mesmas teses sustentadas pelas associações de educadores.
Uma investigação mais apurada sobre o campo de conhecimentos da pedagogia mostra, portanto, que a pedagogia é, antes de tudo, um campo científico, não um curso, cuja natureza constitutiva é a teoria e a prática da educação ou a teoria e prática da formação humana. O objeto próprio da ciência pedagógica é o estudo do fenômeno educativo, em todas as suas dimensões. É obvio que um campo científico pode transformar-se num curso mas, antes, é preciso saber qual é o conteúdo desse campo cientifico. Se se admite um campo de saberes mais abrangente, é preciso admitir sub-campos de conhecimentos como seriam, por exemplo, a teoria da educação, a história da educação, a organização do trabalho escolar, a didática, etc.
Dessa forma, por respeito à lógica e à clareza de raciocínio, a base de um curso de pedagogia não pode ser a docência. Todo trabalho docente é trabalho pedagógico mas nem todo trabalho pedagógico é trabalho docente. A docência é uma modalidade de atividade pedagógica, de modo que a formação pedagógica é o suporte, a base, da docência, não o inverso. Ou seja, a abrangência da pedagogia é maior do que a da docência. Um professor é um pedagogo, mas nem todo pedagogo precisa ser professor. Isso de modo algum leva a secundarizar a docência, pois não estamos falando de prioridades de campos científicos ou de atividade profissional, estamos falando de uma epistemologia do conhecimento pedagógico.
Precisamente pela abrangência maior do campo conceitual e prático da pedagogia enquanto reflexão sistemática sobre o campo do educativo, pode-se reconhecer na prática social uma imensa variedade de práticas educativas, portanto, uma diversidade de práticas pedagógicas. Em decorrência, são pedagogos todas as pessoas que lidam com algum tipo de prática educativa relacionada com o mundo dos saberes e modos de ação, não restritos à escola. A formação de educadores extrapola, pois, o âmbito escolar formal, abrangendo também esferas mais amplas da educação não-formal e formal[1]. Sendo assim, a formação profissional do pedagogo pode desdobrar-se em múltiplas especializações profissionais, uma delas a docência, mas seu objetivo específico não pode ser somente a docência e nem a docência a única referência para a formação profissional.
As conseqüências lógicas dessa argumentação são extremamente claras. Primeira, o curso de pedagogia não pode ser igual a curso de licenciatura para formação de professores de Educação Infantil e Anos iniciais do ensino fundamental, o curso de pedagogia é uma coisa, a licenciatura outra. Segunda, a base da formação do pedagogo não pode ser a docência, pois a base da formação docente é o conhecimento pedagógico. Todo docente é um pedagogo mas nem todo pedagogo precisa ser docente, simplesmente porque docência não é a mesma coisa que pedagogia.
A manter a denominação “pedagogos” para os licenciados na educação infantil e séries iniciais, persistimos num erro semântico. Por que não chamamos também de pedagogos os professores que se formam para lecionar nas classes de 5ª.à 8ª. e no ensino médio? Ou seja, porque não chamar todos os licenciados de pedagogos?
As três afirmações sobre pedagogia que estou criticando (a) a base do curso de pedagogia é a docência; (b) a pedagogia é um curso de licenciatura (c) pedagogo é o professor formado por esse curso, são em boa parte responsáveis pelos problemas hoje existentes nos chamados cursos de pedagogia.
Primeiramente, cumpre reconhecer que desde o início dos anos 80 quando foram difundidas essas afirmações, ocorreu o esvaziamento do estudo da teoria pedagógica, descaracterizando o campo teórico-investigativo da pedagogia e eliminando a possibilidade de pesquisa específica voltada para os diversos campos de atuação profissional do pedagogo. Em segundo lugar, a eliminação da formação específica do especialista em pedagogia (diretor de escola, coordenador pedagógico, planejador educacional, pesquisador em educação etc.) rompeu com a tradição da formação dos especialistas para trabalho nas escolas. Em terceiro lugar, e por conseqüência, desapareceu a pedagogia da pedagogia. Não me refiro à falta das ciências da educação, mas à falta da pedagogia, pedagogia como estudos próprios da prática educativa, do fenômeno educativo, isto é, dos fundamentos e fins da educação, o sujeito da educação, o educador e todos os tipos e modalidades de educação[2].
Em resumo, o que constato nas propostas de diretrizes para o curso de pedagogia é a ausência de um entendimento teórico, conceitual, de pedagogia, prejudicando a definição do campo de atual profissional do pedagogo. Com base no que venho argumentando, somente faz sentido existir uma faculdade de educação, se ela tiver, também, o curso de pedagogia cujo conteúdo sejam os estudos específicos da ciência pedagógica para, entre outras habilitações, formar pedagogos especialistas para a escola. E, é claro, que forme também professores para a educação infantil e ensino fundamental e, conforme penso, para toda a educação básica. Imagino, pois, um curso de pedagogia que ofereça três habilitações: bacharelado em pedagogia, licenciatura em educação infantil e licenciatura em anos iniciais do ensino fundamental. E quando a formação de professores for levada ainda mais a sério, aspiro que na Faculdade de Pedagogia sejam oferecidas todas as licenciaturas da Educação Básica.
PONTOS CRÍTICOS DOS ATUAIS CURSOS DE PEDAGOGIA EM RELAÇÃO AO CURRÍCULO E À PREPARAÇÃO PROFISSIONAL DE PROFESSORES E ESPECIALISTAS
Abordarei neste tópico questões muito pontuais e, também, melindrosas, por integrarem o campo das divergências teóricas e práticas sobre formação de educadores. As críticas que apresento aos cursos de pedagogia do Brasil estão baseadas na minha própria trajetória profissional e, recenemente, na rica experiência que adquiri participando ao lado de colegas pedagogos da Comissão do Provão para avaliação dos cursos de pedagogia.
Obviamente, pelo que já explicitei, o primeiro ponto refere-se ao esvaziamento dos estudos teóricos de pedagogia, razão pela qual afirmo que não há pedagogia nos cursos de pedagogia. Não é difícil de se constatar que em boa parte das faculdades de educação não se estuda mais pedagogia, quem emite juízos sobre questões de pedagogia hoje são os sociólogos, os cientistas políticos, os especialistas em políticas educacionais. Com raras exceções, faltam nas faculdades de educação precisamente os pedagogos para formular políticas para as escolas, para analisar criticamente inovações pedagógicas, para formular teorias de aprendizagem, investigar métodos de ensino, concepções e procedimentos avaliação escolar, etc. Com efeito, onde são formados hoje os profissionais para pensar as políticas da educação? Quais têm sido as referências pedagógicas dessas políticas? Onde se formam os administradores educacionais? E os diretores de escola? Onde e como têm sido preparados profissionais para a gestão do currículo e promoção do desenvolvimento profissional dos professores na escola? Quem ajuda os professores nas suas dificuldades com a aprendizagem dos alunos? Quem na escola responde pelas práticas de organização e gestão enquanto instâncias formativas? São raras as instituições que cuidam de modo sério e competente com a formação desses profissionais, pois a pedagogia, quero dizer, a teoria pedagógica e as formas específicas de ação pedagógica estão ausentes das faculdades de educação. É, em parte, por isso que o campo da educação e do ensino não tem conseguido sequer um consenso mínimo sobre políticas para a escola básica, formas de organização e gestão da escola, formatos curriculares, níveis esperados de desempenho escolar dos alunos, a formação necessária de professores para determinadas demandas da prática. Por conseqüência, não é para estranhar que o campo da educação não conseguiu até hoje formular um sistema integrado e articulado de formação de educadores.
A conseqüência do esvaziamento dos estudos teórico-sistemáticos de pedagogia e da descaracterização profissional do pedagogo remete ao segundo ponto: a supressão das habilitações profissionais para as quais eram formados os especialistas. Quem conhece empiricamente as escolas brasileiras no seu cotidiano, quem já teve a experiência de atuar em escolas na condição de especialista, como diretor, coordenador pedagógico, orientador educacional, psicopedagogo, quem sabe o valor de uma boa assistência pedagógico-didática aos professores e alunos, há de concordar que a ausência de profissionais especializados nessas áreas prejudicou muito as escolas e a aprendizagem dos alunos. Não consigo entender como pessoas que valorizam a escola, conhecedoras de pesquisas que mostram a importância das práticas de organização e gestão, sensíveis ao mundo empírico das escolas e às suas necessidades, ainda recusam a formação do especialista, especialmente nas habilitações de direção e coordenação pedagógica.
Muitos professores dos cursos de pedagogia (e, mais ainda, muitos estudantes) ignoram que há 20 anos foram extintas três associações de educadores muito fortes e muito atuantes: a Associação Nacional de Supervisores, a Associação Nacional de Orientadores Educacionais e a Associação Nacional de Administração Escolar. Elas foram extintas pelos seus próprios membros. Por que se acabaram as habilitações? Que motivações levaram os educadores a extingui-las? Quais terão sido as vantagens e os prejuízos dessa auto-extinção para as escolas, para os alunos e para as famílias? Como se sabe, junto com a extinção dessas associações vieram mudanças no curso de pedagogia, basicamente transformando esse curso numa licenciatura. Em seguida, as Secretarias de Educação retiraram das escolas ou deixaram de contratar coordenadores pedagogos com formação específica, prejudicando a gestão curricular e pedagógico-didática às escolas e aos professores.
Que razões levaram a essa medida? Por que as coisas chegaram a esse ponto? Os documentos da Anfope são suficientemente claros em explicitar a aversão pelas habilitações, apoiando-se em dois argumentos ligados entre si: a) a fragmentação na formação, separando formação do professor e formação dos especialistas; b) a explicação dessa fragmentação tem sua explicação pela tese marxista da divisão técnica do trabalho no capitalismo.
O raciocínio é bastante simples. Na sociedade capitalista predomina a divisão entre proprietários e não-proprietários dos meios de produção, ou seja, entre burguesia e proletariado. A essas duas classes sociais corresponde uma divisão social do trabalho em que uma se ocupa do trabalho intelectual, outra do trabalho manual. Há, assim, uma cisão entre o trabalhador e os meios ou instrumentos de trabalho, em que esses meios são providos pelos gestores do processo de produção. Ou seja, há uma classe que pensa, que desenvolve os meios de trabalho, que controla o trabalho, e outra classe que faz serviço prático, que cumpre determinações do gestor. Essa oposição fundada na divisão do trabalho constituindo a explicação primeira e mais abrangente da desigualdade social. Essa divisão social do trabalho, expressão das relações capitalistas de produção, e que se manifesta na organização do processo de trabalho, se reproduz em todas as instâncias da sociedade, inclusive nas escolas, onde haveria dois segmentos de trabalhadores opostos entre si, os especialistas (diretor, coordenador pedagógico) e os professores. Ou seja, tal como na fábrica, também na escola ocorre a divisão técnica do trabalho, levando à fragmentação do trabalho pedagógico, isto é, dividindo as tarefas escolares entre os que pensam e o que fazem, entre os que controlam e os que executam, instaurando a desigualdade na escola e promovendo a desqualificação do trabalho dos professores. E como se elimina essa fragmentação? Eliminando a divisão de tarefas que está na base da fragmentação do trabalho pedagógico e transformando todos os profissionais da escola em professores. Foi natural, daí, chegar à tese da docência como base do currículo de formação dos educadores.
Esse percurso argumentativo está fundamentado na tese marxista da divisão social do trabalho e do papel da tecnologia de retirar do trabalhador a sua autonomia e sua capacidade de decisão no processo de trabalho. Há muitas maneiras de discutir essa questão, especialmente da questão subordinada que é a relação entre as formas organizacionais do processo capitalista de produção e as formas de organização do trabalho em instituições. Uma delas, implícita na argumentação acima, é de que a função da escola é a de produzir trabalhadores por meio de uma determinada forma de organização do processo de trabalho, inteiramente igual ao processo de trabalho capitalista. Ou seja, por ser um local de trabalho capitalista, a escola incorpora as características do processo de trabalho capitalista na fábrica.
A natureza deste texto não permite uma análise teórica mais detalhada desta posição, mas pode-se argumentar com outro posicionamento. O sistema de produção capitalista põe a escola a seu serviço para atender necessidades de sua própria manutenção, especialmente para produzir trabalhadores, de forma que ela cumpre papéis para o funcionamento da organização capitalista da produção. É, também, admissível que a organização escolar contenha elementos do processo capitalista de organização do trabalho. Entretanto, não se pode deduzir disso que a escola passe a constituir-se local de trabalho capitalista. Se isto fosse possível, a escola seria considerada como um lugar de produção de mercadorias, valendo ai o raciocínio segundo o qual a produção de trabalhadores (o que faz a escola) seria idêntica ao processo de produção de mercadorias. Há que se considerar que os professores, como também, os especialistas que atuam na escola, não são agentes diretos do capital e nem os alunos mercadorias a serem produzidas. Isso leva a distinguir produção de coisas e produção de seres humanos como processos não idênticos, ainda que estruturas organizacionais planejadas para que uma possa estar a serviço de outra. Além do mais, se convém ao capitalista produzir trabalhadores assalariados automatizados, isso não significa que a subjetividade do trabalhador seja sempre subjugada em função do capital. O que ocorre, pois, é que o trabalho escolar tem sua especificidade, ainda que não descolada dos seus vínculos com a organização social e econômica da sociedade. O trabalho pedagógico escolar tem uma natureza não-material, não se aplicando a ele, de modo pleno, o modo de produção capitalista, ou seja, o conhecimento enquanto objeto de trabalho na escola é inseparável no ato de produção, e esta capacidade potencial ninguém retira da pessoa que conhece. Isso significa que os resultados do processo de trabalho escolar, bem como as formas de organização interna, não estão pré-ordenados pelo capital. Ou seja, se há uma especificidade do trabalho pedagógico escolar, há também uma especificidade das formas de organização do trabalho pedagógico, por mais que estas possam ser permeadas por influxos da organização geral do funcionamento do capitalismo.
A explicação do surgimento da desigualdade social pela divisão do trabalho não exclui outros fatores geradores da desigualdade. Além disso, a escola não produz as desigualdades básicas, elas são anteriores à escola. Mas ela pode produzir outras desigualdades, geradas no seu próprio interior, como o tratamento de homem e mulher, a discriminação social, a discriminação étnica, a exclusão de crianças que não conseguem aprender, o insucesso na aprendizagem por causa de uma professora despreparada. Dada a natureza da instituição escolar, os elementos presentes nas relações capitalistas de produção não incidem nela de forma igual. Nas atuais condições de funcionamento da escola, a divisão técnica do trabalho expressa na suposta fragmentação entre o trabalho de especialistas e professores, não se constitui o problema central, ao contrário, pode ser uma necessidade, pois um especialista profissionalmente preparado poderá fazer justiça no enfrentamento das desigualdades promovidas pela escola como são as práticas de exclusão social, de exclusão pedagógica, de marginalização cultural, de discriminação racial, de produção do fracasso escolar, etc. Cabe, pois, perguntar o que pior: (a) a escola ter uma coordenadora pedagógica bem formada e capaz de prestar um auxilio efetivo às professoras, de modo a propiciar melhor condições de êxito escolar dos alunos ou (b) fazer uma criança fracassar na aprendizagem porque não há ninguém na escola capacitado e com formação específica, para ajudar a professora a melhorar seu trabalho e ampliar as chances de inclusão dos alunos?
Está aí, a meu ver, o arrazoado da argumentação contra a fragmentação do trabalho pedagógico e a favor da tese da docência como base da formação dos educadores e que é, ao mesmo tempo, a origem dos equívocos que se instalaram no pensamento de um bom número de intelectuais e militantes da causa da formação de educadores. Trata-se de um fenômeno sociológico a investigar: o que explica essa fixação num discurso produzido há mais de 20 anos, sem nenhuma alteração? Que razões têm levado educadores a prender-se tão fortemente a bordões cuja principal característica é a sua interminável repetição? O que explica a dificuldade de segmentos de educadores romperem com essa rede de sugestão coletiva criada por uma associação? É muito provável que o sucesso do ideário da Anfope seja precisamente esse: repetir, repetir sempre à exaustão, de modo a criar elementos de identificação de um grupo em que agrega os que concordam e exclui os que discordam. E quando mais se repete, mais se intensifica a tendência a repetir mais, porque isso conserva o estabelecido e alimenta a mística dos adeptos da crença. O dilema posto hoje aos educadores que valorizam a escola e a importância da formação de professores e especialistas é: repetir ou criar? Conservar ou tentar outros caminhos?
A meu ver, o discurso argumentativo em torno da docência como base para o currículo de formação de todos os profissionais da educação e a eliminação das habilitações, esqueceu-se da prova da prática. Foi tão necessário politicamente defendê-lo para sustentar a mística de um movimento, que mais uma vez a realidade foi punida por não estar de acordo com a teoria. Com efeito, com a extinção das habilitações, minou-se uma estrutura mínima de gestão e funcionamento escolar e de auxílio pedagógico efetivo aos professores. O prejuízo da ausência do pedagogo especialista nas escolas, com formação específica foi considerável. Pesquisas sérias sobre funcionamento da escola, nacionais e estrangeiras, mostram o efeito positivo do trabalho de bons diretores e bons coordenadores pedagógicos para a aprendizagem dos alunos. Há relatos mostrando como as escolas com diretor e coordenador com habilitação funcionam bem, isto é, quando o diretor sabe dirigir uma escola, coordenador pedagógico sabe como ajudar no trabalho pedagógico-didático dos professores, os orientadores educacionais sabem como ajudar os alunos na formação da sua subjetividade e no seu relacionamento social na escola e na classe. Tem faltado, portanto, nesse debate sobre formação de educadores e dos lugares dessa formação, uma fidelidade maior à realidade, à prática, àquilo que efetivamente acontece nas escolas. As idéias não são simplesmente produto de outras idéias, mas são provocadas ou alteradas pela experiência material, pela prova da prática.
Não faltará quem argumente que um professor bem formado pode ser um bom diretor ou um bom coordenador pedagógico com base na idéia de se habilitar o especialista no professor[3]. Não é verdade. Não há nenhuma possibilidade real de se formar num só curso de 2800h, ao mesmo tempo, bons professores e bons especialistas. No limite, esse número de horas se presta a formar um ou outro desses profissionais.
Consideremos a formação dos especialistas, partindo-se do entendimento de que esses profissionais sejam, de fato, necessários para melhorar a qualidade de ensino das escolas. Um coordenador pedagógico, por exemplo, pode desempenhar na escola um conjunto de atividades que são extremamente pertinentes, muitas delas requerendo certa complexidade, tais como:
a) Coordenação dos procedimentos de elaboração do projeto pedagógico-curricular e de outros planos e projetos da escola, implicando diagnósticos, prospecções, perfil de aluno a ser formado, critérios de qualidade cognitiva e operativa, nível de competências cognitivas, procedimentais, éticas.
b) Coordenação de todas as ações pedagógicas, curriculares, didáticas e organizacionais, entre elas, coordenação de reuniões, elaboração de horários, organização de turmas e designação de professores, planejamento e coordenação do conselho de classe, organização e conservação de material didático e equipamentos, e outras ações relacionadas ao ensino e à aprendizagem.
c) Assistência pedagógico-didática direta e assessoramento aos professores, por meio de observação de aulas, entrevistas, reuniões de trabalho e outros meios, especialmente em relação aos planos de ensino, às metodologias e procedimentos de ensino, à seleção e utilização de materiais didáticos, a atividades de pesquisa, à gestão e manejo de situações específicas de sala de aula, à análise e solução de conflitos e problemas de disciplina, a formas de comunicação docente e motivação dos alunos, a apoios em estratégias de diferenciação pedagógica frente a dificuldades de aprendizagem dos alunos, à realização de projetos conjuntos entre os professores, a procedimentos e instrumentos de avaliação da aprendizagem.
d) Suporte nas práticas de organização e gestão, implicando exercício de liderança, criação e desenvolvimento de ambiente de trabalho cooperativo, gestão das relações interpessoais, inclusive mediação de conflitos que envolvam professores, alunos e outros agentes da escola, e ações de desenvolvimento pessoal e profissional dos professores;
e) Apoio direto a alunos com dificuldades transitórias nas aprendizagens instrumentais de leitura, escrita e cálculo, para além do tempo letivo e organizar do atendimento a alunos com necessidades educativas especiais.
f) Ações de integração dos alunos na vida na escola e da sala de aula, bem como da comunidade.
g) Acompanhamento e avaliação do desenvolvimento do projeto pedagógico-curricular e dos planos de ensino, da atuação do corpo docente, da aprendizagem dos alunos.
Intelectuais e militantes do campo educacional que efetivamente conhecem o cotidiano das escolas compreenderão muito bem que essas tarefas requerem formação específica, num curso de bacharelado, independentemente de experiência docente prévia[4]., já que as interfaces entre profissionais especialistas e profissionais docentes dar-se-ão no embate prático das situações concretas.
Consideremos, por outro lado, a formação de licenciados para a Educação Infantil e Séries Iniciais. Não há necessidade de muito esforço para se reconhecer a precariedade dessa formação. Por exemplo, em boa parte dos atuais cursos há quase que total ausência no currículo de conteúdos específicos (de português, ciências, matemática, história, etc.), existindo apenas as metodologias. Como formar bons professores sem o domínio desses conhecimentos específicos? Essa exigência se amplia frente às mais atuais concepções pedagógicas, em que o ensino está associado ao desenvolvimento das capacidades cognitivas dos alunos por meio dos conteúdos, ou seja, aos processos do pensar autônomo, crítico, criativo. Não se trata mais de passar conhecimentos, mas de desenvolver nos alunos capacidades e habilidades mentais referentes a esses conhecimentos. Está sendo requerido das professoras praticamente uma dupla exigência: dominar os conteúdos mas, especialmente, o modo de pensar, raciocinar e atuar próprio de cada disciplina, dominar o produto junto com o processo de investigação próprio de cada disciplina. Como fazer isso sem os conteúdos específicos?
Além de outras disciplinas de formação pedagógica, o currículo do curso de formação de professores certamente deverá incluir estudos relacionados com a organização e gestão da escola, teoria e prática da pesquisa educacional, políticas educacionais, estrutura e funcionamento do ensino etc., enquanto elementos constitutivos da formação docente. O conjunto de saberes necessários ao exercício profissional de professores requer, portanto, um percurso curricular específico, distinto da formação de especialistas.
Considero, pois, uma medida sumamente democrática que as Diretrizes Curriculares contemplem a formação de especialistas para as escolas, para ajudar os professores, ajudar na aprendizagem dos alunos, para garantir a unidade teórico-metodológica na condução do trabalho da equipe escolar. Insisto que é temerário acreditar que um curso com 2.800h formará pedagogos para três funções que têm, cada uma, sua especificidade: a docência, a gestão, a pesquisa. Não é possível uma formação profissional sólida para as duas especialidades, num mesmo curso, dentro das 2.800h, com tantas responsabilidades profissionais a esperar tanto do professor como do especialista. Insistir nisso significa implantar um currículo inchado, fragmentado, aligeirado, levando ao empobrecimento da formação profissional. Na minha opinião, para se atingir nível mínimo de qualidade da formação, ou se forma bem um professor ou se forma bem um especialista.
Uma última observação a respeito das relações entre a pedagogia e a gestão pedagógica. Nas propostas das associações mencionadas, observa-se correspondência entre a atividade do pedagogo escolar com a gestão escolar. O documento da Comissão de Especialistas inclui como área de atuação do pedagogo a “organização e gestão de sistemas, unidades e projetos educacionais”. O projeto de Resolução do ForumDir menciona em um dos artigos, a formação para a “gestão educacional (...) entendida como organização do trabalho pedagógico...” Essa proposta caracteriza o curso de pedagogia como formação de “pedagogos” (e não “licenciados” como na Resolução do CNE), e define a atuação do pedagogo na gestão educacional, dando a entender que essa mudança, ao abrir espaço à formação do especialista, recuperaria a especificidade da pedagogia. Entretanto, a meu ver, a mudança permanece apenas na terminologia, uma vez que, em outro artigo se registra que “o curso de pedagogia destina-se precipuamente à formação de pedagogos para a docência e para a gestão educacional na educação básica, habilitando-os para Licenciatura em pedagogia (Educação Infantil) e Licenciatura em Pedagogia (Anos Iniciais)”. Ou seja, a formação do pedagogo confunde-se com a formação do licenciado, incidindo nas mesmas limitações da proposta da Anfope e do CNE. A correspondência semântica entre pedagogia e gestão educacional incide, portanto, no mesmo reducionismo que se critica quando pedagogia é identificada à docência. É muito pouco para se definir o campo pedagógico identificá-lo com a gestão, assim como é muito pouco identificar o papel do especialista como gestor. Trata-se, a meu ver, de mais uma tentativa de conciliação de posições conflitantes, sem mexer na questão básica, discutida anteriormente neste texto, que é a crítica à divisão técnica do trabalho pedagógico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui foram abordadas as questões legais e institucionais e as discussões que envolvem concepções de formação e de exercício profissional dos educadores. Entretanto, é preciso reconhecer que os reais problemas estão em outro lugar, eles estão nas escolas mal organizadas e geridas, na precária formação do professorado, no baixo desempenho escolar dos alunos. A pesquisa da formação profissional tem uma ferida aberta que é o descompasso entre a definição de dispositivos legais e a realidade cotidiana das escolas. Todos sabemos que nossa escola padece de muitas carências e de muitos problemas crônicos – a pobreza das famílias, o baixo salário dos professores, a desvalorização social da profissão de professor, as precárias condições físicas e materiais das escolas, a repetência, a defasagem idade-série escolar, as dificuldades de aprendizagem dos alunos, fatores esses que contribuem para o rebaixamento da qualidade de ensino. Há outras incidências do contexto sociocultural da escola tais como a intensificação da urbanização que, junto a outros fatores, provocam a ampliação da diversidade social e cultural dentro da escola; o impacto dos meios de comunicação na vida escolar e na aprendizagem dos alunos; mudanças nos processos internos do aprender dos alunos; fragilidade das formas de organização e gestão da escola em meio a mudanças abruptas na organização curricular como os ciclos e integração de portadores de necessidades especiais; dificuldades do professorado em adequar-se a essas mudanças, acentuadas com a falta de domínio de conteúdos e metodologias das disciplinas, perplexidade frente a problemas ligados à violência, ao uso de drogas, à sexualidade precoce dos alunos, ao controle da disciplina na classe.
Não é a reformulação legal do curso de pedagogia que trará a solução para esses problemas. Todavia, uma sensibilidade maior às demandas e exigências formativas vindas da escola poderá favorecer uma melhor formação profissional, pois é disto que se trata. Parte das confusões da legislação e das dificuldades em se obter consenso sobre os currículos decorrem da falta de realismo em captar necessidades e demandas das escolas e dos professores. Penso que não estamos sabendo subordinar as políticas de formação de professores às políticas para a escola e para a aprendizagem dos alunos, e uma das razões disso está no distanciamento de alguns segmentos de educadores das questões concretas que envolvem o funcionamento da escola e o trabalho dos professores.
Penso que o processo educativo escolar deve ser analisado no entrecruzamento de fatores externos e internos, mas a atividade pedagógica mesma tem caráter endógeno, de dentro para fora e, precisamente por isso, as políticas de formação suporiam um investimento teórico-científico na investigação séria, na definição de propostas educativas para a escola, condensadas nos objetivos sociais e culturais, nas capacidades, competências e habilidades cognitivas a formar, nos formatos curriculares, nas metodologias de ensino, nas práticas de gestão, nos níveis esperados de desempenho escolar dos alunos. Como isso não vem acontecendo, vemos projetarem-se no campo da educação conseqüências desse descompasso das políticas de formação, as diretrizes curriculares e os instrumentos legais em relação ao mundo real das escolas e professores. Entre essas conseqüências estão:
a) Desconexão entre a pesquisa e as práticas escolares, junto com uma linguagem acadêmica do professor universitário distanciada do mundo de representações dos professores. Temos dificuldade de captar necessidades de formação originadas nos contextos concretos de ensino e aprendizagem das escolas e das salas de aula.
b) Separação entre a concepção “política” da formação de professores e as formas “pedagógicas” de viabilização dessa formação, ou seja, na separação entre um “discurso sobre” e as formas de operacionalização pedagógica e didática, entre a retórica e as práticas. Isso leva a uma dissociação entre a cultura associativa e sindical e a natureza da atividade profissional própria do professor do ensino infantil e fundamental. Ou seja, os militantes sindicais e as associações querem emancipar o professor, ajudá-lo na internalização de uma consciência critica e política, fazê-lo participar das decisões no âmbito da escola, mas, por outro lado, tendem a se omitir em relação às formas de tornar o professor um profissional capaz de agir com competência nas tarefas de promover a aprendizagem dos alunos e sua formação como sujeito pensante e cidadão. Com isso, emancipa-se o professor, mas não se investe em ações para prepará-lo intelectualmente e metodologicamente para emancipar o aluno.
c) Posicionamento de professores e pesquisadores universitários que estudam as políticas educativas do Estado, pesquisam as práticas das escolas e dos professores de outros graus de ensino, dizem como deve ser o professor, mas, no entanto, não analisam e não refletem criticamente sobre suas próprias práticas e a cultura universitária que, no fundo, secundariza a formação de professores e desvaloriza a profissão.
d) Desatenção com os aspectos qualitativos do funcionamento da escola. Fala-se muito de qualidade política, de qualidade vista sob uma ótica externa, mas deixa-se de considerar a qualidade interna das aprendizagens. Há sim uma qualidade política, mas ela se constrói no cotidiano das escolas e das salas de aula, por meio do exercício profissional. É preciso ter clareza de que o eixo da instituição escolar é a qualidade dos processos de ensino e aprendizagem que, mediante procedimentos pedagógico-didáticos, propiciam melhores resultados de aprendizagem.
É com base nessas constatações que vejo como solução bastante positiva para atender às demandas e necessidades reais das escolas a oferta, numa Faculdade de Pedagogia (ou Faculdade de Educação), de cursos de bacharelado e cursos de licenciatura (estes, a curto prazo, contemplando a Educação Infantil e as Séries Iniciais, mas a médio prazo, incluindo também a licenciatura em Educação Especial e as licenciaturas para toda a Educação Básica). Não creio que essa medida viesse a abalar as convicções dos membros de associações de educadores (como Anfope e ForumDir) e dos legisladores do CNE, já que há outros aspectos da formação a serem considerados e que são bem contemplados nas propostas. Além do mais, a legislação deixaria em aberto a possibilidade de criação do bacharelado, de modo que as instituições de ensino não precisariam, obrigatoriamente, criá-lo.
A proposta de resolução do ForumDir, reformulando o projeto de Resolução do CNE, deixa margens para aprimoramento da concepção de um curso de pedagogia. Para desbloquear redações confusas e ganhar mais consistência, bastaria que aparecessem artigos com esta configuração:
Artigo 1º) A formação dos profissionais da educação para atuação na educação básica e em outras instâncias de prática educativa, far-se-á exclusivamente em Faculdades de Pedagogia, que oferecerão curso de pedagogia desdobrado em bacharelado em pedagogia e em cursos de licenciatura.
§ 1o – O bacharelado em pedagogia destina-se à formação de profissionais de educação não docentes voltados para os estudos teóricos da pedagogia e exercício profissional no sistema de ensino, nas escolas e em outras instituições educacionais, inclusive não-escolares, conforme habilitações a definir.
§ 2o – Os cursos de licenciatura desatinam-se à formação de professores para a educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, e em médio prazo, para toda a Educação Básica.
§ 3o – Tanto o bacharelado em pedagogia quanto os cursos de licenciatura poderão oferecer, ao final do curso, habilitações conexas, tendo em vista favorecer modalidades flexíveis de formação conforme necessidades detectadas no âmbito do funcionamento interno das escolas e outras instituições educacionais não-escolares.
Para concluir. Os cursos de pedagogia representam, talvez, a oferta de formação profissional mais democrática que existe no país. Temos diferentes cursos, diferentes níveis de qualidade, diferentes níveis de formação dos professores-formadores. Poucos cursos de formação profissional atingem os mais distantes municípios, compondo as culturas locais, criando um tipo de cidadão, ajudando as crianças a terem um rumo na vida, ampliando as possibilidades de conquistar a dignidade humana. Há algo de imensurável quanto aos benefícios sociais e humanos que provêm do trabalho dos professores em cada recanto do país, especialmente no ensino fundamental. No entanto, este fato constitui-se também numa fonte imensa de problemas tais como a distância entre a grande produção cientifica e as realidades concretas das escolas e dos professores, disparidades, inconsistências e limites dos processos de formação inicial e continuada, dificuldades dos governos em atender necessidades e demandas locais às vezes imperceptíveis pelas pessoas do lugar.
É preciso maior empenho de todos os segmentos de intelectuais ligados ao campo da educação em salvar a escola brasileira. Para isso são necessários os pedagogos especialistas e os pedagogos professores. Melhorando a formação de professores e das escolas se possibilita a qualidade cognitiva das aprendizagens dos alunos, de modo a formar brasileiros mais cultos, mais cidadãos, mais participativos. Todo educador que tem clareza do seu papel social e político sabe que a escolarização básica obrigatória tem um significado educativo, político e social, implicando o direito de todos, em condições iguais de oportunidades, ao acesso aos bens culturais, ao desenvolvimento das capacidades individuais e sociais, à formação da cidadania, à conquista da dignidade humana e da liberdade intelectual e política. Isto é trabalho para professores e especialistas, e é para isso que os cursos de formação precisam preparar.
É por tudo isso que se requer uma legislação clara, explicita e, ao mesmo tempo, aberta, para além das divergências acadêmicas e políticas. As associações não podem perder esta oportunidade de realizar um pacto entre si e com os legisladores do CNE para aprimorar o documento das Diretrizes Curriculares para a Pedagogia[5].
Bibliografia
BRASIL. Anfope. Documentos finais de encontros.
BRASIL/Conselho Nacional de Educação. Projeto de Resolução do CNE. 2005
BRASIL. Forundir. Proposta reformulada pelo ForumDir, a partir do Fórum Nacional realizado em março/2005, sobre a Minuta de Projeto de Resolução do CNE.
BRASIL/Mec/Comissão de Especialistas do Ensino de Pedagogia. Proposta de Diretrizes curriculares. 1999.
CHAVES, Eduardo O. C. O curso de Pedagogia. In: Caderno do CEDES, Ano I, n. 2, 1981.
LIBÂNEO, José C. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cortez, 2005. 8ª. Edição.
LIBÂNEO, José C. As políticas de formação de professores no contexto da reforma universitária: das políticas educativas para as políticas da educação. Anais do VII Encontro de Pesquisa em Educação do Centro-Oeste (EPECO), junho de 2004. CD-Room.
LIBÂNEO, José C. Produção de saberes na escola: suspeitas e apostas. In: CANDAU, Vera M. (org.), Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LIBÂNEO, José C. e PIMENTA, Selma G. Formação de profissionais da educação: visão crítica e perspectiva de mudança. Educação & Sociedade, Campinas, ano XX, n. 68, dez.99.
LIBÂNEO, José C. Educação, Pedagogia e Didática: o campo investigativo da pesadogia e da didática no Brasil: esboço histórico e buscas de identidade epistemológica e profissional. In. PIMENTA, Selma G. (org.).Didática e Formação de Professores - Percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. S.Paulo: Cortez, 1997.
MIALARET, Gaston. Pédagogie générale. Paris: Presses Universitaires de France, 1991.
QUINTANA CABANAS, José Maria. Teoria de la educación – Concepción antinómica de la educación. Madrid: Dykinson, 1995.
SCHMIED-KOWARZIK, Wolfgang. Pedagogia dialética. S.Paulo: Brasiliense, 1983.
VISALBERGHI, Aldo. Pedagogia e scienze dell’educazione. Milão, Arnoldo Mondadori Editore, 1983.
José Carlos Libâneo*
* Doutor em História e Filosofia da Educação pela PUC de São Paulo. Professor Titular da Universidade Católica de Goiás.
[1] Ver, sobre isso, o capítulo “Os significados da educação, modalidades de prática educativa e a organização do sistema educacional”, no meu livro Pedagogia e pedagogos, para quê? (1998).
[2] Mesmo admitindo a pertinência das ciências da educação no currículo dos cursos de licenciatura de 1ª. à 4ª. séries, vejo problemas nas formas como têm sido trabalhadas pelos professores. Escrevi em artigo publicado em 2001: “Boa parte dos professores formadores de professores (filósofos, sociólogos, psicólogos e, até, especialistas no ensino de disciplinas) desconhece a necessidade de que suas disciplinas se convertam em saberes pedagógicos, ou se recusam a isso, pelo que formulam conteúdos distanciados dos problemas concretos das salas de aula, empobrecendo a especificidade desses saberes, muitas vezes substituídos pela discussão de temas fragmentados – linguagem, gênero, interdisciplinaridade, diversidade cultural – dissociados do campo conceitual da pedagogia e da didática e, por isso mesmo, resultando em visões reducionistas. (...) Por razões ainda pouco pesquisadas, muitos desses professores resistem a converter os saberes das ciências da educação – quando estas se destinam a formar professores - em saberes pedagógicos e, com isso, pouco colaboram no atendimento de necessidades e problemas postos pela prática. (...). Há casos de professores que, a propósito de análises políticas, sociais, econômicas, sobre a situação da educação e do ensino, induzem os alunos a uma atitude de ceticismo, às vezes até de desdém pelas questões pedagógicas, levando à ridicularização da profissão. Nesse acaso, alguns professores formadores confundem “postura crítica” com atitudes destrutivas em relação à educação e à profissão, corroendo as possibilidades de construção da identidade profissional e compromisso com a profissão. (2001, p. 15).
[3] É interessante lembrar que essa idéia consta da Indicação 70/1976, de Valnir Chagas, que trata da formação dos especialistas em educação. Nesse documento, advoga-se a o acoplamento da formação do especialista em educação a uma licenciatura prévia como especialização, como diz a Indicação, como “habilitações acrescentadas a cursos de licenciatura”. No mesmo documento, é incentivada a formação desses especialistas em nível de pós-graduação stricto sensu. É evidente que esta norma tem como intenção a desestimulação da formação de especialistas, pelas dificuldades notórias de candidatos buscarem um curso que envolve pelo menos mais dois anos de formação, além de anunciar a extinção do curso de pedagogia propriamente dito.
[4] Não há uma razão sólida, além daquela já apontada sobre a divisão técnica do trabalho na escola, para se afirmar que a formação do especialista após a licenciatura e que a exigência de experiência de docência como requisito para essa formação, seja a grande saída para se ter um profissional competente e maduro para administrar a escola e supervisionar o trabalho dos professores. Que garantias existem para que o bom exercício profissional seja automaticamente assegurado pela prática de magistério, possivelmente cumprida pelo candidato em inicio de carreira, sem maturidade suficiente para tirar proveito pedagógico dessa prática? Não é bem mais sensato entrender que experiência se adquire ao longo do exercício profissional?
[5] Sabe-se que há uma comissão do CNE, designada em 23/8/2003, cujo objetivo é “estabelecer diretrizes operacionais para a formação de professores para a Educação Básica e apresentar estudo sobre a revisão das resoluções CNE-2/97 e 1/99. O processo foi retirado da discussão, mas está no site do CNE e contém um projeto de resolução que dispõe sobre Diretrizes curriculares nacionais para formação de professores para educação básica.
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