segunda-feira, 9 de junho de 2008

DIFICULDADE DE ENSINAGEM: QUE HISTÓRIA É ESSA?


DIFICULDADE DE ENSINAGEM:

QUE HISTÓRIA É ESSA?

Elizabeth Polity

RESUMO No presente trabalho parto do pressuposto que existe um correspondente para a dificuldade de aprendizagem do aluno, enunciada na fala do professor e que se refere à sua prática, que aqui denomino dificuldade de ensinagem. Esta pesquisa visa investigar através do que eu chamo de Processo de Transformação da Relação Pedagógica - que vem a ser um espaço reflexivo, no qual o professor pode pensar sobre suas dificuldades de ensinagem, a partir de sua própria história - a construção de uma narrativa transformadora, aqui entendida como a construção de outras narrativas, que permitem re-organizar sua prática pedagógica, gerando novas possibilidades para a compreensão das experiências pessoais, relacionais e educacionais. Para tanto, me propus a construir um trabalho em conjunto com a equipe de professores de uma instituição escolar, observando as narrativas iniciais, que davam conta das dificuldades apontadas pelos professores (dificuldades de ensinagem) e o acompanhamento de um processo(PTRP), que favorecia uma conversação, onde pudessem ser relatadas as observações e/ou mudanças percebidas no decorrer desse processo, e explicitadas através dos depoimentos dos professores no final do percurso

ABSTRACT

In the present work I supposed that it exists a correspondent for the learning disability of the pupil, enunciated in it speaks of the professor and that if it relates to practical its, that here I call teaching difficulty. This research aims at to investigate through that I call Process Hashing the Pedagogical Relation - that he comes to be a reflective space, in which the professor I can think on its difficulties ofteaching, from its proper history - the construction of a transforming narrative, understood here as the construction of other narratives, that allow to reorganize pedagogical practical its, generating new possibilities for the understanding of the personal, relation and educational experiences.

For in such a way, I considered myself to construct a work in set with the team of professors of a pertaining to school institution, observing the initial narratives, that gave to account of the difficulties pointed for the professors (teaching difficulties) and the accompaniment of one process (PTRP), that it favored a conversation, where could be told to the comments and/or changes perceived in elapsing of this process, and explained through the depositions of the professors in the end of the process.

Introdução

Penso que seria pertinente iniciar esse trabalho contextualizando o meu atual interesse pelo tema. Com esse intuito, relatarei brevemente alguns aspectos biográficos que foram fundamentais e decisivos nesta minha opção.

Decorrente de minha formação acadêmica nas áreas da educação e da psicologia, e de minha prática clínico-institucional, desenvolvida como terapeuta familiar e como coordenadora de um colégio, venho observando alunos, famílias e professores que compõem elos de uma rede social mais ampla: a da organização escolar.

Há vinte anos, venho desenvolvendo um trabalho com crianças que apresentam a queixa de dificuldade de aprendizagem, sendo esta a área em que concentrei meu maior interesse.

Em três trabalhos anteriores – Ensinando a Ensinar (Polity,1997), Psicopedagogia – Um Enfoque Sistêmico: Terapia Familiar nas Dificuldades de Aprendizagem (Polity, 1998), e Aprendizagem e Família: Construindo Novas Narrativas (Polity, 2001) – procurei entrar em contato e pesquisar as relações presentes entre os diversos sistemas envolvidos no processo de ensinar e aprender. No último trabalho, centrei-me no aluno e na dinâmica das relações familiares, afetando e sendo afetada pelo sintoma, então entendido como dificuldade de aprendizagem. Este percurso possibilitou-me algumas observações, além de suscitar questões que me faziam refletir.

Considero que a dificuldade de aprendizagem não se restringe apenas ao aluno, mas tem implicações nos outros sistemas envolvidos: família, professor, escola, meio social. Neste cenário, ao se enfocar o trabalho do professor, percebe-se a existência de um correspondente da dificuldade de aprendizagem do aluno no trabalho do professor, enunciada pelo mesmo, que aqui chamo de dificuldade de ensinagem – termo designado para abarcar as questões da história de vida do professor que se presentificam na sua prática. Então:

1. Como transformar a definição da dificuldade de aprendizagem, num processo que implique também o professor e sua dificuldade de ensinagem?

2. Como favorecer que esse professor se perceba como um observador incluído na realidade e como co-construtor desse contexto?

Minha proposta, nesse trabalho, era investigar, através do que eu chamo de Processo de Transformação da Relação Pedagógica (PTRP) que vem a ser um espaço reflexivo, no qual o professor pode pensar sobre suas dificuldades de ensinagem, a partir de sua própria história – a construção de uma narrativa transformadora, aqui entendida como a construção de outras narrativas, que permitem reorganizar sua prática pedagógica, gerando novas possibilidades para a compreensão das experiências pessoais, relacionais e educacionais.

Para tanto, me propus a construir um trabalho em conjunto com a equipe de professores de uma instituição escolar, observando as narrativas iniciais, que davam conta das dificuldades apontadas pelos professores (dificuldades de ensinagem) e o acompanhamento de um processo (PTRP), que favorecia uma conversação, no meu entender, terapêutica, onde pudessem ser relatadas as observações e/ou mudanças percebidas no decorrer desse processo, e explicitadas através dos depoimentos dos professores no final do percurso.

Embora este procedimento objetivasse conectar a experiência do professor com a do aluno e com a da pesquisadora, para a construção de uma visão mais ampliada do contexto, considerei necessário fazer um recorte, para viabilizar a pesquisa, priorizando a população dos docentes.

Dificuldade de aprendizagem ou dificuldade de ensinagem?

O meu olhar e a minha escuta sempre estiveram voltados para as questões do ensino-aprendizagem, especialmente para as dificuldades de aprendizagem. Entretanto, ao olhar para essas questões de uma maneira sistêmica, fui levada a considerar a participação do professor nos processos de dificuldade de aprendizagem e de fracasso escolar. E aí passei a indagar: dificuldade de aprendizagem ou dificuldade de ensinagem?

Quando falamos do fracasso escolar, é importante diferenciá-lo das dificuldades de aprendizagem que, embora freqüentemente confundidos, não fazem parte da mesma classe.

O fracasso escolar está relacionado ao sistema educativo, revelando as inadequações das instituições escolares que são, em última instância, representadas pelos professores, coordenadores, diretores, entre outros profissionais. As dificuldades de aprendizagem nem sempre geram fracasso escolar, como ficou evidenciado em minha pesquisa anterior (Polity, 1999). Elas dizem respeito ao sujeito aprendente, mas, se bem conduzidas, podem levar o aluno a obter êxito nos estudos.

Duas grandes justificativas para o fracasso escolar do aluno podem ser encontradas na fala de alguns professores: a ênfase na estrutura intelectual do aluno, afirmando-se que o conhecimento encontra-se pré-formado no sujeito e que, portanto, durante seu desenvolvimento, irá apenas aperfeiçoá-lo (e assim os alunos não aprendem porque não estão maduros, não estão prontos, porque ainda não deu o “click”); e a ênfase no déficit relacional e ambiental, deduzindo-se que o conhecimento é transmitido de alguém que sabe para alguém que não sabe, como uma espécie de substância que passa de um para outro, havendo, então, uma supervalorização do meio em relação ao sujeito que aprende, de acordo com essa última vertente de pensamento; ser bem-sucedido ou fracassar na escola, dependem do meio no qual os sujeitos estão inseridos; ou seja, os alunos não conseguem aprender porque não tiveram um ambiente propício para o seu desenvolvimento.

Muito já se escreveu sobre situações de fracasso escolar, não como uma questão de a criança ter, ou não, um certo domínio cognitivo, mas em função do que os professores pensam sobre ela ou sobre suas dificuldades, ou seja, em função da posição em que o professor a coloca e coloca a si mesmo frente ao saber, numa demonstração de que a forma de seu posicionamento diante das possibilidades de aprendizagem da criança introduz uma diferença significativa no processo pedagógico (Mantovanini, 2001).

Percebe-se que o modo hegemônico de pensar a relação ensino-aprendizagem, ora privilegia os fatores internos do aprendente, ora os fatores externos – o meio cultural, nele inserindo os professores.

Entretanto, para se compreender este emaranhado e complexo processo de aprender versus não aprender, de ensinar versus não ensinar, precisamos nos valer de uma óptica que privilegia múltiplas direções, tendo a humildade de percebê-las todas como incompletas.

Para tanto, é necessário destacar a importância do questionamento do fracasso de quem aprende, olhando também para o fracasso de quem ensina – ou seja, para a dificuldade de ensinagem.

Penso que aprender está para a aprendizagem assim como ensinar está para a ensinagem, referindo-me à forma processual destes fazeres, o que me permite considerar que a dificuldade de aprendizagem está intimamente relacionada à dificuldade de ensinagem, e que ambas podem gerar o fracasso escolar.

À esta altura, cabe um esclarecimento sobre a utilização do termo dificuldade de ensinagem no lugar de dificuldade de ensinar. Optei por essa distinção, pois penso que a dificuldade de ensinar refere-se apenas a transmissão de um conteúdo específico. Assim, por exemplo, se não conhecemos a física quântica, temos dificuldade de ensiná-la. O mesmo se dá com tantos outros assuntos que não temos condições de lecionar, de transmitir, de fazer conhecer, porque nós mesmos o desconhecemos. Já a ensinagem, ao meu ver, é basicamente relacional, pressupondo interação. Além do processo emocional, implícito no ato de ensinar, ela refere-se a uma comunicação interativa em que os estados de intersubjetividade podem tornar-se significativos. Supõe relacionamento e considera as trocas emocionais que permeiam o ato de ensinar. A ensinagem é, portanto, ensinar com a emoção e com a razão. Por isso, este processo demanda, para seu entendimento, um enquadre nos paradigmas Construtivistas/Construcionistas Sociais.

Entendo este processo como basicamente relacional, na medida em que parto do princípio de que o conhecimento nos é viabilizado pelo outro, construído na e pela relação com nosso(s) interlocutor(es), ficando na dependência de que possamos dar-lhe significado por meio da reflexão, ou seja, agregando valor às novas experiências.

Dar significado é algo mais que atribuir uma definição; é a definição somada ao componente pessoal de quem exerce o ato de definir. Existe uma interação entre o social e o individual, como complementares e interdependentes. Essas duas dimensões supõem a existência de um self e de objetos internalizados com os quais se possa dialogar, além da possibilidade de se reter experiências e de construir novas, a partir das anteriores.

Não é um processo que conduz somente à acumulação de novos conhecimentos, mas também à integração, à modificação, ao estabelecimento de relações e à coordenação entre esquemas de conhecimento que já postulamos. Ou seja, trata-se da construção conjunta que se opera na relação.

Muitos trabalhos da área da Educação ocupam-se com o que é ensinar, como se ensina, quais os métodos educacionais existentes, entre outros. Também trabalhos da área de Psicologia voltam-se para o ato de ensinar, quando abordam as questões relativas ao desenvolvimento da inteligência e da afetividade, presentes no processo de ensinar e aprender. São muitas as teorias, e igualmente numerosas, as práticas que se preocupam com este tema, fundadas em diferentes orientações ontológicas e epistemológicas. Vale ressaltar que a este trabalho interessa fundamentalmente a (dificuldade de) ensinagem.

A relação humana evidenciada no processo de ensinar acontece com a articulação de diferentes fatores internos e externos do professor em relação ao aluno. Os fatores internos são proporcionados não só pelas estruturas de base intelectual e lógica, mas também pelas de ordem afetiva e do desejo, articulando-se à história de vida de cada um, e servindo como resposta do sujeito à realidade que o cerca, podendo inclusive modificá-la. Já os fatores externos são proporcionados pelas condições desta realidade, que constituem o contexto de vida no qual o sujeito está inserido.

Demandam, portanto, para sua compreensão, uma visão ampla e complexa para poder abarcar todos os aspectos envolvidos, bem como a possibilidade de trabalharmos interdisciplinarmente para melhor responder aos desafios que se apresentam. Estas características estão em acordo com o modelo sistêmico eleito como referencial teórico para este trabalho.

Ao olharmos para as dificuldades de ensinagem, enquadradas nas epistemologias do Construtivismo/Construcionismo Social, surge a necessidade de incluir, dentro do espaço sistêmico, uma teoria que abarque os aspectos afetivos. Muitas vezes, os sentimentos presentes nas relações entre professor/aluno e professor/coordenador podem ser identificados em termos de empatia, de identificação projetiva e de transferência. Penso que estes conceitos podem e devem ser entendidos dentro do enquadre teórico que os produziu. Entretanto, a teoria sistêmica não nos nega a possibilidade de pensarmos essas situações sob uma perspectiva que lhes dêem significado. Por isso, em alguns momentos deste artigo, estes conceitos serão utilizados como forma de elucidar algum pensamento.

Como educadora, concebo o processo de ensino/aprendizagem como fruto de uma construção que acontece essencialmente no contato com o grupal, inserindo os sujeitos na realidade em que vivem, portanto, em conformidade com os pressupostos construtivistas/construcionistas sociais, tendo como sustentáculo o modelo sistêmico.

O modelo sistêmico : da prática terapêutica para a prática educacional

O modelo sistêmico está calcado na Teoria Geral dos Sistemas e pode ser aplicado à Terapia Familiar, que adota essa orientação. Ele vê o funcionamento familiar como um sistema vivo, portanto, a dinâmica e a interação entre seus membros estão sujeitas às mesmas leis que se observam nos sistemas orgânicos. Essa visão pode ser estendida para a compreensão do sistema escolar.

A epistemologia sistêmico-construtivista que tomamos emprestada para este trabalho, adota o pressuposto básico de que o ser humano, por sua estrutura ou biologia, não tem acesso objetivo à realidade. Adotar esta epistemologia significa escolher uma maneira particular de descrever a relação que se estabelece entre as pessoas, entendendo que a realidade é a que construímos no convívio com os demais, sendo nós, portanto, os responsáveis pela realidade que construímos. (Zuma, 1994: 36) Da Teoria Geral dos Sistemas podemos apreender o pensamento sistêmico, tido como uma visão da realidade que se baseia no estado de inter-relação e de interdependência de todos os fenômenos físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais, transcendendo as atuais fronteiras das disciplinas e dos conceitos, configurando uma estrutura inter-relacionada de múltiplos níveis de realidade multidisciplinar, gerando uma mudança de filosofia e uma transformação da cultura (Paccola, 1994: 15).

O interesse pela ação profissional do professor, tal como ela se realiza no cotidiano, surgiu das dificuldades expressas pelo próprios docentes em exercer sua prática. Muitas das queixas explicitadas levavam em conta apenas o aluno/classe como agente causador dos problemas. O modelo sistêmico permite uma redefinição dos sujeitos envolvidos, tornando todos, co-responsáveis pela ação pedagógica.

O professor e seu mundo profissional “inter-atuam” formando uma rede fina de relações, de sistemas, de símbolos, com sua estrutura particular de significados. A apreensão dessa dinâmica pode ser auxiliada pelos estudos de Berger & Luckmann (1978) sobre a construção social da realidade, nos quais são identificados esquemas tipificadores de ações e de atores que implicam historicidade, na medida em que são construídos no tempo e têm sempre uma história, da qual são produtos. Pode ainda ser auxiliada pelo modelo sistêmico, que insere o professor em uma história na qual está incluída uma família de origem que lhe transmite valores, mandatos e crenças que vão orientar sua escolha e seu fazer profissional. É importante ainda sinalizar que essa dinâmica está também permeada por uma dimensão intrapsíquica.

À imagem da terapia, pode-se afirmar que uma ação educacional bem sucedida é aquela que deixa para o aluno a sensação de ter adquirido instrumentos para buscar seu próprio saber. Para Tom Andersen (1996), terapeuta familiar, a pessoa do (terapeuta) professor é uma presença concreta na história de vida do seu (paciente) aluno, com o qual ele – aluno – vai poder dialogar sempre que sentir necessidade, relacionando o hoje com o ontem, numa espécie de referência de continuidade de suas histórias. E estas histórias deixarão marcas nos dois sujeitos envolvidos: professor e aluno. Quando novas idéias ou construções surgem neste espaço comum, elas parecem decorrer de um encontro entre os sujeitos envolvidos, não tendo, portanto, uma única autoria, mas configurando-se, outrossim, pelo entrecruzamento de muitas reflexões e contribuições.

Penso que os professores pertencem a múltiplos contextos e trazem para sua prática profissional muitas referências pessoais e familiares. Suas experiências como educadores transformam-nos como sujeitos, da mesma forma que eles transformam os que os cercam, tratando-se de uma via de mão dupla.

Quando trabalham com os alunos, eles os escutam a partir de suas histórias pessoais. Muitas vezes, paralisam-se frente as suas dificuldades, por não conseguirem dar conta das emoções ali suscitadas. Como partes de um sistema educacional, definido pelos pressupostos do modelo sistêmico, somos todos observadores participantes e estamos tão envolvidos, quanto os alunos, no processo de ensino/aprendizagem. Aquilo que construímos é produto de uma co-construção, o que significa não só o estar junto, mas também o sentir junto (Grandesso, 2000).

É necessário agora introduzir algumas considerações sobre as narrativas, tendo em vista que elas são as histórias que surgem quando se resgata os momentos vividos em sala de aula, contados para a pesquisadora e para a equipe de colegas, tendo como pano de fundo as dificuldades de ensinagem.

As narrativas

Desde há muito as histórias fazem parte das vida das pessoas. Os mitos, os contos de fada, as histórias folclóricas, as histórias contadas entre a família e perpetuadas para as gerações mais jovens – todas essas formas de narrativa oferecem uma maneira organizada de reproduzir a ação humana. Todas as histórias que contamos ajudam-nos a expressar a maneira como compreendemos nossas experiências, auxiliando-nos não só a comunicá-las aos outros, mas sobretudo a nós mesmos. As narrativas ajudam assim a organizar nossa existência em seqüências espaciais e temporais, por meio de relatos sobre o mundo e sobre nós mesmos.

Penso que faz parte da natureza humana gostar de contar histórias, de ouvir histórias, de completar histórias, enfim, da arte de narrar e finalizar uma narrativa, como bem nos lembra a história de Scheerazade e das Mil e Uma Noites. Os narradores árabes parecem ter percebido que a narrativa interrompida e retomada tem o poder de criar uma necessidade de mais narrativas, que se enganchariam em outras, pessoais, histórias de vida do ouvinte.

Este movimento relacional, que pressupõe pelo menos dois participantes, põe em andamento a construção de uma nova visão sobre os fatos e sobre os sentimentos ali atualizados, numa tentativa de descrever, tão completamente quanto possível, a natureza específica da experiência entre a subjetividade individual e a intersubjetividade. É um processo que se retroalimenta, na medida em que desperta no narrador e no ouvinte a necessidade de completar e/ou produzir mais narrativas. Nesta perspectiva, a realidade pode ser definida como acordos narrativos co-organizados em conversações.

Os relatos colhidos entre os professores serão então, apresentados sob a forma de narrativas, entendendo que esse recurso presta-se para focar os modelos internos, baseados em sua estrutura psicodinâmica, bem como em sua maneira de se posicionar no mundo. Elas são construções complexas que se estruturam ao redor de tramas temáticas, estando sempre abertas a uma reconstrução transformadora.

Desenvolvimento do Trabalho

O trabalho teve como objetivo investigar o Processo de Transformação das Relações Pedagógicas a partir de relatos do professor sobre as dificuldades de ensinagem, visando a construção de narrativas mais ampliadoras e significativas para o desenvolvimento de seu trabalho junto aos alunos.

Para desenvolvê-lo, escolhi um colégio particular de Ensino Fundamental e Médio, de classe média/alta, situado na cidade de São Paulo. Este estabelecimento atende crianças com queixas de dificuldade de aprendizagem, tendo em média 70 alunos, distribuídos em dois períodos: matutino e vespertino. O referido colégio oferece um atendimento individualizado, desenvolvendo currículos escolares que atendam às necessidades específicas dos alunos. Tem como objetivo fortalecer a auto-estima e promover o desenvolvimento por meio de um saber fazer e de um saber ser.

Os participantes foram três professores desse Colégio que trabalhavam, há pelo menos dois anos, com crianças e/ou jovens com queixas de dificuldade de aprendizagem (conforme anteriormente definida). Tais professores apresentavam a queixa de dificuldade de ensinagem. Eram eles:

• Teresa, 35 anos, professora de sala da alfabetização, Ensino Fundamental. Leciona há dois anos no colégio.

• Sara, 26 anos, professora da 2a série do Ensino Fundamental. Leciona no colégio há dois anos e três meses.

• Silvio, 38 anos, professor de Química, Ensino Médio. Está no colégio há dois anos e quatro meses.

Além de mim mesma, que exercia o papel de coordenadora.

Procurei criar um contexto de um encontro facilitador, para ir em busca da formulação de perguntas ampliadoras, ou seja, daquelas questões que vão sendo colocadas com o intuito de favorecer a reflexão. Elas não buscam uma resposta objetiva, mas antes, propiciar condições para a criação de novas histórias a partir das existentes.

Para ocupar a posição de facilitadora do processo, daquela que busca auxiliar o acesso “ao que é útil” para o professor, por meio de um diálogo ampliador, é preciso haver um tempo amplo para ouvi-lo, para tentar entender seu discurso, para conectar-me com seus pontos de vista e, desta forma ajudá-lo a pensar seus conceitos sobre si mesmo e sobre outras pessoas pertinentes ao contexto, auxiliando-o, ainda, a buscar narrativas mais poderosas. Esta maneira de trabalhar está baseada no conceito de resiliência, em que a ênfase é dada no “que é forte na pessoa” e não no “que há de errado com ela”.

Como pesquisadora, coerente com a epistemologia adotada neste trabalho, coloquei-me como parte da realidade observada e também com a que cria, ao mesmo tempo em que está inserida, o contexto a ser observado.

O trabalho visava conversar dialogicamente com os professores sobre as suas dificuldades de ensinagem, de modo a se obter uma narrativa que contemple as seguintes questões:

• Quais são as suas dificuldades de ensinagem?

• Que compreensão eles têm da sua dificuldade de ensinagem?

• Qual é o significado atribuído a elas: o que pensam e o que fazem?

• Quais as idéias que eles têm sobre a dificuldade de ensinagem?

• Quais as crenças que permeiam seu fazer profissional?

• Se existem ganhos com as dificuldades de aprendizagem, quais são? E com as dificuldades de ensinagem?

• Quem ganha? Quem perde?

• Que medos, desejos e fantasias estão presentes na ensinagem?

• Quais narrativas são úteis para descrevê-las?

• quem é favorecido a partir de um diálogo sobre as experiências de ensinagem?

• Para quem ele é útil?

• Existem tentativas para se solucionar problemas? Quais são os seus efeitos ?

• Como eles vêem seu relacionamento com os alunos e com os familiares destes, com a escola e com a pesquisadora?

Além destas, existem muitas outras questões que podem ser criadas, em conjunto, no momento da ação, sempre partindo de um lugar e tendo em vista chegar em outro, por intermédio de perguntas ampliadoras.

Como instrumento utilizei o Processo de Transformação da Relação Pedagógica.

O PTRP consiste num conjunto de algumas práticas que visam favorecer o diálogo compreensivo do professor sobre si mesmo e uma “compreensão da compreensão” por parte da pesquisadora. Ele é composto por 6 etapas, que fazem um recorte necessário no processo construído com o professor sobre seu fazer profissional. Em todos elas, a proposta é se criar um contexto que permita a reflexão sobre as questões acima enunciadas.

As etapas são:

• O genograma construtivista

• Circunscrevendo a dificuldade

• mito como metáfora para a prática profissional

• Que país sou eu?

• Carta a um aluno imaginário

• Reorganizando a experiência: A narrativa final

Para auxiliar o desenvolvimento deste diálogo, proponho o seguinte roteiro de perguntas:

® Você percebe alguma mudança em sua prática pedagógica?

® Como você redefiniria aquilo que anteriormente era nomeado por dificuldade de ensinagem?

® Que competências foram postas a seu serviço?

® Você sente que estes encontros te ajudaram? Em quê?

Gráfico que ilustra o PTRP

A Compreensão do Processo

Tendo como objetivo refletir sobre as diferentes práticas nos diferentes contextos, estes processos construtivos operam como plataformas para a expansão de fazeres, de experiências e de descrições que se constituem como indicadores de um processo em curso.

Para desvendar aspectos essenciais da visão do professor a respeito de sua prática, creio que seja necessário fazer uma aproximação de questões relacionadas a condições internas, relacionais e culturais que emergem do cotidiano escolar, criando condições para retratá-las de forma mais honesta e próxima possível, permitindo que daí surjam reflexões e, quem sabe, estratégias de ação pedagógica que possam auxiliar os implicados neste processo: o professor e o aluno.

Após nos reunirmos por 18 encontros, algumas observações a cerca do processo tornaram-se possíveis:

1- Muitos professores acreditam que a origem das dificuldades de aprendizagem de seus alunos encontra-se nos problemas emocionais advindos de uma família problemática. Acreditando que não têm como mudar situações sobre as quais não possuem o menor domínio – no caso da família do aluno, por exemplo – rotulam-no de problemático e dele se desinteressam. Este desinteresse, na maioria das vezes, gera raiva, frustração e rejeição que, por sua vez, cumpre a profecia de aluno problema. Mas, poderíamos nos perguntar: Se o processo de ensino-aprendizagem é basicamente relacional, onde está inserido o professor? Por que ele não se vê fazendo parte deste processo?

2- A narrativa o convida a repensar suas relações de autoridade e a revisitar um aspecto de seu desenvolvimento que pode ser adequado ao seu estágio atual. Proporciona, ainda, a oportunidade para se questionar sobre o mito do professor ideal e o custo de mantê-lo.

3- O trabalho demandou um empenho mútuo: do professor e da coordenação. É nisto que consiste o não-saber: ambos terem a possibilidade de caminhar no processo, sem a pretensão de chegar lá.

4- Conforme os sujeitos narram suas histórias começa a haver uma ampliação de conteúdos de seus discursos, os quais se desdobram numa progressiva e mais elaborada compreensão dos fatos que povoam seu universo. Narram, às vezes, num clima de grande perplexidade, pois se dão conta de que, até então, não haviam percebido muitos detalhes do contexto no qual eles ocorreram.

5- O fazer de um professor mobiliza muitas emoções e sentimentos que parecem adormecidos, mas que, em sua prática diária, voltam como fantasmas a assombrar seu trabalho. Muitas vezes, confundido por intensas demandas no campo pessoal, o fazer pedagógico torna-se inoperante. Para cumprir adequadamente sua função de mediador, o professor deve conferir importância às relações, sem esquecer sua atividade intelectual. Este foi o paradigma no qual trabalhamos.

Abrir espaço para a conversação e para a reflexão do professor acerca de seu fazer, não levanta apenas aspectos ligados à aquisição do conhecimento, mas também de sua história pessoal e familiar ligadas às múltiplas formas de aprendizagem. Esta aprendizagem, desenvolvida no núcleo familiar, vai acompanhar o sujeito em toda sua vida profissional, levando-o, ou não, a poder compreender melhor seus alunos ou, em algumas situações, a perceber porque é tão difícil, e até mesmo impossível, trabalhar com determinadas crianças.

Questiona também sua condição para atender aqueles sujeitos que demandam um envolvimento mais intenso e, conseqüentemente, um melhor preparo interno para suportar as dificuldades que aparecem ao longo do caminho.


A dificuldade de aprendizagem tem causas e desenvolvimentos múltiplos, exigindo pesquisas em diversos campos do conhecimento, para que se tenha uma visão mais ampla sobre esse tema.

Ela pode ter tanto uma origem orgânica, ou intelectual/cognitiva, quanto emocional (incluindo-se aí a estrutura familiar/relacional), porém, o que se percebe na maioria dos casos é que há um entrelaçamento destes fatores, responsável pela complexidade da situação.

Dificuldade de aprendizagem é um termo genérico que se refere a um grupo heterogêneo de desordens, manifestadas por dificuldades na aquisição e no uso da audição, da fala, da leitura, da escrita, do raciocínio ou das habilidades matemáticas. Problemas de controle de comportamento, percepção e interação social podem coexistir.

As dificuldades de aprendizado também podem ocorrer em concomitância com outras condições desfavoráveis (retardo mental, séria desordem emocional, problemas sensório-motores) ou, ainda, serem acentuadas por influências externas (como, por exemplo, diferenças culturais, instrução insuficiente ou inapropriada) não sendo, necessariamente, o resultado dessas condições.

Por isso, tanto nas considerações caso a caso, como numa casuística mais ampla, encontrar um fio condutor para explicar a multiplicidade de sintomas é, às vezes, impossível, mesmo para os especialistas. O que responde por este fato é que esta complexa e ampla sintomatologia corre paralela a igualmente complexa rede de possibilidades que a originam.

Crianças tolhidas por uma dificuldade de aprendizagem, na maior parte das vezes, têm o seu desempenho escolar comprometido. Sabe-se que nunca há uma causa única para o fracasso escolar, mas uma conjunção de fatores que, num determinado momento, interagem, imobilizam o desenvolvimento do sujeito e do sistema familiar/escolar/social. Daí a necessidade de não se confundir dificuldade de aprendizagem com fracasso escolar.

Em resumo, considero a dificuldade de aprendizagem como uma síndrome bio-psicossocial, calcada em algumas constituintes básicas: a criança, a família, a escola e o meio social (Polity, 2001).

Tomo aqui a definição proposta por Schnitman (in Cruz, 2000: 297) para Conversação Terapêutica:

“...um processo no qual se vai construindo modelos do possível: novas maneiras de fazer, compreender, relacionar e se relacionar, narrar e se narrar, novos parâmetros para considerar situações, novas matrizes interpretativas. [...] as novas versões que se apresentam têm dinamismo, vão se integrando, desenhando novas tramas a partir de incidentes, episódios, temas. [...] isto permite considerar a terapia como um campo de transformações na medida em quase podem discernir novas sínteses”.

Segundo Kohut (1997: 51), as configurações psíquicas que chamamos de self são as representações da mente e do corpo sobre as funções mentais e físicas, experimentadas como contínuas no tempo, unitárias, coesas e possuidoras de dimensões espaciais estáveis. O self nuclear é uma configuração psíquica específica, acessível à introspecção e à empatia.

Na visão de Karrer (1999: 79), que adota um modelo de Família Sistêmica Interna:

“[o] self pode assumir a liderança da reorganização da família interna e do relacionamento com o mundo externo. Ele é visto como uma parte que lidera outras parte internas, seja aconselhando, seja emprestando sentimentos ou talentos a outra partes.” Comparando-o a uma orquestra, outras partes internas seriam os músicos enquanto o self é visto como o maestro.” E, ainda nas palavras da autora, “ a pessoa possui um self, uma entidade de nível diferente das partes, que em geral, está no centro com quem as pessoas estão conversando. [...] o self precisa ser diferenciado da rede de seus relacionamentos com as várias partes que impedem sua liderança eficiente.” (Idem)

A resiliência é uma propriedade da Física pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora. Hoje em dia, tomando emprestado o termo, podemos utilizá-lo para falar daqueles sujeitos que, demonstrando uma grande resistência interna, são capazes de suportar tensão e stress, e de voltar ao seu estado de desenvolvimento quando o meio cessa de exercer pressão.

Referências Bibliográficas

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Publicado em 26/09/2002 19:43:00

Elizabeth Polity - Psicopedagoga, terapeuta familiar, Mestre em educação, doutoranda em psicologia. Diretora do Colégio Winnicott. Diretora da APTF

Site de origem desse artigo: www.psicopedagogia.com.br - recomendado.

http://www.umaoutravisao.com.br/dificensinagem.html
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Um comentário:

Anônimo disse...

Este termo eu não conhecia, Está anotado.
Clarice, Parantins.

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