terça-feira, 21 de outubro de 2008

Educação Profissional pedagogia do trabalho.


BOLETIM TÉCNICO DO SENAC n.25(2) - DN

Educação Profissional: Categorias
para uma Nova
Pedagogia do Trabalho

Acacia Zeneida Kuenzer *


* Acacia Zeneida Kuenzer. Educação Profissional: categorias para uma nova pedagogia do trabalho. Os novos projetos pedagógicos não nascem das idéias dos intelectuais; ao contrário, eles são determinados pelas mudanças ocorridas no mundo do trabalho, que apresentam diferentes demandas a cada etapa de desenvolvimento das forças produtivas, em função das características que assume a divisão social e técnica do trabalho. Apresenta uma síntese da nova realidade do mundo do trabalho, que será tomada como ponto de partida para uma rápida análise das novas políticas, pano de fundo para a reflexão sobre as categorias que vêm construindo a nova proposta de educação profissional.


AS MUDANÇAS OCORRIDAS NO MUNDO DO TRABALHO: AS BASES DA NOVA PEDAGOGIA

Certamente a mais dramática transformação decorrente da nova etapa de acumulação é a diminuição dos postos de trabalho, tornando-se o desemprego uma tendência que parece ser irreversível, a permanecer o atual modelo. Decorrente antes do deslocamento dos investimentos para a área financeira no plano internacional do que das inovações em tecnologia e gestão, o desemprego assume feições mais perversas nos países periféricos, onde os direitos de cidadania ainda estão longe de ser assegurados para a maioria da população e as desigualdades de todas as ordens acentuam as diferenças de acesso ao trabalho, e em conseqüência, aos bens e serviços socialmente produzidos.

Embora não sejam a principal causa, os avanços da ciência e da tecnologia, resultantes do investimento do grande capital e dos Estados Nacionais, passam a ser estruturalmente constituintes do novo modo de acumulação, contribuindo desta forma para o desemprego não apenas porque os investimentos geram poucos postos, mas também porque os geram no setor mais dinâmico, que não por acaso vem sistematicamente substituindo a força de trabalho pela tecnologia, como estratégia de competitividade e imperativo de sobrevivência das grandes empresas no âmbito da internacionalização.

Com a mudança dos processos de trabalho e das formas de sua organização e gestão, vão se tornando historicamente superadas as formas tradicionais de educação profissional, com suas propostas pedagógicas, espaços, atores e formas de gestão e financiamento definidos a partir de um sistema produtivo organizado segundo o paradigma taylorista / fordista, onde as relações entre capital e trabalho eram mediadas no âmbito dos Estados Nacionais, segundo o modelo de bem-estar social.

Estas formas eram adequadas à educação profissional de um trabalhador que executava ao longo de sua vida produtiva, com pequenas variações, as mesmas tarefas exigidas por um processo técnico de base rígida, para o que era suficiente alguma escolaridade, muitas vezes dispensável, treinamento e experiência, que combinavam o desenvolvimento de habilidades psicofísicas e comportamentos com algum conhecimento, apenas o necessário para o exercício da ocupação, predominantemente instrumental e mecânica.1

A este desempenho, pouco dinâmico em face do estágio de desenvolvimento técnico, também correspondia uma relativa estabilidade, assegurada por um Estado que tinha entre suas metas aproximar a sociedade do pleno emprego.

Com a globalização da economia e a reestruturação produtiva, componentes macroestratégicos da acumulação flexível, muda radicalmente este quadro, passando o mundo do trabalho e das relações sociais a exigir um trabalhador de novo tipo. Para a compreensão da pedagogia que formará este novo trabalhador, segundo as novas demandas da sociedade capitalista, algumas características da nova realidade são mais explicativas que outras.

A primeira a considerar é a crescente presença de ciência e tecnologia nos processos produtivo e social, a partir do que se estabelece uma aparente contradição: quanto mais se simplificam as tarefas, mais se exige conhecimento do trabalhador, e não mais relativo ao saber fazer, cada vez menos necessário. Ao contrário, a crescente complexificação dos instrumentos de produção, informação e controle, nos quais a base eletromecânica é substituída pela base microeletrônica, passam a exigir o desenvolvimento de competências cognitivas superiores e de relacionamento, tais como análise, síntese, estabelecimento de relações, criação de soluções inovadoras, rapidez de resposta, comunicação clara e precisa, interpretação e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade para trabalhar em grupo, gerenciar processos para atingir metas, trabalhar com prioridades, avaliar, lidar com as diferenças, enfrentar os desafios das mudanças permanentes, resistir a pressões, desenvolver o raciocínio lógico-formal aliado à intuição criadora, buscar aprender permanentemente, e assim por diante. Mesmo para desempenhar tarefas simplificadas, o elevado custo de um investimento tecnologicamente sofisticado exige trabalhadores potencialmente capazes de intervir crítica e criativamente quando necessário, além de observar normas que assegurem a competitividade e, portanto, o retorno do investimento, através de índices mínimos de desperdício, retrabalho e riscos.

A memorização de procedimentos - necessária a um bom desempenho em processos produtivos rígidos - passa a ser substituída pela capacidade de usar o conhecimento científico de todas as áreas para resolver problemas novos de modo original, o que implica domínio não só de conteúdos, mas dos caminhos metodológicos e das formas de trabalho intelectual multidisciplinar, o que exige educação inicial e continuada rigorosa, em níveis crescentes de complexidade. A essa competência científico-tecnológica articula-se a demanda por competência ética, na dimensão de compromisso político com a qualidade da vida social e produtiva. Ao mesmo tempo exigem-se novos comportamentos, em decorrência dos novos paradigmas de organização e gestão do trabalho, onde as práticas individuais são substituídas por procedimentos cada vez mais coletivos, onde se compartilham responsabilidades, informações, conhecimentos e formas de controle, agora internas ao trabalhador e ao seu grupo.

A posse dessas características é que vai definir a "empregabilidade", entendida como adequação aos postos ainda existentes, o que cada vez mais depende de diferenciação e sofisticação de trajetórias, a partir de uma base comum de conhecimentos. A uniformidade decorrente da certificação escolar complementada pela profissional adquirida em cursos técnicos ou superiores, que assegurou às antigas gerações o ingresso e a permanência no emprego, já não é mais suficiente. Destrói-se, portanto, a vinculação entre formação escolar e exercício profissional, o que significa dizer que a função certificadora de competências até então exercida pelas agências formadoras, inclusive Universidades, passa a ser desempenhada pelo mercado, que vai dizer que competências precisa para cada situação, em que quantidade, e por quanto tempo.

Em face da dinamicidade conferida ao processo produtivo pelo ritmo dos avanços científico-tecnológicos, a empregabilidade acima referida fica condicionada à substituição da rigidez pela flexibilidade, no sentido de capacidade de adaptação a novas situações, o que, dadas as características excludentes da acumulação flexível, passa a significar, para a grande maioria dos trabalhadores, conformidade a situações cada vez mais precárias, em todos os sentidos. A flexibilização enquanto capacidade de criar, descobrir, articular conhecimentos, aprender novos conteúdos, desenvolver novas performances, enfim, educar-se permanentemente para adequar-se à dinamicidade da vida social e produtiva no sentido positivo, passa a ser privilégio dos poucos que mantêm-se no topo da pirâmide do trabalhador coletivo ou da concentração de renda.

Embora este discurso generalizante aponte para a progressiva elevação de escolaridade e educação profissional para todos, a realidade da crescente diminuição dos postos de trabalho a par da progressiva automação, mostra que o cenário da educação profissional é marcado pela polarização de competências, que demanda diferentes e desiguais aportes de educação; para a grande maioria, excluída do emprego ou submetida a trabalhos precarizados, formação simplificada, de curta duração e baixo custo. Para os poucos que ocuparão os empregos existentes, relativos às tarefas de concepção, manutenção e gerência, formação de maior complexidade, custo e duração.

Isto não significa dizer que não haja uma tendência mundial à elevação da escolaridade básica, necessária ao próprio desenvolvimento do modelo de acumulação flexível, uma vez que aos novos paradigmas de organização e gestão da produção correspondem significativas mudanças na vida social, gerando novos padrões de consumo, em decorrência da reunificação entre ciência, trabalho e cultura. Esta nova síntese produz um novo padrão de divisão social e técnica no processo de trabalho, onde já não existem nítidas divisões entre tarefas instrumentais e manuais, sem que contudo se alterem as diferenças de classe, posto que se derivam de uma relação entre capital e trabalho cada vez mais concentradora e, portanto, contraditória. Estabelece-se, de fato, uma nova relação entre homem e conhecimento, mas isto não significa que a primazia conferida às funções intelectuais altere a distribuição desigual do capital material e cultural. Ao contrário, o cenário aponta para o crescente aprofundamento das desigualdades, mesmo que haja elevação dos padrões educacionais dos que vivem do trabalho, contrariando os que apostam na "sociedade do conhecimento" como sinal de avanço democrático.

O problema é que estas características do mundo do trabalho aqui rapidamente delineadas, que servem de base ao processo de formulação das políticas de educação, determinam nos países poucos desenvolvidos, e portanto, pólos consumidores no contexto da globalização, modelos excludentes e perversos de educação profissional, cada vez mais polarizados. É o que ocorre no Brasil, como mostra a análise feita a seguir.

AS NOVAS POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Uma análise superficial das mudanças ocorridas no mundo do trabalho, certamente levaria à conclusão de que está em curso um processo de elevação generalizada da educação da população, tendo em vista sua participação mais qualificada na vida geral e produtiva. De fato, esta conclusão seria mais lógica, uma vez que a educação do trabalhador de novo tipo funda-se no desenvolvimento de um conjunto de comportamentos, habilidades e atitudes que só a educação escolar no mínimo básica, poderá assegurar. E mesmo assim, considerando os cursos pós-médios insatisfatórios em relação às novas demandas, que exigem competências em investigação científica, em comunicação e em análise crítica das relações sociais e produtivas, que muitos cursos de graduação não conseguem desenvolver.

No Brasil, em que pese toda a carga de desigualdades e de crise econômica e institucional, este foi por algum tempo o discurso que unificou trabalhadores, empresários e Estado, com a mediação de seus intelectuais, passando a integrar as finalidades da educação na LDB, onde se faz particular alusão à educação básica como condição de continuidade de formação , de compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos do trabalho e de formação ética e crítica, tendo em vista a participação cidadã nas relações sociais e produtivas.

Contudo, um debruçar mais cuidadoso sobre os resultados do modelo de desenvolvimento em curso, aponta para outro cenário, que compromete radicalmente a possibilidade histórica de concretização deste discurso: acirramento da dependência externa, predominância de investimentos de caráter especulativo, corrosão dos fundos públicos pela própria natureza da globalização, com os agravantes da sonegação e da renúncia fiscal, para não falar em mau uso e corrupção, tudo culminando com o fechamento de postos e com o aumento da exclusão.

Não é por acaso que as pesquisas realizadas no Brasil apontam para a tendência à polarização das competências, através de um sistema educacional que articule formação e demanda, de tal modo que à grande maioria da população assegure-se no máximo acesso à educação básica, fundamental e média, e mesmo assim a longo prazo, para que possa exercer alguma tarefa produtiva na informalidade ou tarefas precarizadas no mercado formal. A oferta de educação científico-tecnológica mais avançada fica restrita a um pequeno número de trabalhadores, e assim mesmo, de forma hierarquizada através de níveis crescentes de complexidade que vão do pós-médio à pós-graduação. Mesmo entre os trabalhadores incluídos vêm se construindo diferenciações, criando-se novas categorias de profissionais qualificados em processo permanente de competição, definindo-se a nova concepção de empregabilidade como resultante do esforço individual e fundada na "flexibilidade" enquanto capacidade para adequar-se a mudanças, mesmo quando significam perda de direitos e qualidade de vida, como por exemplo, ocorre com a intensificação do trabalho.

Embora o discurso oficial reproduza o compromisso com a generalização da educação básica, modelo do mundo desenvolvido, que mesmo não tendo resolvido a questão do emprego já atinge patamares elevados de educação superior para a população, no Brasil ainda lutamos para universalizar o ensino básico para os que estão na faixa de 7 a 14 anos; para os trabalhadores adultos, considerando o número de anos de escolaridade da PEA, por volta de 4 anos, a política oficial tem seu limite no supletivo, como expressão do abandono da cena de luta em face da magnitude do esforço que seria necessário fazer para vencer uma dívida social de 500 anos. Em decorrência, boa parte do esforço de escolarização dos trabalhadores incluídos tem sido assumido pelas empresas, em face da insuficiência das políticas públicas. O resultado tem sido a manuntenção de uma grande massa de excluídos do sistema de educação regular e profissional, que tende a crescer, caso não haja políticas públicas mais incisivas, com relação ao acesso e à permanência, particularmente de jovens e adultos.

Em virtude do elevado investimento que seria necessário para universalizar pelo menos o ensino médio nos países periféricos, o Banco Mundial tem recomendado que se priorize o ensino fundamental, deixando de investir em educação profissional especializada e de elevado custo como estratégia de racionalização financeira com vistas ao atingimento das metas de ajuste fiscal. Essa recomendação vem respaldada em pesquisa encomendada pelo próprio Banco, que conclui ser o nível fundamental o de maior retorno econômico e ser irracional o investimento em um tipo de formação profissional cara e prolongada em face da crescente extinção de postos e da mudança do paradigma técnico para o tecnológico.

Ao mesmo tempo, a pesquisa aponta a irracionalidade do investimento em educação acadêmica e prolongada para aqueles que, segundo seus resultados, são a maioria e não nascem competentes para o exercício de atividades intelectuais: os pobres, os negros, as minorias étnicas e as mulheres. Para estes, mais racional seria oferecer educação fundamental, padrão mínimo exigido para participar da vida social e produtiva nos atuais níveis de desenvolvimento científico e tecnológico, complementado por qualificação profissional de curta duração e baixo custo .

As políticas de educação profissional no Brasil, articuladas às de educação geral a partir de 1996, adotam esta lógica, justificadas pela racionalidade econômica que prevê inclusive o repasse progressivo das ações do Estado para a esfera privada.

Assim é que a prioridade tem sido a universalização do ensino fundamental para a faixa etária correspondente, acompanhada por programas de correção que pretendem regularizar o fluxo idade-série daqui em diante, como forma de não mais se produzir déficit de escolaridade.

A partir desse nível, o Estado se descompromete com a universalização, prevista na Constituição para ser atingida progressivamente, e passa a trabalhar com o conceito de eqüidade, no sentido de dar a cada um segundo sua diferença, para que assim o permaneça. Assim concebida, a eqüidade toma a diferença não como desigualdade, mas como atributo natural, próprio do ser humano. Em seus documentos para os países pobres, o Banco Mundial adota este conceito, justificando a inadequação do conceito de universalização, posto que as diferentes competências resultam de atributos "naturais", que não se alteram significativamente através da permanência no sistema educacional. Desta ótica, a universalização significa desperdício e, portanto, sofisticação imprópria para países em crise, que devem priorizar investimentos com maior possibilidade de retorno.2

Desta forma, para a PEA são oferecidos cursos de qualificação e reconversão profissional, que passam a substituir, na prática, a educação básica, embora não seja esta a compreensão do Ministério do Trabalho e do Emprego. Estes cursos obedecem à regulamentação do Decreto 2208/97,3 que institui o Sistema Nacional de Educação Profissional em paralelo ao Sistema Nacional de Educação. No âmbito destes dois Sistemas, e de forma orgânica, realizam-se as reformas do ensino técnico e médio, com o que foram extintas as escolas técnicas de nível médio. Reestabelecem-se as duas trajetórias, sem equivalência, negando-se a construção da integração entre educação geral e educação para o trabalho que vinha historicamente se processando nas instituições responsáveis pela educação profissional, certamente mais orgânica à nova realidade da vida social e produtiva.4

Essa reforma constituiu-se em um ajuste conservador, que retrocede aos anos 40, quando a dualidade estrutural, agora revigorada, estabelecia uma trajetória para os intelectuais e outra para os trabalhadores, entendendo-se que estas funções eram atribuídas a partir da origem de classe. Mesmo levando em conta que a defesa da universalização da educação básica venha sendo defendida de forma unânime por distintos atores sociais, que a formação para o trabalho anterior a ela é precoce e precária, e que o primeiro mundo já resolveu este estágio, é preciso levar em conta as peculiaridades do caso brasileiro, onde a inexistência de dotação orçamentária ainda se mantém e apenas se atende 25 % dos jovens em idade de ensino médio. Ou seja, a universalização deste nível, se chegar a ser prioritária,, será resultado de trabalho de décadas. Do mesmo modo, a necessária superação da dicotomia ensino técnico/ ensino propedêutico através do ensino médio tecnológico, como propõe a Res. 03/985 do Conselho Nacional de Educação, exige tamanho investimento que não é preciso muito esforço para concluir que teremos longos anos de ensino médio secundarista pela frente!

A considerar as necessidades dos jovens trabalhadores no Brasil, fortemente marcadas pelo ingresso no mundo do trabalho por imperativo de sobrevivência e continuidade de estudos, ofertar-lhes uma única modalidade, idêntica à oferecida aos filhos das elites, é condená-los precocemente à exclusão.

A reforma educacional levada a efeito neste Governo só se mostra completa quando se analisa a atual proposta para o ensino superior, que até a homologação da LDB articulava formação e profissionalização. A partir desta Lei,6 os currículos mínimos, certamente rígidos, anacrônicos e cartoriais, foram substituídos por diretrizes curriculares amplas e gerais, que assegurem flexibilidade à instituição e os alunos para definir propostas que atendam às novas demandas com suas especificidades regionais, locais e individuais. Em resumo, a proposta é que cada curso seja uma trajetória, para atender às demandas de formação flexível.

Assim é que, de modo geral, os documentos preliminares estabelecem competências a ser desenvolvidas, de modo a não oferecer profissionalização estrito senso, mas as bases sobre as quais as especialidades poderão se estabelecer. A esta formação básica sucedem ênfases, ofertadas pela escola e escolhidas pelo aluno, que por sua vez fará também escolhas entre disciplinas optativas para atender às suas preferências. Ou seja, o currículo com 50% de disciplinas obrigatórias e suas ênfases, reinventa a taylorização, agora pós-moderna, sob a justificativa da flexibilização, que facilmente substituirá a atual formação específica, e já insuficiente, por uma formação inespecífica, aligeirada e de baixo custo, transferindo-se a especialização para a pós-graduação, como sugerem as orientações do MEC no Edital número 4, de 1997.7 Para a empregabilidade, vale o que diferencia, aquilo que se tem a mais.

Assim, o cenário da profissionalização no ensino superior, para os concluintes do ensino médio propedêutico e elitizado, lembra mais um grande shopping onde quem mais tem, inclusive tempo, mais compra, para enfrentar os desafios da competitividade. O espaço para o trabalho disciplinado e metódico – que a relação com o conhecimento exige no processo de construção de significados e de produção científica – fica postergado para outro nível, ainda mais elitizado: o da pós-graduação.

Desta forma, pode-se compreender a política de educação profissional formulada para o Brasil nos próximos anos; sua lógica confirma a afirmação feita no início do texto, de que na "sociedade do conhecimento", ela é para poucos. Compreende-se, também, a sua organicidade com o modelo de acumulação flexível, que exige formação de novo tipo, a integrar ciência, tecnologia e trabalho, para os privilegiados ocupantes dos poucos postos que não correm risco de precarização, que "nasceram competentes para estudar" e que certamente não são os pobres. Realiza-se a recomendação do Banco Mundial, para que não se invista em formação especializada, custosa e prolongada, para uma população que viverá com poucos direitos, na informalidade, e que, ironicamente, "gozará de autonomia para fazer suas escolhas, ter seu próprio negócio, definir seu ritmo e horário de trabalho e seu tempo livre".8 Contraditoriamente, os que ocupam os cargos que restam, têm seu trabalho cada vez mais intensificado.

Esta política é perversamente orgânica às novas demandas da acumulação flexível, que inclusive determina, quando há adesão dos dirigentes ao bloco hegemônico, o lugar que cada país ocupará na economia globalizada. Neste sentido, a renúncia à educação científico-tecnológica de alto nível para o maior número possível de trabalhadores, corresponde à renúncia à produção científica, o que vale dizer, à construção de um projeto soberano de Nação, trocado pela eterna dependência científica, econômica e política.

A NOVA PEDAGOGIA DO TRABALHO: ALGUMAS CATEGORIAS DE ANÁLISE

A partir da análise levada à efeito nos ítens anteriores, verifica-se que o principal impacto das mudanças ocorridas no mundo do trabalho sobre a educação é, sem dúvida, o estabelecimento de uma nova mediação entre homem e trabalho, que passa a ser exercida pelo conhecimento, compreendido enquanto produto e processo da práxis humana, síntese entre pensamento e ação, conteúdo e método, individual e coletivo.

Desta nova realidade decorre uma nova compreensão das relações entre educação e trabalho, na perspectiva dos processos de formação humana, que são absorvidas diferentemente pelos Estados Nacionais, através das políticas públicas. No caso do Brasil, incorporam as desigualdades como naturais e articulam-se organicamente à lógica do mercado do processo de acumulação flexível, reforçando a exclusão. Neste item, tem-se por objetivo delinear melhor o que é esta nova relação entre trabalho e educação, mediada por outro tipo de conhecimento que extrapola o saber tácito.

No modo taylorista/fordista de organização e gestão do trabalho, esta relação era determinada pela dualidade estrutural. Para os responsáveis pelas funções operacionais, as relações entre educação e trabalho eram mediadas por atividades operacionais. O trabalhador era considerado qualificado quando executava tarefas com habilidade, geralmente adquirida pela combinação entre treinamento e experiência, que se dava através da mediação das atividades laborais. Em decorrência da natureza dos processos técnicos, transparentes, rígidos e estáveis, bastavam habilidades psicofísicas, memorização e repetição de procedimentos para definir a capacidade para executar determinadas tarefas, cujas variações pouco significativas ao longo do tempo permitiam uma adaptação quase "natural" às mudanças. A esta forma de organização do trabalho correspondia padrões de vida social igualmente bem definidos e relativamente estáveis.

Desta forma, não se exigia do trabalhador mais do que alguns anos de escolaridade, o suficiente para permitir o domínio de alguns conhecimentos básicos de leitura, de escrita, de cálculo, da natureza e da sociedade.

Evidentemente, para os que exerceriam as funções intelectuais relativas à direção política e técnica, bem como à pesquisa e desenvolvimento, já se exigiam outras relações com o trabalho, não mais mediadas pelo "fazer", e sim pelo domínio do conhecimento científico, das habilidades cognitivas superiores e das formas de comunicação, adquiridos através de formação escolar prolongada.

Com a progressiva perda de conteúdo do trabalho, que vai se tornando cada vez mais abstrato pela crescente incorporação de ciência e tecnologia ao processo produtivo para atender aos objetivos da acumulação, estas habilidades cognitivas, até então restritas a um número reduzido de funções, passam a ser requeridas para o conjunto dos postos transformados pela reestruturação produtiva. Embora este processo não atinja da mesma forma o conjunto das atividades produtivas, não podendo a nova demanda ser generalizada, aos novos paradigmas corresponde uma nova cultura, marcada pela presença de novas tecnologias que permanentemente se transformam, e ao fazê-lo, também transformam todas as dimensões da vida social e produtiva, embora com impactos diferenciados, particularmente em um país como o Brasil ,onde as desigualdades são muito acentuadas.9

Assim, do homem comum de massa passou-se a exigir um aporte mais ampliado de conhecimentos e habilidades cognitivas superiores para que pudesse participar da vida social e produtiva. Embora os postos de trabalho diminuam de forma acentuada como conseqüência da acumulação flexível, as mudanças ocorridas no mundo do trabalho passam a exigir realmente uma nova relação com o conhecimento para que se possa viver em sociedade, o que, para a grande maioria da população, só pode ocorrer através da escola.

Para entender esta afirmação é preciso ter claro que os impactos das mudanças ocorridas no mundo do trabalho sobre a educação dos trabalhadores não se dão de forma linear. Se assim o fosse, a tendência seria a diminuição das demandas de educação, em função não só do caráter poupador de mão-de-obra, mas também da mudança da natureza do trabalho, cada vez mais abstrato, o que vale dizer, cada vez mais simplificado e, portanto com menos exigência de capacitação específica. No entanto, as mudanças ocorridas nas bases materiais provocam verdadeira revolução nas relações sociais, estabelecendo uma nova cultura, cada vez mais perpassada por ciência e tecnologia, que por sua vez demandam também maiores aportes de conhecimento sócio-histórico para fazer frente às contradições decorrentes do desenvolvimento capitalista.

Exemplos desta afirmação podem ser as novas demandas relativas à preservação ambiental em face do caráter destruidor do modo de produção de mercadorias; ou a necessidade de maiores aportes de conhecimento sobre saúde e segurança no trabalho, para prevenir patologias de outra natureza e não menos perversas, cuja tarefa de identificação e estabelecimento de nexo causal é mais complexa, definindo-se outra concepção de risco, uma vez que os tradicionais foram efetivamente minimizados com as novas tecnologias, que reduzem o trabalho perigoso ou insalubre. Ou a necessidade de conhecer as normas que regem a produção, a circulação e o financiamento das mercadorias, do ponto de vista da internacionalização e do consumo individual.

Ao mesmo tempo, ampliam-se as necessidades de participação e organização em todos os setores da vida social e produtiva, que exigem conhecimentos sobre economia, política, direitos, gestão, bem como o domínio das competências de trabalho coletivo e de comunicação.

Para os excluídos do emprego formal, o exercício de atividades produtivas na informalidade com algum sucesso, não obstante seu caráter de precarização, depende de conhecimentos sobre áreas específicas, formas tradicionais e alternativas de organização e gestão, administração financeira, legislação, e assim por diante.

Evidencia-se, portanto, a necessidade de apropriação, pelos que vivem do trabalho, de conhecimentos científicos, tecnológicos e sócio-históricos, com particular destaque para as formas de comunicação e de organização e gestão dos processos sociais e produtivos, para além das demandas da acumulação capitalista.

Ou seja, por contradição, a necessidade do estabelecimento de outra relação com o conhecimento, na perspectiva do já produzido e dos caminhos metodológicos para a sua produção tendo em vista o enfrentamento da exclusão, se generaliza para os que historicamente têm vivido do trabalho.

Resulta daí o reconhecimento do caráter conservador tanto das análises que afirmam as demandas do capital relativas à generalização e ampliação da educação dos trabalhadores na estrita perspectiva da formação profissional, por não encontrarem respaldo nas práticas produtivas, quanto daquelas que tomam a crítica ao caráter ideológico deste discurso para negar estas mesmas necessidades para os trabalhadores, a partir da consideração estreita das ofertas do mercado de trabalho.

As mudanças ocorridas no mundo do trabalho decorrentes da acumulação flexível, portanto, exigem universalização e ampliação em termos de educação inicial e continuada, a partir do ponto de vista dos que vivem do trabalho. O capital sempre prescindiu do Estado, da escola e das agências formadoras para atender às suas demandas de formação profissional, o que não significa que não faça uso dos seus serviços. O que se verifica é que não há dependência, não só porque os empreendimentos produtivos acionam seus próprios mecanismos de treinamento interno ou em serviço, como as especificidades de cada processo, aliadas à busca de competitividade, fazem com que o controle da formação profissional seja estratégico para o capital.

Essa afirmação vale tanto para a base quanto para o topo da hierarquia do trabalhador coletivo: neste último caso, com a internacionalização, mais do que nunca os quadros de alto nível se formam nas empresas líder ou nos institutos de pesquisa a elas associados, de modo geral no exterior. A dependência, inclusive, da pós-graduação nacional não é muito significativa, vindo a atender antes interesses vinculados à empregabilidade dos profissionais de nível superior do que a demandas específicas de uma empresa em face das peculiaridades de seu processo de organização das relações sociais e produtivas. Desse ponto de vista, se fragilizam os argumentos contrários aos mestrados profissionalizantes enquanto estratégias de favorecimento do mercado, em detrimento da formação acadêmica; neste caso, se evidencia que eles se constituem em espaços de acesso ao conhecimento e aos procedimentos de pesquisa para os que não são escolhidos a fazê-lo, através de cursos ou estágios na empresa líder.

Para a burguesia, as relações sociais vividas desde a primeira socialização, já permitem o desenvolvimento das habilidades cognitivas superiores, que, com o apoio da escolarização vão culminar no desenvolvimento da autonomia intelectual, da criatividade, da comunicação, do raciocínio lógico, da capacidade de educar-se continuadamente e assim por diante.

A necessidade de adquiri-las na escola, portanto, se põe para aqueles que, por viverem do trabalho, são pauperizados economicamente, e, em decorrência, também o são culturalmente. Para estes, a escola é o único espaço disponível para apreender e compreender o mundo do trabalho, através da mediação do conhecimento, enquanto produto e enquanto processo da práxis humana, na perspectiva da produção material e social da existência.

Dessa120 nova realidade é que se derivam as categorias da nova pedagogia do trabalho, que diferem da pedagogia taylorista/fordista, cujo fundamento era a nítida separação entre as atividades intelectuais e instrumentais, do que decorria, para a maioria, uma relação entre educação e trabalho mediada pelas formas de fazer. Isto não significa, contudo, que estas formas estejam completamente superadas; apenas, que não são mais hegemônicas. Ou que esteja superada a divisão entre capital e traba-lho: esta, mais fortalecida do que nunca, apenas se realiza de outras formas.

Expansão da educação geral, como requisito para a formação profissional

As mudanças ocorridas no mundo do trabalho, quando apontam, mesmo que por contradição, para uma nova relação entre homem e trabalho, mediada pelo conhecimento científico, tecnológico e sócio-histórico – enquanto conteúdo e método – passam a demandar uma educação profissional de novo tipo, que combine conhecimentos sistematizados, experiências e comportamentos de modo a substituir a rigidez derivada da incorporação de respostas provisórias como definitivas pela capacidade de usar conhecimentos científicos e saberes tácitos, razão e emoção, racionalidade e utopia, experimentação e intuição, para conviver com o caráter dinâmico e revolucionário do atual estágio de desenvolvimento, de modo a usufruir das positividades e construir novas respostas para enfrentar as negatividades, buscando a construção de relações sociais e produtivas menos perversas.

Para que isto seja possível, passa a ser imprescindível fundamentar a educação profissional em uma sólida base de educação geral, para além das dimensões meramente acadêmicas que caracterizam o ensino fundamental e médio no Brasil. Esta constatação aponta para duas direções: a universalização da educação básica e a reformulação do seu projeto político-pedagógico, reconhecidamente anacrônico em face da realidade do final do século, marcada pelas contradições de um modelo que ao mesmo tempo produz conhecimento, riqueza e exclusão em proporções e velocidade jamais vistas em outras etapas.

Tal afirmação, pela sua obviedade, seria desnecessária em um texto desta natureza, não fossem as políticas educacionais em vigor, já apresentadas no item anterior, que priorizam o ajuste fiscal sobre as políticas de atendimento aos direitos básicos de cidadania, em decorrência da forma como o Brasil passou a participar do contexto da globalização, o que secundariza a produção e a divulgação de ciência e tecnologia.

Talvez o maior desafio a ser enfrentado nas próximas décadas seja a generalização da oferta de ensino médio, problema já resolvido há muito pelos países desenvolvidos, sem o que não é possível desenvolver educação profissional de qualidade. Isto, contudo, exige investimentos de vulto, que o Governo já afirmou não serem possíveis a curto e médio prazos. Ademais, o modelo de desenvolvimento em curso não aponta para esta generalização, em face de seu caráter excludente.

O volume de investimentos, contudo, não pode ser dimensionado na exclusiva ótica do atendimento qualitativo, uma vez que a nova base de educação geral deverá superar sua dimensão livresca e reprodutiva, fundada na repetição e na memorização para assumir um novo projeto, cuja finalidade seja o estabelecimento de situações de aprendizagem, onde ocorram interações significativas entre o aluno e o conhecimento, na perspectiva do desenvolvimento da capacidade de trabalhar científica e criativamente com informações e conceitos que continuamente se renovam, de modo a construir respostas originais para os desafios postos pela vida social e produtiva.

Deste ponto de vista, de fato a educação profissional na perspectiva técnica, está ultrapassada; reconstruí-la, na perspectiva tecnológica, e de modo universalizado, exigirá uma escola moderna, bem equipada, com professores qualificados, desde o ensino fundamental.

Ao considerar o que deva ser o objeto da educação básica para atender às demandas de formação humana para a cidadania e para o trabalho, destacam-se os conteúdos, habilidades e comportamentos relativos ao domínio das formas de linguagem presentes na sociedade e no trabalho, incluindo a matemática, a informática, as artes, as línguas estrangeiras, além dos tradicionais conteúdos de língua portuguesa e literatura. Os conhecimentos científicos e tecnológicos que fundamentam os processos produtivos contemporâneos, com destaque para processos mecânicos, elétricos, químicos, biológicos e suas formas de informatização, comunicação e controle. E, finalmente, aqueles conteúdos que historicamente não têm feito parte do núcleo duro das ciências contemporâneas, mas que passam a desempenhar papel fundamental no processo de acumulação, tanto na perspectiva do capital quanto do trabalho: as ciências sociais e humanas, necessárias à compreensão e intervenção em uma realidade dinâmica que repõe questões éticas aparentemente superadas ao mesmo tempo que apresenta novas.

Dentre estas velhas/novas questões, destacam-se a preservação ambiental, saúde e qualidade de vida, distribuição da terra, poder e conhecimento, organização e gestão das sociedades modernas, comunicação social, economia política, para citar só algumas, todas a ser, necessariamente, tomadas historicamente, o que vale dizer, no âmbito da globalização, da reestruturação produtiva, do neoliberalismo, e do pós-modernismo.

Mesmo da forma simplificada como estão enunciados, estes conteúdos já apontam para outra dimensão a ser considerada no novo projeto político-pedagógico: a necessária transdisciplinaridade, presente na ciência contemporânea, o que aponta para o necessário estabelecimento das relações que conferem organicidade entre parte e totalidade, que nunca estão dadas, mas em permanente processo de construção.

Desta perspectiva, a educação básica, científico-tecnológica e sócio histórica, passa a ser considerada formação inicial para o trabalho contemporâneo, tanto como demanda da acumulação flexível quanto dos projetos políticos que pretendem a sua superação.

A formação profissional continuada, a partir desta base geral, poderá se dar através de distintas modalidades e em distintos espaços, desde que sempre articulando educação geral e específica, teoria e prática, disciplinaridade e trandisciplinaridade, lógica e história.

Há que refletir, contudo, qual a extensão da educação básica em face da complexidade dos processos sociais e produtivos contemporâneos, e dos aportes de conhecimento científico de múltiplas áreas que eles absorvem.

A tomar apenas os conteúdos acima citados à guisa de exemplificação, já é possível entrever que onze anos de escolaridade já não são suficientes, a se pretender desenvolver habilidades cognitivas superiores que articulem conteúdo e método, na perspectiva da autonomia intelectual e ética, ou seja, na perspectiva criadora e transformadora. A experiência dos países desenvolvidos mostra que a ampliação da oferta de ensino de graduação já vem se constituindo, para além das demandas do mercado, como educação básica, na perspectiva da cidadania. E já há relativo consenso acerca de que uma formação profissional de qualidade para algumas áreas só é possível nos níveis de pós-graduação, e mesmo assim, articulada à experiência profissional.

É interessante lembrar a presença deste entendimento em documentos do MEC que orientam a elaboração de diretrizes curriculares para os cursos de graduação, denominados de formação inicial, a ser complementada na pós-graduação, onde a verdadeira formação profissional ocorrerá.

Ora, se o mercado mostra que os postos que demandam este tipo de formação são cada vez menos numerosos, e se as políticas educacionais brasileiras são contencionistas, apresentando como alternativa para os desescolarizados a educação profissional básica, de curta duração e em conformidade com a pedagogia taylorista/fordista, centrada no aprendizado reducionista de formas de fazer, muitas vezes repetidas sem a necessária compreensão; para os de nível médio, formação técnica ou tecnológica, correspondente a dois anos de pósmédio; se não há previsão a curto prazo para aporte significativo de recursos no ensino médio a possibilitar construção e adequação de espaços físicos, bibliotecas e laboratórios, aquisição de equipamentos e capacitação de professores, a conclusão que se impõe é que, por trás do discurso oficial, se esconde um projeto político-pedagógico dual.

Este projeto, na melhor tradição taylorista/fordista, revisitada, propõe para a maioria, a continuidade da relação com o trabalho mediada por aprendizagens restritas a formas operacionais fora da escola, no Sistema Nacional de Formação Profissional, que ainda sequer incorporou os Centros Públicos, cujas formas de institucionalização e financiamento não estão definidas. E para os dirigentes e especialistas de alto nível, uma trajetória de formação profissional por dentro do sistema escolar, que se encerra ao fim da pós-graduação. É importante destacar que as agências tradicionais de formação profissional, tais como o Sistema S, as Escolas Técnicas e CEFETs, já vêm, há mais tempo, avaliando a impossibilidade de promover formação profissional de qualidade, sem um bom aporte de educação básica inicial; em decorrência, estas instituições já vinham pesquisando e propondo novas formas de organização do processo de formação, voltando-se progressivamente para o nível tecnológico.

Esta conclusão conduz a duas considerações que se fazem necessárias: o aparente anacronismo desta proposta na verdade constitui-se em organicidade ao processo de acumulação flexível, naturalmente excludente; portanto, a oferta de educação escolar continuada de qualidade para todos passa a significar desperdício de recursos públicos, a partir da lógica do mercado.

Esta constatação se reforça quando se procede à análise do novo conceito de público presente nas reformas que o Estado tem levado a efeito. O conceito de dever público do Estado, a ser financiado com recursos públicos e executado por servidores públicos de forma continuada com fonte de recursos assegurada, típico do Estado de Bem-Estar Social, passa a ser substituído pelo conceito de público não-estatal, onde o financiamento das ações destinadas a assegurar os direitos de cidadania passa a ser feito através de parcerias entre diversos atores sociais, sem determinação de vinculação orçamentária que assegure o montante e a regularidade das dotações, que passam a depender de disponibilidades orçamentárias em face de previsões de arrecadação, necessidades de ajuste fiscal, prioridades e outras variáveis que submetem o financiamento dos programas à vontade do político de plantão.

Isto significa que o Estado não mais assegura a totalidade do financiamento, que deverá ser complementado pelos parceiros ou através de prestação de serviços. As formas de realização desta proposta são os contratos de gestão, através dos quais o Governo contrata suas próprias unidades para fazer o que é sua função obrigatória, ou os contratos de fornecimento, onde se repassa para empresas privadas ou organizações não-governamentais, mediante remuneração, a responsabilidade de executar determinadas atividades de natureza pública. Em ambos os casos, os recursos deixam de ser públicos e passam a ser geridos pelo ordenamento jurídico que rege as relações privadas, fugindo aos controles públicos da União.

Em ambos os casos, não se assegura continuidade e publicidade das ações, que passam a se reger pela lógica do mercado. Este é o modelo de financiamento recomendado pelo Banco Mundial aos países pobres, e que está sendo proposto para o financiamento da educação profissional, incluindo formação de formadores, e as universidades públicas.

Em resumo, são os seguintes os desafios que estão postos para a educação profissional no Brasil, em função do que serão definidos seus novos horizontes:

- a definição da finalidade: a quem servir, enfrentando o dilema da universalização versus seletividade;

- a nova concepção, tomando as mudanças ocorridas no mundo do trabalho como ponto de partida para definir a nova pedagogia, enfrentando o dilema entre adequação ou superação do paradigma da acumulação flexível;

- a definição dos espaços e atores, se públicos, privados ou em parceria;

- as formas de financiamento, a partir do conceito que se adote para público: estatal ou não-estatal.

A prevalecer a opção por construir a possibilidade da formação profissional sobre sólida base de educação geral, para todos, independentemente das demandas de mercado, através de uma pedagogia que permita estabelecer novas relações entre homem e trabalho pela mediação da ciência, da tecnologia e da sócio-história enquanto conhecimento acumulado e método para conhecer, relação entre geral e específico, lógico e histórico, teoria e prática, parte e totalidade, a formação profissional será financiada pelo poder público, e, embora fomentando parcerias, será estatal; será articulada à educação escolar, permitindo equivalências de modo a assegurar permeabilidade entre os sistemas e continuidade de estudos; terá no horizonte a generalização do nível de graduação; terá a formação científico-tecnológica e sócio-histórica complementada por formação operacional em agências especializadas de formação; terá, nos Centros Públicos e Agências de Formação Profissional e Universidades, a possibilidade de educação continuada, assegurando permanente aperfeiçoamento e complementação.

Isto porque se reconhece que a formação profissional é demanda e meta dos que vivem do trabalho e dos excluídos, e se assenta na utopia da construção de uma sociedade onde a todos caiba igualmente o trabalho, o conhecimento, a qualidade de vida e o prazer. Em caso contrário, a prevalecer o atendimento às demandas da acumulação flexível, por tudo estar em perfeito acordo, que permaneça como está!


Notas

1 KUENZER, Acacia Z. As mudanças no mundo do trabalho e a educação : novos desafios para a gestão. In: FERREIRA, Naura C. Gestão democrática da educação: atuais tendências, novos desafios. São Paulo: Cortez, 1998.

2 BANCO MUNDIAL. La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiência. Washington, 1995.

3 BRASIL. Leis, Decretos. Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997. Regulamenta o parágrafo 2 do art. 36 e os art. 30 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, v. 135, n. 74 , p. 7760-7761, 18 abr. 1997. Seção 1.

4 KUENZER, Acacia Z. Ensino médio e profissional: as políticas do Estado neoliberal. São Paulo: Cortez, 1997.

5 CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução n. 3, de 05 de março de 1998. Documenta, Brasília, n. 438, p. 89, mar., 1998. Publicada no D.O.U, de 09/03/1998, Seção I, p. 87.

6 BRASIL. Leis, Decretos. Lei n. 9.394, de 23 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, v. 134, n. 248, p. 27833-27841, 23 dez. 1987. Seção I.

7 BRASIL. MEC. Edital n. 4, de 1997. [S.l.:s.n.]

8 BANCO MUNDIAL. op. cit.

9 HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.



Fonte: http://www.senac.br/BTS/252/boltec252b.htm

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