sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Lembre-se: sem memória não há aprendizagem


REPORTAGEM DE CAPA

Lembre-se: sem memória não há aprendizagem

Conhecendo como o cérebro guarda informações você vai ajudar os alunos a fixar os conteúdos estudados em classe

Paola Gentile
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Gustavo Lourenção

Fotos Gustavo Lourenção

Durante séculos, na escola, memorizar foi sinônimo de decorar nomes, datas e fórmulas. Afinal, eram esses os conhecimentos sempre exigidos nas provas, nas chamadas e nos testes. Com base nos estudos sobre o processo de aprendizagem da criança, concluiu-se que a decoreba era inimiga da educação. E a memória — confundida com repetição — foi posta de castigo.

Um grande erro. A memória é a base de todo o saber — e, por que não dizer, de toda a existência humana, desde o nascimento. Como tal, deve ser trabalhada e estimulada. "É ela que dá significado ao cotidiano e nos permite acumular experiências para utilizar durante toda a vida", afirma a psicóloga e antropóloga Elvira Souza Lima, especialista em desenvolvimento humano.

Nos últimos 20 anos, a neurociência avançou muito nas descobertas sobre o funcionamento do cérebro. Hoje sabe-se o que acontece quando ele está captando, analisando e transformando estímulos em conhecimento e o que ocorre nas células nervosas quando elas são requisitadas a se lembrar do que já foi aprendido. "Com isso o professor pode aprimorar suas estratégias de ensino", diz o neuropsiquiatra Everton Sougey, coordenador do curso de pós-graduação em Neuropsicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Estão provadas, por exemplo, as vantagens de estabelecer ligações com o conhecimento prévio do aluno ao introduzir um novo assunto e de trabalhar também a emoção em sala de aula. O cérebro responde positivamente a essas situações, ajudando a fixar não somente fatos, mas também conceitos e procedimentos.

Teoria

"Somos aquilo que recordamos", conceitua Iván Izquierdo, professor de Neuroquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele dá um exemplo: nenhum texto é compreendido se não se lembra o significado das palavras e a estrutura do idioma utilizado. Tudo isso precisa estar registrado no cérebro para ser resgatado no momento oportuno. A memória, enfatiza Elvira Lima, é a reprodução mental das experiências captadas pelo corpo por meio dos movimentos e dos sentidos. Essas representações são evocadas na hora de executar atividades, tomar decisões e resolver problemas, na escola e na vida.

O valor do conhecimento prévio

Quando assiste aula, o estudante recebe informações de todo tipo, tanto visuais como auditivas. Elas se transformam em estímulos para o cérebro e circulam pelo córtex cerebral antes de serem arquivadas ou descartadas (veja infográfico na página seguinte). Sempre que encontram um arquivo já formado (o tal conhecimento prévio) arrumam um "gancho" para o seu armazenamento, fazendo com que no futuro ela seja resgatada mais facilmente. "É como se o recém-chegado fosse morar em uma nova casa, mas em rua conhecida", ilustra Elvira Lima. Quando essa informação é resgatada da memória, trilha os mais variados caminhos. Se eles já tiverem sido percorridos anteriormente, a recuperação de conhecimentos será simples e rápida. O que não tem nada a ver com decoreba.

"Se o estudante não aprende um conteúdo é porque não encontrou nenhuma referência nos arquivos já formados para abrigar a nova informação e, com isso, a aprendizagem não ocorreu . Não adianta insistir no mesmo tipo de explicação", ressalta a neuropsicóloga Leila Vasconcelos, da Universidade Federal de Pernambuco. Cabe ao professor oferecer outras conexões. Como? Usando abordagens diferentes e estimulando outros sentidos. Daí a importância de investigar os conhecimentos prévios da turma, recordar conteúdos de aulas anteriores, para formar os "ganchos", e dispor de diferentes estratégias de ensino.

Criando elaborações mentais

O cérebro funciona em módulos cooperativos, que se ajudam na hora de recuperar informações. Quanto mais caminhos levarem a elas, mais fácil será o "resgate". Exemplo: se um conceito estiver conectado simultaneamente a uma imagem e a um som, pelo menos três áreas diferentes do cérebro trabalharão para recuperá-lo. Por isso, inventar uma imagem simbólica — associar conceitos a formas, palavras a sons, cores a significados e assim por diante — é um hábito extremamente saudável. "Sair do concreto faz com que determinada informação seja guardada sob várias chaves, como se fossem fichas de armazenamento, facilitando a consulta", destaca Jiitka Soskova, psicóloga checa especialista em inteligência artificial. As fórmulas mnemônicas (criação de letra para música conhecida, versinhos rimados, frases engraçadas) são outros exemplos de associações que levam à memorização. Ofereça esses mecanismos e estimule cada aluno a criar as próprias associações para os conteúdos que devem ser armazenados.

O papel da emoção

Os sentimentos regulam e estimulam a formação e a evocação de memórias. São eles que provocam a produção e a interação de hormônios, fazendo com que os estímulos nervosos circulem mais nos neurônios. Graças a esse fenômeno cerebral é mais fácil para uma criança lembrar-se do processo de fotossíntese se ligar esse conteúdo de Ciências a uma planta que tem em casa ou à árvore em que costuma subir quando está em férias na casa da vovó.

Memória inconsciente

Algumas lembranças ficam "escondidas" porque estamos expostos a mais informações do que conseguimos guardar. Aparentemente perdidas, elas ficam num lugar do cérebro chamado inconsciente. Ninguém sabe explicar exatamente por que, mas elas voltam à consciência sem que o indivíduo controle. Pesquisas mostram que isso sempre ocorre em alguma circunstância especial, quando algum fato ou informação evoca lembranças que se julgavam perdidas.

Como se forma a memória

Um arquivo organizado
O cérebro é dividido por uma fenda em dois hemisférios, que são segmentados em lobos, regiões demarcadas sem muita nitidez. As informações captadas pela visão, pela audição, pelo olfato, pelo paladar e pelo tato provocam impulsos elétricos e reações químicas em lobos diferentes e não são guardadas da maneira como foram captadas. Elas são fragmentadas, classificadas e hierarquizadas. Para se ter uma idéia de como o cérebro se organiza, podemos visualizar na ilustração abaixo:

Getty Images

1. elaborações mentais sofisticadas, como o planejamento, o julgamento e a decisão;
2. dados sobre movimentos corporais, tato, orientação espacial e análise sensorial;
3. informações olfativas;
4. linguagem, leitura e fala;
5. informações auditivas;
6. estímulos e associações visuais.

Paulo Caramelli, especialista em neurologia cognitiva do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, explica que tanto novas informações quanto as já armazenadas, depois de conectadas e reelaboradas, passam obrigatoriamente pelo hipocampo (H), estrutura que fica sob os dois hemisférios. De lá as informações são espalhadas por toda a superfície do cérebro, o córtex. A classificação e o armazenamento de informações são tão específicos a ponto de, dentro do "arquivo" linguagem, uma "pasta" guardar verbos; outra, substantivos, e assim por diante.

Mais conexões, mais memória

A informação captada transita pelos neurônios, células nervosas semelhantes a árvores sem folhas: os galhos seriam os dentritos; o tronco, o axônio; e as raízes, os terminais pré-sinápticos. Eles criam emaranhados de caminhos que se orientam em diversas direções. Quando os galhos de uma célulaencontram-se com as raízes de outra forma-se uma sinapse, local de comunicação entre os neurônios e unidade elementar de armazenamento da memória. Lá acontece síntese de proteínas, trocas elétricas e ativação de genes que provocam o armazenamento da informação. Quanto mais conexões, mais memória. Cada neurônio pode se comunicar com até outros mil. Como o ser humano tem de 10 bilhões a 100 bilhões dessas células, é possível haver até 100 trilhões de conexões sinápticas.

Informação visual

Uma imagem, por exemplo, é captada pelos olhos e segue pelo nervo óptico — formado por neurônios — até a parte posterior do cérebro, chamada occipital. Ela é desmembrada em formas, cores, movimentos e outros dados que a compõem. Dali essas informações espalham-se pelas áreas vizinhas, à procura de outra informação correlata. Encontrando essa referência, surge um novo arquivo que vai para o hipocampo para depois ser armazenado no cérebro.

Uma rede bem montada

Sempre que você oferecer informações de diferentes naturezas sobre um mesmo conteúdo, estará ajudando o aluno a formar um aprendizado e um conhecimento que poderá durar por toda a vida. Fornecendo imagens, sons, a possibilidade de usar o corpo em movimentos e produzindo emoções, diversas partes do cérebro serão ativadas quando esse conteúdo precisar ser resgatado, tornando a sua lembrança mais fácil. E ao unir esse conteúdo a um conhecimento prévio, serão traçados vários caminhos que tornarão o aprendizado mais eficaz.


Tipos de memória

Acredita-se existirem tantas memórias quantas forem as experiências acumuladas e, com isso, a capacidade de armazenamento de informações seria imensa. Aqui vamos falar apenas da capacidade geral do homem de captar, armazenar e se lembrar de informações. Por isso, grosso modo, a memória pode ser classificada da seguinte maneira:

1. Pela sua duração

Memória de curto prazo

Sobrevive o tempo necessário para a informação ser utilizada. Exemplo: qualquer conteúdo que é decorado para uma prova permanece no cérebro até o aluno entregar o documento ao professor. Se ele tiver boa nota, talvez nunca mais se lembre do que estudou. Não forma arquivos. Só vira memória de longo prazo se encontrar vínculo com outra informação já armazenada ou pela repetição.

Memória de longo prazo

Fica mais tempo no cérebro e é aquela que todo professor gostaria de fomentar em seus alunos. Quando dura anos, vira memória remota. Uma informação permanece no cérebro porque, quando foi apreendida, seus estímulos geraram novas sinapses, desencadearam síntese de proteínas, ativaram genes e provocaram a sua consolidação como conhecimento apreendido.

2. Pelo seu conteúdo

Memória declarativa

A episódica ou autobiográfica guarda os fatos vividos pelo indivíduo, como o primeiro encontro com a pessoa amada ou uma aula especial, em que algo inusitado tenha acontecido (um teatrinho, show ou uma situação que despertou algum tipo de emoção no aluno).
A semântica — a mais importante durante o aprendizado — arquiva os conhecimentos gerais, como o significado de palavras e conceitos.

Memória de procedimentos

É composta pelas habilidades motoras ou sensoriais. Como andar de bicicleta ou a maneira de proceder diante de determinadas experiências realizadas na escola.
Muitas vezes, pela observação e pelo treinamento, esses conhecimentos são arquivados de maneira implícita, sem que haja consciência do aprendizado.

Amemória de trabalho ou ativa

Não se encaixa em nenhuma das categorias anteriores. É assim chamada por analogia com a memória dos computadores. Iván Izquierdo define-a como "gerenciadora da realidade": ela conecta as informações da memória de curto prazo com as já arquivadas para comparar, analisar, decidir ou não abrir um novo arquivo. Ele dá o exemplo: conservamos na consciência algumas palavras utilizadas no início desta frase somente para compreender o significado da sentença. Depois esquecemos o termo exato, mas conservamos na memória a idéia principal. É também aquela que o aluno usa ao receber suas instruções antes de realizar uma atividade, ao recordar as orientações no momento da execução. Essa memória usa as capacidades do córtex pré-frontal do cérebro, lugar das chamadas funções cerebrais superiores, como a tomada de decisão, a análise crítica, o julgamento.

Entenda o cérebro e ensine melhor

Ao conhecer o funcionamento da memória, você pode planejar ações para ajudar a turma a armazenar e evocar conhecimentos. Confira algumas estratégias:

Estabelecer relações entre novos conteúdos e aprendizados anteriores faz com que o caminho daquela informação seja percorrido novamente (evocação), tornando mais fácil seu reconhecimento.

Criar elaborações mentais envolvendo recursos como sons, imagens, fantasias, significados e (por que não?) humor permite que várias áreas do cérebro trabalhem simultaneamente no resgate de informações e estimula a memória.

Utilizar gráficos, diagramas, tabelas e organogramas para classificar as informações faz com que o cérebro tenha mais facilidade para armazená-las e, portanto, resgata-as com mais facilidade.

Reservar os últimos minutos da aula para conversar sobre o conteúdo estudado possibilita que o novo conhecimento percorra mais uma vez o caminho no cérebro dos estudantes. Assim, eles fazem uma releitura do que aprenderam.

Usar brincadeiras, dramatizações ou jogos para levar emoção à classe favorece a aprendizagem. Isso só funciona se houver relação entre o conteúdo e a situação lúdica.

A memória no tempo

Mnemósine foi a deusa escolhida por Zeus para ser a mãe das musas do conhecimento: Calíope (poesia), Clio (história), Polímnia (retórica), Euterpe (música), Terpsícore (dança), Érato (lírica coral), Melpômene (tragédia), Tália (comédia) e Urânia (astronomia). Com os escritos de Paros, descobertos no século 17, soube-se que o poeta grego Simônides era um especialista em memorizar. Único sobrevivente de um desmoronamento, durante um banquete, ele identificou os corpos das vítimas lembrando-se do local onde cada uma estava sentada. Na Idade Média, a mnemotécnica era utilizada pelos universitários para decorar nomes dos reis e períodos de governos. Assim essa capacidade mental, relacionada a repetições, foi estigmatizada como uma das barreiras para a verdadeira aprendizagem. Nos últimos 20 anos, pesquisas apontaram a existência de vários tipos de memória, todas elas essenciais na aquisição do conhecimento.

Esquecer para lembrar

O esquecimento (de fato) é o descarte de algo pouco importante que só serve para sobrecarregar os mecanismos de memorização. É fundamental no processo de aprendizagem, porque deixa o caminho livre para que as informações e conteúdos fundamentais sejam arquivados. Uma pessoa que conhece os conceitos de presidencialismo e parlamentarismo (importante) pode explicar a diferença entre os dois a qualquer interlocutor em qualquer momento de sua vida, mas provavelmente jamais se lembrará do dia em que aprendeu isso nem da roupa que o professor usava na hora em que o assunto foi discutido em classe (pouco importante). O cérebro jogou fora detalhes, mas o conhecimento foi arquivado e depois conectado com outras informaões correlatas, formando novos arquivos.

Evolução vem com a idade
Até os 9 meses, o bebê já tem praticamente a quantidade definitiva de neurônios. São raras as pessoas que se lembram de fatos ocorridos antes dos 4 anos de idade. Nos primeiros anos de vida, os dois hemisférios cerebrais ainda não estão totalmente formados e os feixes de neurônios que fazem a comunicação entre o lado esquerdo e o direito ainda não foram consolidados. Nem todo mundo se desenvolve exatamente do mesmo jeito, mas pode-se dizer que, em geral, até os 7 anos a memória visual é mais dinâmica — daí por que o desenho deve ser bastante utilizado nessa fase. Se for bem estimulada, por volta dos 9 ou 10 anos a criança começa a usar o raciocínio abstrato — e o material pedagógico deixa de ser tão útil na ativação da memória. Segundo Mel Levine, pediatra e professor da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, é nessa idade que se constroem os padrões e as regras que permitirão reconhecer dados semelhantes. Depois dos 13 ou 14 anos é hora de aprimorar as habilidades matemáticas e de leitura e escrita, pois elas podem ser resgatadas da memória automaticamente. Nos adolescentes, a informação circula em altíssima velocidade no cérebro — cada hemisfério sabe o que o outro guarda e faz. A maioria dos estudantes é capaz de criar estratégias próprias para armazenar dados, estabelecendo relações com sua vida, suas fantasias e seus conhecimentos prévios. Por volta dos 70 anos, quando não é estimulada, a memória pode começar a falhar em algumas pessoas.

Quer saber mais?

Educação Individualizada, Mel Levine, 343 págs., Ed. Campus, tel. ( 21) 3970-9300, 69 reais

Desenvolvimento e Aprendizagem na Escola - Aspectos Culturais, Neurológicos e Psicológicos, Elvira Souza Lima, 32 págs., Ed. Sobradinho 107, tel. (11) 5083-6043, 4 reais

Memória, Iván Izquierdo, 95 págs., Ed. Artmed, tel. 0800 703-3444, 22 reais

Memória - Da Mente às Moléculas, Larry R. Squire e Eric R. Kandel, 251 págs., Ed. Artmed, 96 reais

A Memória - Do Cérebro à Escola, Alain Lieury, 110 págs., Ed. Ática, tel. (11) 278-9322, 9,90 reais

Fonte: Revista Nova Escola da edição 163 - jun/2003

De: titaniccity
Método Supera - INSTITUCIONAL


De: kumongraca
Kumon 50 anos


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