O estatuto da imagem em Jung
Carlos Bernardi
A imagem possui uma importância central para Jung, importância esta que se revela na fórmula que caracteriza o psiquismo: psique=imagem.
Através dessa equação Jung quer enfatizar que os conteúdos psíquicos, sua expressão, são sempre imagéticas, maneiras de se mostrar ou de se apresentar.
Surge aqui um problema. Imagem é muitas vezes entendida a partir de uma perspectiva visual e reprodutora, mas Jung é claro ao afirmar que seu entendimento da imagem vem do campo lingüístico. Por isso escreve, que por imagem:
não entendo o retrato psíquico do objeto exterior, mas uma representação imediata, oriunda da linguagem poética, ou seja, a imagem da fantasia que se relaciona indiretamente com a percepção do objeto externo. Esta imagem depende mais da atividade inconsciente da fantasia... (Jung, Tipos Psicológicos, pág. 417)
Portanto, se Jung equaciona psique com imagem e imagem com expressão poética, podemos falar, eliminando um dos termos destas equações que psique=expressão poética. A expressão do psiquismo não é da ordem conceitual, mas de uma ordem tropológica, ou seja, são metáforas e metonímias, não havendo uma identidade entre imagem interna e referente externo.
Desde suas pesquisas sobre os complexos, estruturas autônomas de armazenamento de informações no psiquismo, Jung já mencionava estes dois tropos, embora com nomes diversos. As imagens eram registradas no psiquismo através de dois tipos de associação: por contigüidade e por semelhança. Estas correspondem, exatamente, às características das denominações tradicionais, metonímia e metáfora, respectivamente. Repito, a imagem psíquica, registrada no psiquismo, não se identifica ou não se confunde com o referente externo. Esta forma de entender a imagem psíquica acompanha Jung desde suas pesquisas com as associações de palavras, realizadas sob a direção de Eugen Bleuler, desde 1905. Foi através dessas pesquisas que Jung descobriu a existência dos complexos psíquicos de tonalidade afetiva, comprovação experimental da existência do inconsciente. Esta descoberta, vale a pena recordar, juntamente com a adesão da Escola de Zürich, foi fundamental para o reconhecimento das idéias de Freud.
Já no campo lingüístico, Maurice Blanchot pensa a imagem de maneira semelhante.
A imagem, segundo a análise comum, está depois do objeto: ela é a sua continuação; vemos, depois imaginamos. Depois do objeto viria a imagem. “Depois” significa que cumpre, em primeiro lugar, que a coisa se distancie para deixar-se recapturar. Mas esse distanciamento não é a simples mudança de lugar de um móvel que, continuaria, entretanto, sendo o mesmo. O distanciamento está aqui no âmago da coisa. a coisa estava aí, que nós apreenderíamos no movimento vivo de uma ação compreensiva e, tornada imagem, ei-la instantaneamente convertida no inapreensível, inatual, impassível, não a mesma coisa distanciada mas essa coisa como distanciamento, a coisa presente em sua ausência, a apreensível porque inapreensível, aparecendo na qualidade de desaparecida, o retorno do que não volta, o coração estranho do longínquo como vida e coração único da coisa. (Blanchot, O Espaço Literário, pág. 257)
Imagem é, portanto, distanciamento. Se sonho, digamos, com um gato, com o gato da minha tia, por exemplo, este gato não será pura e simplesmente a reprodução fiel daquele gato, mas será o gato-da-minha-tia adulterado, transformado tropologicamente, na medida em que é trazido para um outro contexto. Poderia formular estas questões: O que estará fazendo o gato-da-minha-tia aqui? Onde é aqui? Qual a relação (poética) entre o gato-da-minha-tia e aqui? Conseqüentemente, já não sei de que gato se trata. Esta forma de pensar a imagem psíquica caminha lado a lado com as teorizações de Gaston Bachelard sobre a imagem poética e seu "órgão", a imaginação.
Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagem, união inesperada das imagens, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória familiar, hábito das cores e das formas. (Bachelard, O Ar e os Sonhos, pág. 1)
A imagem, prossegue Bachelard, é de uma novidade radical. Quando surge estamos vendo-a pela primeira vez, abrindo, em suas palavras, "um porvir da linguagem". Além do mais, graças à sua mobilidade, outro traço apontado por Bachelard, seu sentido estará sempre se modificando. A forma definitiva é a destruição do "princípio imaginário". Em outras palavras: "No reino da imaginação, a toda imanência se junta uma transcendência" (Bachelard, A Terra e os Devaneios do Repouso, pág. 6).
Isto é, o sentido da imagem não é o mesmo de sua manifestação imanente. É transcendental, está para além do valor de uso ou sentido literal da expressão verbal que constitui a imagem. Esta novidade que nos fala Bachelard é igualmente reconhecida por Jung. Por este motivo quando Jung fala de método, este só pode ser o método dialético, um método que é, na verdade, um abrir mão de todos os métodos. Duas são as fontes que tornam este método necessário no processo de análise, vale dizer, no processo de leitura das narrativas apresentadas pelo paciente.
1. A individualidade do paciente é desconhecida, por isso não se pode fazer afirmações genéricas sobre seus pronunciamentos;
2. Existem múltiplas possibilidades interpretativas dos conteúdos psíquicos, por este motivo, também não se podem fazer afirmações genéricas sobre seus pronunciamentos.
Tomando a dialética no sentido de arte da conversação, Jung destaca que os sentidos das imagens só surgem a partir de uma troca entre os participantes do diálogo. O que o psiquismo nos apresenta são, portanto, símbolos, que remetem incessantemente a uma esfera de desconhecimento, nunca transformado em certeza. A prática junguiana nunca apontaria, num primeiro instante, para um dicionário de símbolos qualquer, independente de sua "completude", mas partiria sempre dessa postura de desconhecimento total. É da ordem de uma aproximação, mas não de uma decifração. A imagem sempre nos devora. Ela sempre nos desordena.
O símbolo é sempre um desafio à nossa reflexão e compreensão.
Em tipos psicológicos acrescenta:
Um símbolo perde, por assim dizer, sua força mágica, ou, se quisermos, sua força redentora, logo que foi reconhecida, logo que for conhecida uma solucionabilidade. Por isso, um símbolo ativo tem que ter uma constituição inexpugnável. (Jung, Tipos Psicológicos, pág. 229)
Quando reduzimos o desconhecido ao conhecido, isto parece paradoxal, diminuímos a potência do símbolo, seu poder redentor ou seu poder de redimir, como diz Jung, pois, neste caso, não estaremos mais sendo por ele provocados. Mas, o que é provocar? Jacques Derrida sugere uma resposta, ou várias (Derrida, Without Alibi, pág. XVI). É sair à frente, expor-se, desafiar, ousar, enfrentar ou confrontar. Isto tudo sem demora e sem álibi. Aqui estou, podemos dizer para o símbolo, pronto para ouvir não só o que ele tem a me dizer, mas, igualmente, aquilo que não consigo ouvir. Mesmo assim, estou aqui. Se conhecermos tudo que um símbolo tem a dizer ele não é ou não é mais um símbolo, mas um signo ou um sinal. Chegamos, assim, àquilo que pode ser entendido, aproximadamente, como a definição junguiana de símbolo.
O símbolo, no entanto, pressupõe sempre que a expressão escolhida seja a melhor designação ou fórmula possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida e postulada. (Jung, Tipos Psicológicos, pág. 444)
Sei que existe, mas não sei o que é. Vejo, mas não posso apreender, ou seja, por as mãos, agarrar, pegar, possuir e conquistar. O símbolo, como disse mais acima, só permite uma aproximação, o único meio de buscarmos um estado de paz, como pensa Emmanuel Levinas. Para tanto devemos reconhecer que o símbolo é algo precário diante dos poderes de auto-afirmação e autonomia do ego mesmo quando este é perturbado pela heteronomia do sintoma. Sabemos que o sintoma, na definição de Freud, constitui uma formação de compromisso, vale dizer, um acordo mudo entre a autonomia do ego e a heteronomia do outro. A estranheza desse outro é absorvida na mesmidade do ego. Sabemos, ao mesmo tempo, que este acordo-como-sintoma é uma chance do outro poder ser ouvido. Por isso, para Levinas, a paz, entendida como proximidade com o vizinho, ocorre no momento em que o ego desperta (ou entra em um estado de insônia) para a compreensão da precariedade do outro e se sente responsável por ele, colocando em questão sua "própria identidade, sua ilimitada liberdade e seu poder" (Levinas, Peace and Proximity, pág. 167).
Podemos, agora, compreender por que o símbolo, em geral, não é um símbolo por si mesmo, mas é o produto desse despertar, dessa insônia, de uma atitude da consciência observadora, como sustenta Jung, uma atitude que "considera o fato dado não apenas como tal, mas como a expressão de algo desconhecido" (Jung, Tipos Psicológicos, pág. 445). O símbolo deve ser mantido como enigma, algo que nunca será desvendado ou solucionado, que nunca será petrificado em significação. Seu entendimento será sempre um talvez.
Pela presença deste elemento desconhecido, o símbolo verdadeiro, que Jung denomina de símbolo vivo, não pode ser criado intencionalmente pelo homem, por sua consciência, mas é sempre um acontecimento, um evento cujo sentido não está presente, mas que se doa ou exige ser lido e compreendido em sua radical alteridade. Eles desejam que a consciência simplesmente os deixe acontecer, na atitude que Emanuel Levinas chama de passividade diante do rosto do outro. Este rosto, o rosto do símbolo, que me constrange eticamente a oferecer uma resposta. Minha responsabilidade consiste precisamente nisso: oferecer respostas a seu constante desafio.
O símbolo deseja que eu o vivencie de maneira imediata, ou seja, entre ele e eu há uma relação aberta e é esta abertura que garantirá a liberdade das minhas respostas. Caso aconteça o contrário, vale dizer, se entre eu e o símbolo imperar uma relação mediada, já não terei a mencionada liberdade, mas serei obrigado a adotar os sentidos ou significados que se intrometeram em nome de um código social ou uma instituição qualquer.
O símbolo, se ainda fizer sentido usar esta palavra, passa a possuir um valor histórico e tradicional. Seu mistério se foi, assim como, sua novidade. Não há mais por vir. Só código, regra, lei. Tudo isso suficiente para satisfazer necessidades genéricas, mas incapaz de dar conta de situações individuais.
O símbolo possui a função de compensação, tanto individual quanto coletiva, de estados de conflito, estabelecendo um campo intermediário onde todas as partes envolvidas no conflito terão sua chance de apresentarem seus discursos. Desde Freud o conflito que dará origem ao sintoma, é um conflito inconsciente, onde as partes nele envolvidas não têm chance de mostrarem seu rosto. A luta decorrente deste conflito pode gerar uma paralisia, que Derrida entende como o aspecto negativo de uma aporia ou contradição lógica. Mas é justamente esta aporia, esta possibilidade do impossível, o jogo, que é a condição da marcha, da decisão, do acolhimento do outro que não podia se manifestar, mas que estava próximo à nossa porta. O símbolo, ou o símbolo mediador, é justamente a tentativa de sair da paralisia e por a aporia em movimento.
Se a expressão inconsciente permanecer intacta, formará a matéria-prima não para um processo de resolução mas de construção, e ela se tornará o objeto comum da tese e da antítese. Tornar-se-á um conteúdo novo que dominará toda a atitude, acabará com a divisão e obrigará a força dos opostos a entrar em canal comum. E assim acaba a suspensão da vida, ela pode continuar fluindo com novas forças e novos objetivos. (Jung, Tipos Psicológicos, pág. 449)
Esta função de mediação Jung denominou função transcendente. Este transcendente, Jung adverte, não deve ser entendido no sentido metafísico, mas no sentido que é o símbolo que facilita a transição, a transcendência, de um estado de separação entre as posições consciente e inconsciente. Esta separação é produto da atitude unilateral da consciência, que não suporta confrontar e ser confrontada por outros pontos de vista, não externos, mas igualmente "internos". Através da função transcendente nada é excluído, "tudo toma parte na discussão" (Jung, A Função Transcendente, pág. 91), acrescenta Jung.
A resistência que ela obviamente provoca faz com que, no processo de análise, seja o analista aquele que tomará esta função em sua pessoa, através da vivência transferencial. Com isso, se transforma no símbolo daquele que aceita o diálogo com os símbolos, o símbolo daquele que aceita o polilóquio, dizendo aqui estou para o inconsciente, e pronunciando um sim hospitaleiro aos seus conteúdos.
Mas como pronunciar este sim com sinceridade, ou, com que grau de profundidade este sim é pronunciado? Isso é uma questão de atitude, que é dependente de uma transformação radical do ego, onde este se coloca na posição de “personagem” em meio a outras personagens respeitando-as e, passivamente, no sentido que Levinas dá a este termo, se apresenta diante do Outro para ouvir seu Dizer, sabendo que este outro pertence a uma outra realidade, a realidade psíquica. Esta realidade é, contudo, tão real quanto a outra; sua alteridade tão alteridade quando à do outro. Como crer nisso, repetindo a questão. Jorge Luiz Borges nos ofereceu uma resposta.
Dijo Coleridge que la fe poética es una voluntaria suspensión de la incredulidad. Si asistimos a una representación de teatro sabemos que en el escenario hay hombres disfrazados que repiten las palabras de Shakespeare, de Ibsen o de Pirandello que les han puesto en la boca. Pero nosotros aceptamos que esos hombres no so disfrazados; que este hombre disfrazado que monologa lentamente en las antesalas de la venganza es realmente el príncipe de Dinamarca, Hamlet; nos abandonamos. En el cinematógrafo es aún más curioso el procedimiento, porque estamos viendo no ya al disfrazado sino fotografías de disfrazados y sin embargo creemos en ellos mientras dura la proyección. (Borges, Siete Noches, pág. 17).
Um outro poeta romântico expressa o mesmo pensamento. Trata-se de John Keats que se preocupava com a habilidade de se trabalhar com a imaginação sem a necessidade de se buscar fatos ou razões. Chamou isso de "capacidade negativa" (Avens, Imaginação é Realidade, pág. 2). Esta capacidade negativa ou a fé poética de Coleridge são, por si mesmas, atos de literatura, na medida em que a reação do eu em relação às personagens depende dele assumir um "como se" elas fossem reais. Só assim sofrerá o impacto pleno da "presença" da personagem como o outro.
Essa atitude, no entender de Jung, requer um movimento de sacralidade diante das imagens. É justamente isso que ele chama de religião. Para entendermos esse movimento é preciso lembrar que Jung trabalha com uma etimologia específica de religião, aquela desenvolvida por Cícero que afirma que religião vem de religere, a observação atenta e cuidadosa de algo. Enquanto considerar a imagem, no caso a personagem, como apenas um produto da imaginação não há como existir esta fé psicológica ou esta capacidade negativa. Deve ocorrer, por parte do ego uma atitude de sacralidade para com as produções do inconsciente, como se tivessem sido enviados por Deus, entendendo Deus como a expressão máxima da alteridade do outro, o absolutamente outro. De qualquer modo, não estamos lidando com realidades metafísicas ou discussões teológicas, mesmo que isto seja sentido como uma perda. Por isso, concordamos inteiramente com Jorge Luis Borges quando afirma:
E em nossa não tão bela mitologia, falamos do "eu subliminar", do "subconsciente". Claro, essas palavras são bastante toscas quando comparadas às musas ou ao Espírito Santo. Seja como for, temos de nos haver com a mitologia de nosso tempo. Pois as palavras significam essencialmente a mesma coisa. (BORGES, Esse Ofício do Verso, pág. 18)
Se o símbolo é a melhor tentativa de se formular algo desconhecido, o que dele podemos pensar é sempre da ordem de uma aproximação, nunca de um esgotamento. À tradução completa em algo conhecido Jung chamou de signo, que podemos dizer que é a morte do desconhecido, a morte do Outro: sua radical estranheza é reduzida ao meu total conhecimento de seu sentido, dando vazão ao nosso sonho de estabilidade.
Carlos Bernardi
bernardi@rubedo.psc.br
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