Há pouco tempo, um simpático garotinho de três anos, morador de uma cidade satélite do Distrito Federal, tornou-se notícia de jornal por ostentar uma habilidade precoce para uma criança de sua idade. Ainda trocando o “r” pelo “l”, Igor surpreende a todos com sua vivacidade, sociabilidade e pela velocidade com que lê frases inteiras, inclusive palavras difíceis como “Antártica, Skol, Bavária, Kaiser e Schincariol, que, segundo o autor da matéria, “quebra a língua até de alfabetizado”. Com um ano e meio, Igor já lia anúncios na rua e se exibia para pequenas plateias. Os pais, de origem humilde e pouca instrução formal, explicam que não ensinaram a criança a ler, embora tenham dado a ela oportunidade de manipular livros, oferecidos como distração enquanto ambos estudavam. Embora orgulhosos do filho, os pais revelam uma preocupação típica de quem tem em casa uma criança precoce: não querem que o filho se sinta diferente ou excluído pelos colegas.
Terminologias diferentes
Acontece que Igor está longe de ser um caso único, ou mesmo raro. A habilidade superior, a superdotação, a precocidade, o prodígio e a genialidade são gradações de um mesmo fenômeno, que vem sendo estudado há séculos em diversos países, como China, Alemanha e Estados Unidos. Como ressaltam Alencar e Fleith no artigo “Lim: características e desenvolvimento de uma criança com uma inteligência matemática excepcional”[1] , chamamos de precoce a criança que apresenta alguma habilidade específica prematuramente desenvolvida em qualquer área do conhecimento, seja na música, na matemática, na linguagem ou na leitura. Sem dúvida, Igor é uma criança precoce, mas ainda não podemos rotulá-la como superdotada, prodígio ou gênio. Vejamos a diferença.
Utilizamos o termo “criança prodígio” para sugerir algo extremo, raro e único, fora do curso normal da natureza. Um bom exemplo de uma criança prodígio, com uma habilidade excepcional, seria Wolfgang Amadeus Mozart, que começou a tocar piano aos três anos de idade. Aos quatro anos, sem orientação formal, já aprendia peças com rapidez, e aos sete já compunha regularmente e se apresentava nos principais salões da Europa. Além disso, ao ouvir apenas uma vez o Miserere de Gregório Allegri, foi capaz de transcrever a peça inteira de memória, quase sem cometer erros[2].
Mozart, assim como Einstein, Gandhi, Freud e Picasso, são ainda exemplos de gênios, termo este reservado para aqueles que deram contribuições extraordinárias à humanidade. São aqueles raros indivíduos que, até entre os extraordinários, se destacam e deixam sua marca na história.
Mas o que é a superdotação?
As habilidades apresentadas por todas as crianças aqui citadas, sejam elas precoces, prodígios ou gênios, podem ser enquadradas em um termo mais amplo, que é a superdotação. A definição brasileira, apresentada na Política Nacional de Educação Especial de 1994, define como portadores de altas habilidades/ superdotados os educandos que apresentam notável desempenho e/ou elevada potencialidade em qualquer dos seguintes aspectos, isolados ou combinados: a) capacidade intelectual geral (que envolve rapidez de pensamento, compreensão e memória elevadas, capacidade de pensamento abstrato); b) aptidão acadêmica específica (atenção, concentração, rapidez de aprendizagem, boa memória, motivação por disciplinas acadêmicas do seu interesse, capacidade de produção acadêmica); c) pensamento criativo ou produtivo (originalidade de pensamento, imaginação, capacidade de resolver problemas de forma diferente e inovadora); d) capacidade de liderança (sensibilidade interpessoal, atitude cooperativa, capacidade de resolver situações sociais complexas, poder de persuasão e de influência no grupo); e) talento especial para artes (alto desempenho em artes plásticas, musicais, dramáticas, literárias ou cênicas) e f) capacidade psicomotora (desempenho superior em velocidade, agilidade de movimentos, força, resistência, controle e coordenação motora).
Em geral, as crianças superdotadas não apresentam estas características simultaneamente, nem mesmo com graus de habilidades semelhantes. Um dos aspectos mais marcantes da superdotação relaciona-se ao seu traço de heterogeneidade. Assim, algumas pessoas podem se destacar em uma área, ou podem combinar várias – como, por exemplo, o humorista Jô Soares, que além de exibir um pensamento criador, original e bem-humorado, também se revela na área musical, tocando múltiplos instrumentos; no campo da linguagem, falando vários idiomas e escrevendo livros e crônicas; e ainda no setor da liderança, por seu carisma e capacidade de coordenar grupos. A essa confluência de habilidades chamamos de multipotencialidades, que representa mais uma exceção do que uma regra entre os indivíduos superdotados. O que se observa com maior frequência são crianças que se desenvolvem mais em uma área específica – como poesia, ciências, artes, música, dança, ou mesmo nos esportes, do que em outras.
Joseph Renzulli[3] , renomado pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa sobre o Superdotado e Talentoso da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, considera que os comportamentos de superdotação resultam de três conjuntos de traços, descritos a seguir: a) a habilidade acima da média em alguma área do conhecimento (não necessariamente muito superior à média), b) envolvimento com a tarefa (implica em motivação, vontade de realizar alguma coisa, perseverança e concentração) e c) criatividade (pensar em algo diferente, ver novos significados e implicações, retirar ideias de um contexto e usá-las em outro). Nem sempre a criança apresenta este conjunto de traços desenvolvidos igualmente, mas, se lhe forem dadas oportunidades, poderá desenvolver amplamente todo o seu potencial.
Quantos são os superdotados?
Quando consideramos o grupo de superdotados/ portadores de altas habilidades apenas do ponto de vista psicométrico, ou seja, a partir da utilização de testes de inteligência (o teste WISC de inteligência, por exemplo, situa o QI médio em 100 pontos), estamos indicando apenas aqueles talentos que se destacam por suas habilidades intelectuais ou acadêmicas – o equivalente aos dois primeiros grupos da definição brasileira. Nesta perspectiva, estima-se que 3% dos indivíduos de uma dada população sejam superdotados. Porém, quando incluímos outros aspectos à avaliação de superdotados, como por exemplo: liderança, criatividade, competências psicomotoras e artísticas, as estatísticas sobre altas habilidades aumentam significativamente, chegando a abarcar uma porcentagem de 15 a 30% da população. De qualquer ponto em que se olhe, no entanto, podemos perceber como este grupo tem sido mal identificado e trabalhado em nosso país. O Distrito Federal, por exemplo, que tem um programa há mais de 20 anos para o atendimento da superdotação, atende hoje 343 crianças no Plano Piloto e em seis cidades satélites – um número ínfimo, considerando o número de crianças regularmente matriculadas nas escolas públicas e particulares. Isto apenas demonstra o quanto este assunto ainda é polêmico na nossa sociedade, ressaltando o desconhecimento do tema por parte da comunidade, da escola e da família. São necessárias técnicas mais apuradas de identificação, instrumentos mais amplos e precisos de diagnóstico, e bons programas de desenvolvimento e estimulação do potencial destas crianças para que possamos estabelecer políticas de aproveitamento de talentos e competências em nosso país.
Como reconhecer se o seu filho é um superdotado
Ellen Winner[4] considera que crianças com alto QI (academicamente superdotadas) podem apresentar, nos primeiros cinco anos de vida, algumas características que podem vir a ser percebidas por pais atentos ao seu desenvolvimento. Entre os primeiros sinais, ela destaca:
- Maior tempo de atenção e vigilância, reconhecendo seus cuidadores desde cedo;
- Preferência por novos arranjos visuais;
- Desenvolvimento físico precoce: sentar, engatinhar e caminhar antes do normal;
- Linguagem adquirida mais cedo, rapidamente progredindo para sentenças complexas; apresentando grande vocabulário e estoque de conhecimento verbal;
- Super-reatividade: apresentam reações muito intensas a ruídos, dor e frustração;
- Aprendizagem rápida, com instrução mínima (pouca ajuda ou estímulo de adultos);
- Curiosidade intelectual, com elaboração de perguntas profundas e persistência até alcançar a informação desejada;
- Alta persistência e concentração, quando estão interessadas em algo;
- Alto nível de energia, que pode levar à hiperatividade, quando são insuficientemente estimuladas (às vezes necessitam de menos horas de sono do que o normal para a idade);
- Interesses quase obsessivos em áreas específicas, a ponto de se tornarem especialistas nestes domínios.
Com relação às habilidades relacionadas à escola e aos fatores socioemocionais, a autora destaca:
- Apresentam leitura precoce (por volta dos quatro anos ou antes), com instrução mínima;
- Fascínio por números e relações numéricas;
- Memória prodigiosa para informação verbal e/ou matemática;
- Destaque em raciocínio lógico e abstrato;
- Dificuldades com ortografia, uma vez que pensam mais rápido do que conseguem escrever.
- Frequentemente brincam sozinhas e apreciam a solidão (por não terem outras crianças de sua idade com o mesmo interesse, ou por se sentirem diferentes);
- Preferência por amigos mais velhos, próximos a ela em idade mental;
- Interesse por problemas filosóficos, morais, políticos e sociais – podem tornar-se sobrecarregadas por estas preocupações precoces e desenvolverem posturas morais incomuns – como tornar-se vegetariana por escolha própria.
- Em decorrência de suas altas habilidades verbais, apresentam alto senso de humor.
É importante notar que estas crianças não recebem treinamento intensivo de seus pais; muitas vezes os pais não são superdotados como elas e nem têm condições de acompanhar o desenvolvimento acelerado que se segue. Estas crianças manipulam o ambiente em que vivem para dele extrair o que necessitam, seja instrução extra, seja novos desafios ou simplesmente respostas à sua infindável curiosidade. Pais atentos a estes sinais devem encaminhar seus filhos ao psicólogo educacional, que fará uma avaliação mais ampla e cuidadosa de outras características que também possam evidenciar a existência de comportamentos de superdotação. Testes de QI, viáveis a partir de 5 anos de idade, permitem uma indicação de habilidades acadêmicas, mas pouco nos dizem a respeito da superdotação nas áreas de criatividade, liderança, habilidades psicomotoras ou artísticas, que demandam testes apropriados e uma visão multidimensional da superdotação[5] . Os pais devem sempre estimular a criança, desenvolver sua imaginação, instigar sua curiosidade para que possam desenvolver suas potencialidades ao máximo, oferecendo, acima de tudo, compreensão e amor incondicionais, apoiando-a naquilo que a torna única, diferente e, por tudo isso, especial[6] .
REFERÊNCIAS:
[1] Alencar, E. M. L. S., & Fleith, D. S. (1996). Lim: características e desenvolvimento de uma criança com uma inteligência matemática excepcional. Cadernos de Pesquisa – NEP, ano II, n. 1, pp. 01-11.
[2] Gardner, H. (1999). Mentes extraordinárias. Trad. De Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Rocco.
[3] Renzulli, J. S. (1986). The three-ring conception of giftedness: A developmental model for creative productivity. Em R. J. Sternberg, & J. E. Davidson (Eds.), Conceptions of giftedness (pp.53-92). New York: Cambridge University Press.
[4] Winner, E. (1998). Crianças superdotadas. Trad.: Sandra Costa. Porto Alegre: Artmed.
[5] Alencar, E.M.L.S. (1996). Psicologia e educação do superdotado. São Paulo: EPU.
[6] A autora agradece à Profa. Mônica de Souza Neves-Pereira pela sua valiosa revisão deste artigo.
Este artigo foi publicado em maio de 2001 na Revista “Escola de Pais do Brasil – Seccional de Brasília”, p. 8-10.
Autora do artigo: Angela M. R.Virgolim – professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília e doutoranda em Psicologia Educacional no Centro Nacional de Pesquisa sobre o Superdotado e Talentoso da Universidade de Connecticut, EUA. www.institutovirgolin.com.br
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